Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br
A expressão ‘usar de muleta’, de apoio, de desculpa, na nossa área transparece muito. Falei um pouco sobre isso em um Espaço Aberto, anos atrás (edição 296) – mas volto ao tema, por um ponto de vista ligeiramente diferente, que está me incomodando já faz algum tempo.
Um erro é dizer que um aparelho é pior ou melhor por suas especificações, ou afirmar que ele deve tocar de tal e tal jeito, pelo mesmo motivo – sem ir lá e ouvir o aparelho e tirar conclusões específicas sobre o resultado sonoro que ele dá.
Outro erro – muito comum na área de fones de ouvido, mas que estão querendo estender para salas de audição (!) – é a loucura pelas curvas ideais de resposta de frequência, como a Curva Harman, que de tão ideal para muitos, passou a ser chamada de Harman Target, a curva ‘alvo’, o ‘objetivo’.
A Curva Harman e suas variações, foram obtidas após vários estudos da audição e, também de formato de cabeça e de ouvidos, e de como eles recebem os sons e os processam, o tal HRTF – Head Related Transfer Function. Os laboratórios da Harman então juntaram todos esses estudos com algumas pesquisas práticas sobre quais tipos de sonoridade alguns grupos de pessoas tinham como preferência, gostavam mais – e chegaram à uma curva de resposta de frequência ideal.
Vou fazer brevemente uma matéria mais ‘espessa’ sobre a Curva Harman e afins, para o suplemento Audiofone, aqui na revista. Aguardem!
Eu gosto da ideia da Curva Harman, porque eu gosto de como vários fones com respostas próximas a ela, soam – fones que a usam como guias, que pegam seu espírito e o aplicam.
Mas muitos levaram essa curva à enésima potência e passaram a equalizar seus fones de ouvido mandatoriamente para que suas curvas, quando medidos, ficassem idênticas. A Curva virou ‘tudo’! Não era suficiente estar próximo à Curva – então ela portanto virou a ‘Muleta Tecnológica’: não havia interesse (e às vezes nem conhecimento) em se ouvir como o fone tocava, e descobrir se ele precisava ser ‘corrigido’ ou não!
A curva virou a referência, e não o som do próprio fone e – menos ainda! – o som da música real!
Já vi muitos reviewers mais ‘modernos’ se fiarem nas especificações e na tecnologia embarcada nos produtos que testam – mas sempre, e muito, se fiarem em medições e gráficos. E isso tanto para ‘bem’ (adorar um produto dessa maneira) quanto para mal (falar que um produto precisa de ajustes sem mesmo ouvi-lo – e que nem precisaria).
Tudo isso por um motivo simples: sem saber como toca um equipamento ou qual a ‘influência sonora’ que causa em um sistema um cabo ou acessório (para aqueles que não gostam quando falamos que “esse cabo soa assim”), é preciso ouvir o resultado. Não tem fuga.
Muitos dos envolvidos em áudio são loucos para descobrir indicativos tecnológicos que os digam como algo toca. Vou dizer: se querem analisar o som de um equipamento por vários aspectos Qualitativos – que são os que diferenciam um aparelho mais simples de um mais sofisticado – e não só pelos aspectos Quantitativos, é preciso usar seus ouvidos e perceber, e analisar.
E como se faz isso? Treinando e educando seus ouvidos. Não, não existe nada que substitua, fazendo com o que todo o resto seja a ‘Muleta Tecnológica’ (medições e especificações).
Como treino meus ouvidos? Ouvindo instrumentos reais acústicos, não amplificados, presencialmente. Em cidades de médias para grandes, isso é bem fácil. Uma analogia que sempre uso: como saber se um biscoito sabor morango tem um sabor de morango próximo ou longe de um morango real? Comendo morangos e acostumando com eles, e entendendo tal sabor!
E como entendo os resultados, catalogo-os e posso repetí-los? Com algum tipo de Metodologia e Análise. Aspectos vários de como aquilo está soando, aspectos Qualitativos. Qualidades do som. A nossa Metodologia, amplamente divulgada e explicada aqui na revista, é uma das mais completas que nós conhecemos. Não precisa ser um ás na nossa Metodologia, mas aos poucos é possível usá-la de maneira construtiva e fácil, isolando cada aspecto, casa quesito.
Como falamos sempre: Referência & Metodologia.
E é aqui no texto que muitos param e desistem, porque já ouviram nós falarmos disso várias vezes, e acham que somos repetitivos. Bom, a cada ano que passa, continuamos vendo pessoas montando sistemas ‘indecentes’ de tão ruins, e ouvindo gravações igualmente indecentes e usando-as para escolher, montar e regular seus sistemas… E quanto mais vejo isso, mais eu insisto que é preciso continuar tentando passar a nossa mensagem.
Isso se aplica tanto a audiófilos quanto a muitos reviewers – por isso a questão aqui é uma reclamação contra profissionais da área que se amarram em suas muletas, e se caírem, foi a muleta que não segurou. Ou seja, se a análise não for repetível, se as conclusões forem mirabolantes e imperceptíveis, são as faixas ruins as culpadas, são as medições que não cumpriram o que estavam ‘dizendo’, etc…
Acontece que as medições não dizem como é a qualidade dos graves, médios e agudos, seus recortes e timbres, no Equilíbrio Tonal. Não dizem como são as Texturas dos instrumentos, a qualidade dele e as intencionalidades dos músicos. Medições não dizem como é o Corpo Harmônico de cada instrumento, e não falam absolutamente nada sobre o Palco, se é raso ou profundo, largo ou estreito, se os instrumentos estão bem representados, e bem distintos (recortados) uns dos outros, do cenário, e inteligíveis.
E aí vem um reviewer que não ouve música acústica ao vivo (não sabe como os instrumentos tocam) e ainda por cima usa gravações de péssima qualidade, hiper-processadas e comprimidas, onde as qualidades sonoras de seus instrumentos já não existem faz tempo.
(Lembrem-se que mesmo os instrumentos eletrônicos e elétricos, não só estão parcialmente imitando instrumentos acústicos reais, como retém muitas de suas características sonoras. Portanto, saber como soam os instrumentos acústicos reais, vai ajudar e muito a escolher, ajustar e obter o melhor de seus sistemas de som – mesmo que você só escute música processada ou eletrônica).
Realmente muitos não acham que precisam ter como referência o Mundo Real – amam especificações e medições, e não confiam nem um pouco em seus próprios ouvidos.
Há um fabricante de amplificadores que quase se orgulha de nunca ir assistir música ao vivo! É risível, isso! Não sei se seus amplificadores são bons, mas tenho muita curiosidade de ouvi-los.
Me soa tão fora da realidade, que parece como um crítico de teatro que nunca iria à uma peça, e só leria os roteiros! Um fabricante de geleias que nunca teria provado uma fruta! Um chef de cozinha que janta fora do restaurante dele, nunca come o que faz! Um projetista de cadeiras que nunca sentou em uma – seja dele, seja do concorrente!
Eu fico pensando se eu vivo em uma realidade paralela, onde todo mundo é ‘normal’ e só eu sou louco…rs…
Não usem a ‘Muleta Tecnológica’ – pois ela não te diz o que você precisa saber.
Bom agosto a todos!