Fernando Andrette
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Morreu, em 25 de abril, Harry Belafonte – um homem e artista que dedicou sua vida a grandes causas.
Minha relação com o músico e cantor Harry Belafonte faz parte de minhas primeiras memórias musicais, e o disco Belafonte Sings The Blues foi a trilha sonora da família Andrette desde o ano que nasci. Já que este foi gravado em 1958, e eu nasci em outubro.
Me vejo sentado em uma poltrona azul, em frente ao móvel sonoro Telefunken, e meus pais ouvindo esse disco repetidamente por horas. Nessa fase eu tinha 4 anos – sei que era essa idade, pois minha irmã ainda não tinha nascido.
Era um disco tão familiar que, aos seis anos, eu já tinha as minhas faixas preferidas – e como já havia decorado a sequência, nas faixas que não me interessavam eu me distraia com meus brinquedos e, assim que começava a tocar as que eu adorava, corria para sentar na poltrona azul, que muitas vezes estava ocupada ou pelo meu pai ou por minha mãe. Detestava quando isso ocorria, mas era mera questão de hierarquia familiar: primeiro os pais, depois os filhos.
Esse disco também foi trilha sonora de muitos bailes realizados naquela sala de estar, em que casais apaixonados se divertiam ao som de Mary Ann, Cotton Fields, e a belíssima God Bless The Child. Essa canção me traz tantas memórias afetivas e momentos tão intensos, que posso fazer um caleidoscópio de cenas marcantes que vivi com minha família.
A outra faixa da qual tenho belas recordações, é a que fecha esse belo disco: Fare Thee Well.
O que sempre me chamou a atenção nesse trabalho do Belafonte foi sua consistência, tanto na escolha do repertório como pelo fato de ter trabalhado com três arranjadores com conceitos artísticos distintos: Alan Greene, Bob Corman e Denis Farmon. Acho que o mérito da coerência alcançada foi do excelente trabalho do produtor Ed Welker e, claro, do talento de Belafonte, por traduzir com extrema sensibilidade o que cada um dos arranjadores queria.
Aliás, o maior mérito da carreira de Belafonte foi sua enorme capacidade de se lançar de corpo e alma em todos os seus projetos artísticos e políticos. Se você tiver dúvidas dessa impressionante honestidade e determinação, venha comigo conhecer – além do Sings The Blues – outros trabalhos desse talentoso músico.
Não pense que irei indicar os dois Belafonte at Carnegie Hall (1959 e 1960), pois esse todo leitor dessa revista já deve ter escutado ou na casa dos pais, na casa de amigos audiófilos, ou nos eventos Hi-End Show.
Vou sugerir um passeio sonoro por trabalhos seus menos conhecidos e que, no entanto, merecem ser apreciados.
Swing Dat Hammer (RCA, 1960)
Esse, para mim, além da qualidade artística é o mais perfeito exemplo de como ‘menos sempre foi mais’ na qualidade técnica.
Na apresentação desse trabalho, para mostrar como era a ambiência real das salas de gravação dos anos 50 e 60, eu peço ao público presente para tentar imaginar como se conseguiu uma reverberação na voz do Belafonte e no coral de apoio e palmas, com tamanha precisão e fidelidade.
Aos que não conhecem o disco, pergunto em que ano eles acham que foi gravado, pois a reverberação e a captação da sala nos passam a sensação de uma sala enorme (quase de uma catedral), e a maioria pensa que essa reverberação foi feita digitalmente – ou, se antes do reverb digital, foi produzida com reverb de molas. Quando digo que, no ano que essa gravação foi realizada, não havia nenhuma das duas opções, os participantes ficam impressionados.
Outro detalhe desse disco é que é possível ouvir com muita facilidade (em um bom sistema na reprodução de ambiência), que os tempos de reverberação são bem distintos, por exemplo, entre a faixa Look Over Yonder e a faixa 4 Diamond Joe.
Como os engenheiros conseguiram esse feito? Mudando Belafonte de posição dentro da excelente sala de gravação, em que caberia duas orquestras sinfônicas inteiras.
Quando lançado em 1960, foi um disco que dividiu muito a crítica, por se tratar de uma coleção de canções de trabalho de gangues de presos. O disco ganhou o Grammy de Melhor Gravação Folclórica Tradicional-Étnica, em 1961.
O detalhe mais importante, meu amigo, é que Belafonte não se contentou em apenas colocar um coral de vozes de apoio. Ele criou o The Belafonte Folk Singers, um grupo vocal que esteve ativo de 1957 a 1965. O grupo era liderado e conduzido por Bob Corman. Eram entre 11 e 12 vozes afro-americanas. Muitos dos seus membros, ao término do grupo em 1965, formaram o De Cormier Singers, o Phoenix Singers e o Seafarers Chorus.
Meu amigo, se ainda não conhece esse trabalho de Belafonte, sugiro que o ouça o mais rápido possível.
É um trabalho grandioso e inspirador!
In My Quiet Room (RCA, 1966)
Em uma década desde seu primeiro trabalho, em 1956, que o tornou conhecido como um cantor de Calypso, Belafonte rapidamente mostrou toda sua versatilidade e não deixou que a indústria fonográfica o prendesse a um estilo que ele amava, mas não era tudo que ele gostaria de fazer por muito tempo. Ele passou a deixar claro em todas as suas entrevistas que não era um artista que virou ativista, mas sim um ativista desde o início, que virou artista.
Seu ativismo intenso levou Belafonte a ser ameaçado pela Ku Klux Klan, desde 1954, o que o levou a ser proibido de se apresentar nos estados do sul dos EUA até 1961. Ainda que o governo federal tenha, nos anos 60, feito uma enorme pressão para que a gravadora RCA o dispensasse, ele conseguiu ganhar dois Grammy e seis Discos de Ouro.
O In My Quiet Room é desse período, em que a pressão foi mais intensa e ele, ao lançar esse trabalho, confessou que ‘até os mais determinados’ precisam de um merecido descanso. Resultado: a crítica recebeu esse trabalho com desconfiança e seu público jovem com desdém, pois queria o Belafonte ativista e intransigente, usando sua voz para forçar o governo federal a avanços em relação a discriminação racial.
Com o distanciamento necessário para poder revisitar esse trabalho, é uma grande surpresa poder ouvir o cantor Belafonte apenas, e desfrutar do seu bom gosto na escolha do repertório e, o quanto como ele mesmo descreveu esse período: “até os mais determinados, necessitam de uma pausa”!
Belafonte By Request (RCA, 1970)
Ouvi tanto, em 1971 a faixa 1 deste disco – Mr Bojangles, que se tornou um mantra pessoal para mim.
Não são todas as músicas cantadas que nos servem como amparo em diferentes momentos emocionais (ainda mais em um pré adolescente descobrindo o mundo). Pois essa foi para mim esse farol, tanto naqueles momentos de incerteza como de euforia juvenil.
Interessante que, quando tentava mostrar esse disco aos amigos da época, todos detestavam e chamavam de música de velho! Eu não ficava insultado, mas me perguntando como eles não conheciam Belafonte? Pois para mim era inadmissível nunca terem escutado nenhuma música do Belafonte nem seus pais, tios ou vizinhos, rs!
OK! Sempre temos uma primeira vez para tudo, e quando jovem com apenas 13 anos, era uma idade legal para descobrir Belafonte e, pela porta da frente, com Mr Bojangles, rs!
Eu gosto imensamente desse trabalho, pois ele consegue mostrar com precisão o quanto Belafonte não se prendeu ao tempo, buscando traduzir e expressar as mudanças tão intensas que ocorreram no final da década de 60 e 70.
E mesmo que não seja sua praia, meu amigo, me faça um favor: ouça ao menos Mr Bojangles, rs!
Se não perdemos mais nenhum grande artista até o final de maio, mês que vem volto com a Playlist normal. Tenho uma dezena de excelentes lançamentos para compartilhar.
Mr Bojangles, dance, por favor.