Playlists: 200 ANOS DA NONA DE BEETHOVEN – ODE À ALEGRIA & À LIBERDADE!

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Opinião: MEMÓRIAS SONORAS
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Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br

Um homem estava bebendo em um bar, na Itália. Querendo melhorar o nível da música que estava sendo tocada, foi até o pianista, pôs uma nota de 50 euros na taça acima do piano, e pediu: “O senhor conhece a Nona do Beethoven?” “Não… Ela toca piano?”

Essa piada – para trazer um tom mais leve à matéria – me ocorreu por causa da imagem mal humorada e sisuda que o compositor alemão Ludwig van Beethoven tem, e sempre teve. Duvido que exista um retrato dele – real ou ficcional – onde ele esteja sequer esboçando um sorriso.

Especificamente no dia 7 de maio de 1824 – duzentos anos atrás – a maior de todas as obras da história da música do planeta Terra, estreava no Teatro de Kärntnertor sob a regência de Michael Umlauf (devido à surdez avançada do compositor, que mesmo assim estava sentado no palco, junto com Umlauf) em Viena, Áustria, que é considerada a Cidade Musical da Europa, desde sempre – desde antes de Mozart.

Beethoven havia acabado de brindar a humanidade com o Ode à Alegria, como ficou para sempre reconhecido o último movimento dessa que foi sua última sinfonia, o tal do movimento ‘coral’, cujo texto é o poema An die Freude (Ode à Alegria), de Friedrich Schiller – um dos maiores poetas alemães. A Nona Sinfonia é a primeira na história a incorporar solistas de canto e um coral completo – ainda que só em seu quarto e último movimento.

Teatro de Kärntnertor

E é essa Alegria, fraternal e otimista, que passa a fazer parte de nossas almas toda vez que ouvimos essa obra – a qual perdurará até à última presença da humanidade nesta galáxia – e que me lembrou o comentário de um violoncelista amigo meu, após ouvirmos (eu ouvi, e ele estava lá na orquestra tocando) a Quinta Sinfonia do finlandês Sibelius: “Curioso como tanto essa sinfonia de Sibelius quanto a Nona de Beethoven, ambas têm um ‘finale’ alegre e otimista, em contraste com a situação difícil de vida a qual passavam ambos compositores, quando as escreveram”.

Esse comentário é especialmente pertinente caso as pessoas deixem de olhar a história de Beethoven e seus vários retratos, e queiram imaginar o que se escondia dentro de sua alma, e só transparecia em boa parte de sua música. A fama de sisudo de Ludwig não vinha só de seus retratos. Um exemplo é uma de suas obras que eu mais gosto, o Concerto para Piano & Orquestra no.3, onde o começo do primeiro movimento não poderia ser mais ‘Mozartiano’. Mais de uma vez eu disse que partes desse concerto soam como um ‘Mozart rabugento’… rs…

Uma coisa que sempre ajudou a fama de gênio de Beethoven, era o fato que, ao compor sua maior obra – a Nona – ele já estava completamente surdo. Ou seja, ele concebeu a obra dentro da cabeça dele, escreveu a partitura, revisou, mas jamais a ouviu sendo tocada, de maneira alguma, por nenhum instrumento.

A influência – e menção – de Mozart no trabalho de Beethoven é inegável. Inclusive a melodia do Ode à Alegria é influenciada pelo Ofertório Misericordias Domini de Mozart, de 1775. Beethoven era abertamente admirador do trabalho do compositor austríaco, e especula-se se os dois chegaram a se conhecer pessoalmente. Como músico, Ludwig tocou vários concertos para piano de Mozart, quando era jovem, em Bonn – além de tocar viola em orquestras, em obras do austríaco. Diz a lenda – sem nenhuma certeza ou documentação – que o jovem Ludwig foi apresentado a Mozart, 14 anos mais velho que ele, quando em visita à Viena, e que até tocou para os ouvidos aprovadores do austríaco.

Beethoven tinha a ideia de musicar o poema de Schiller desde 1793, e nunca havia conseguido seu objetivo, até 1824 com a Nona, que foi uma encomenda da Sociedade Filarmônica de Londres. Depois de pronta deu um certo trabalho convencer todos os envolvidos que suas dimensões de orquestra com coro, necessitavam que ela estreasse em um local com infraestrutura condizente. E, para tal, foi escolhida Viena, a Cidade Musical, e o Teatro de Kärntnertor – que era chamado então de Teatro da Corte Real e Imperial de Viena, e que foi palco de numerosas estreias de obras de Mozart, Haydn, Chopin, Offenbach, Weber, e do próprio Beethoven, entre vários outros.

Retrato de Beethoven por Joseph Karl Stieler. 1820

Apesar de ser considerada por alguns como uma das obras iniciais do movimento do Romantismo na música erudita do século 19, eu considero ela como plena e emblemática desse movimento, já que a Terceira e Quinta Sinfonias de Beethoven já são consideradas como marcos iniciais da expressão musical desse movimento literário e artístico.
Ludwig queria estrear a obra em Berlim, porque achava que o gosto musical de Viena estava voltado aos compositores italianos, como Gioacchino Rossini, mas foi convencido por seus patronos e amigos a escolher Viena para a estreia. Que foi, na verdade, um grande sucesso, terminando com Beethoven de costas para a plateia, que aplaudia exultante sem ele saber. Então, a contralto Caroline Unger teria virado-o em direção ao público, o qual ergueu, braços, lenços e chapéus para o ar, para que o compositor pudesse notar sua reação – e isso deixou Beethoven extremamente comovido.

E, mesmo assim, na época vários críticos musicais deram o Quarto Movimento como excêntrico, suposto resultado da velhice e surdez do compositor. E eu me pergunto: como alguém pode se dizer um especialista e ter errado tão feio?
O italiano Giuseppe Verdi, um grande compositor por mérito próprio, declarou que o bom da Nona são os primeiros três movimentos, e que o Quarto é mal escrito (!). Inveja? Engraçado como alguém fala uma asneira mais de 150 anos atrás, e isso fica registrado para a posteridade. Verdi deveria ter ficado de boca fechada.

Uma dentre várias curiosidades relacionadas à obra, é que a melodia, coro e letra do Quarto Movimento foram arranjadas pelo maestro austríaco Herbert von Karajan, para formar os dois minutos e meio de duração do Hino da União Europeia:

E, claro, a melodia da Nona – e a mensagem do poema de Schiller – apareceram em inúmeros filmes e séries, comícios políticos (alguns vergonhosos), e em várias demonstrações de protesto e comemorações de paz e liberdade, ao longo dos anos.

Aqui nesta matéria vou sugerir apenas três gravações dessa obra – dentre as dezenas, quase centenas, já registradas por todo maestro e orquestra que se prezem, na face do planeta.

Três, apenas. Duas porque considero-as as melhores – por motivos diferentes – e uma porque é uma curiosidade histórica relevante e interessante.

OUÇA BEETHOVEN : THE 9 SYMPHONIES (1963), NO QOBUZ.
OUÇA BEETHOVEN : THE 9 SYMPHONIES (1963), NO TIDAL.

Beethoven: Symphony No.9 in D minor – Berliner Philharmoniker – Herbert von Karajan (DGG, 1963)

Odiado ou amado, a questão é que a gravação da Nona, regida por Karajan em 1963, é suprema: grandiosa, bela, poderosa, fluente e altamente competente. E é a melhor dentre as várias vezes que ele a gravou, tanto em disco (5 vezes), quanto em vídeo produzido em estúdio (3 vezes), quanto vídeo de apresentação ao vivo (mais de uma dúzia). Vai saber quantas vezes, então, ele não regeu essa obra durante a programação anual das orquestras que conduziu.
Aliás, aos fãs de Beethoven, nesse mesmo ciclo de 1963 está a que considero a melhor gravação da célebre Quinta Sinfonia – e que é a minha referência.

Nessa Nona de 63, a coesão da orquestra, altamente escolhida, treinada e preparada por Karajan ao longo dos anos, é notória. Assim como a fluência de sua regência, e o perfeccionismo derivado de seus longos e numerosos ensaios. E Karajan era um regente que se dedicava a ensaiar e preparar bem a obra e a orquestra. Mesmo muitos dos detratores do maestro austríaco, admitem a precisão de sua longa e extensa preparação da Filarmônica de Berlim.

O streaming está excelente – e a versão da mesma caixa com o ciclo completo das sinfonias, com a mesma capa, em CD, deve ser a melhor opção em digital. Já o vinil, em prensagem europeia da década de 60, é a opção para os ‘analógicos’.

Acompanhando a Orquestra Filarmônica de Berlim e o Coro Wiener Singverein, estão a soprano Gundula Janowitz, o tenor Waldemar Kmentt, a contralto Hilde Rössel-Majdan, e o barítono Walter Berry.

OUÇA BEETHOVEN : THE SYMPHONIES, NO QOBUZ.
OUÇA BEETHOVEN : THE SYMPHONIES, NO TIDAL.

Beethoven: The Symphonies – Chicago Symphony Orchestra – Sir Georg Solti (Decca, compilação de 1990)

Enquanto que a leitura de Karajan com a Filarmônica de Berlim soa mais germânica, porém com um instrumental luxuriante, a leitura de Solti de 1972 com a Sinfônica de Chicago soa mais livre e solta, relaxada, e com uma ênfase incrível na beleza do coral do Quarto Movimento – uma participação coral que ainda não foi batida em nenhuma gravação desta obra.

A gravação do Karajan é minha referência para o instrumental, para a orquestração dessa obra. Já esta gravação do Solti é a referência absoluta para a parte coral. Ambas são obrigatórias! E um sonho irrealizável seria poder juntar ambas! rs…

Este registro da Decca ainda completa o quadro sendo esta uma das grandes gravações feitas por esse selo inglês, em matéria de qualidade sonora. E é melhor em vinil do que em CD ou streaming.

Acompanhando a Orquestra Sinfônica de Chicago estão o Coro Sinfônico de Chicago, a soprano Pilar Lorengar, o tenor Stuart Burrows, a mezzo-soprano Yvonne Minton, e o baixo Martti Talvela.

OUÇA ODE AN DIE FREIHEIT, NO QOBUZ.
OUÇA ODE AN DIE FREIHEIT, NO TIDAL.

Ode an die Freiheit – Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks – Leonard Bernstein (DGG, 1990)

No dia 9 de novembro de 1989, cai o Muro de Berlim, que dividia as Alemanhas Oriental e Ocidental, e que era o grande símbolo da chamada Cortina de Ferro, a qual separava o mundo ocidental dos países da então URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Comemorando a queda – literal e metafórica – do muro, comemora-se especialmente a reunificação das duas Alemanhas, que volta a ser um país só.

Em 25 de dezembro do mesmo ano, Dia de Natal, como parte de um grande concerto ao vivo festivo em Berlim, a joia da apresentação (televisionada para vários lugares do mundo) foi a Nona, com o maestro e compositor americano Leonard Bernstein regendo a Orquestra Sinfônica da Rádio da Baviera – uma das tradicionais orquestras alemãs.
Além do clima de alívio por causa da recém adquirida liberdade, a letra do coral do Quarto Movimento foi alterada de “Freunde” (Alegria) para “Freiheit” (Liberdade) – uma licença poética bonita e apropriada, tornando o finale dessa sinfonia uma ‘Ode à Liberdade’!

Com a Orquestra e Coral da Rádio da Baviera, estão o Coral da Filarmônica de Dresden, o Coro da Rádio Berlim, a soprano June Anderson, o tenor Klaus König, a mezzo-soprano Sarah Walker e o baixo Jan-Hendrik Rootering.

Quando, um dia, seres de outros planetas, de raças mais avançadas social e eticamente que nós, vierem à Terra, e pedirem para ver o melhor que o ser humano pode fazer, o que representa o melhor de nós, na lista estará certamente a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven – o qual estará, in memoriam, certamente sorrindo.

Retrato de Beethoven por Willibrord Joseph Mähler. 1804

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