Opinião: CONSEGUIMOS REALMENTE OUVIR AS INTENCIONALIDADES DE UMA GRAVAÇÃO EM NOSSOS SISTEMAS?

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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Sim, se você tiver um sistema muito bem ajustado e um mínimo de conhecimento e vivência musical ‘real’. E, não, se você apenas escuta música como sonorização ambiente ou de fundo enquanto realiza diversas atividades.

Então cabe a você, leitor, definir se essa série de Opiniões que irei compartilhar te interessa realmente. O que posso lhe garantir é que, caso seja importante, você estará atualizado sobre as maiores e mais consistentes descobertas neste século sobre como a música se processa no seu cérebro, e todos os benefícios que ouvi-la corretamente lhe trará ao longo de sua vida.

Faça sua escolha – e caso tenha decidido ler essa Primeira Parte, vamos aos fatos!

Muitos de vocês que já conhecem e aplicam nossa Metodologia, sabem que no quesito Textura falamos não só da riqueza de paleta de cores dos timbres dos instrumentos, como também frequentemente nos referimos a questão de intencionalidade existente nas gravações.

E aí surge uma série de dúvidas: muitos de vocês nos questionam como ouvi-las em seus sistemas?

E outros não só duvidam, como questionam se essa é ou não uma questão relevante, quando estamos apenas desejando esquecer do mundo e nos embriagar com nossa música por algumas horas.

Para responder aos céticos, terei que abordar esse tema utilizando algumas descobertas recentes publicadas em livros ou em pesquisas de neurociência apresentadas nos mais importantes seminários internacionais.

Um dos fatos mais relevantes para a neurociência, é como o nosso cérebro reconhece as diferentes ‘alturas’ do som. A ‘altura’ significa a posição das notas musicais, representando grave, médio e agudo, e podem mudar o timbre do instrumento. Exemplos: a ‘altura’ do primeiro Lá dos graves de um piano padrão de 88 teclas é de 27.5 Hz. Já um Lá da região média é a famosa frequência de 440 Hz. E, finalmente, o último Lá do piano, o mais agudo, é na ‘altura’ de 3520 Hz.

Como sabemos que o som que vem da rua é de uma britadeira ou de uma sirene?

Então a neurociência passou os últimos 30 anos mapeando a questão da altura, desde a entrada do som pelo nosso ouvido, passando pela membrana basilar onde células ciliadas disparam um sinal elétrico que é enviado ao córtex auditivo, que reconhece as notas graves, médias e agudas, fazendo o cérebro identificar as diferentes alturas. Para o cérebro a altura é fundamental para o total reconhecimento do que estamos ouvindo, e o grau de atenção que o cérebro dá a esse processo é impressionante e bastante complexo pela quantidade de sinapses necessárias para tal feito.

Para se ter ideia de como o córtex auditivo reconhece alturas, se colocarmos eletrodos nele e tocar uma nota a 660 Hertz no seu ouvido, os neurônios do seu córtex auditivo respondem a esse estímulo fazendo com que os eletrodos emitam atividade elétrica em 660 Hertz.

Mesmo que o ouvinte não faça a menor ideia de como soa uma nota pura de 660 Hz!

O que se deduz que, no caso das alturas, o que entra no ouvido sai do cérebro.

Preste muita atenção nesta afirmação descoberta pela neurociência meu amigo: “O que entra no ouvido sai do cérebro”.

Ou seja, sem o córtex auditivo e o hipocampo, jamais conseguiríamos criar um banco de memória de longo prazo e saber o que é uma britadeira ou uma sirene.

E menos ainda distinguir o som de uma flauta de uma tuba, ou a voz dos nossos entes queridos ao telefone.

Os participantes dos nossos Cursos de Percepção Auditiva sabem o quanto eu sempre enfatizei que precisamos confiar no nosso cérebro, mais do que nos nossos ouvidos.

Nosso cérebro está habilitado por milhões de anos a reconhecer a diferença de alturas para sua própria sobrevivência, muito antes do homo sapiens desenvolver seus primeiros instrumentos musicais. Nossos ancestrais aprenderam a ouvir os perigos diários que enfrentavam, e graças ao grau de desenvolvimento do cérebro em interpretar as alturas de cada som à sua volta.

Sem essa incrível percepção do seu meio, não estaríamos aqui para contar essa etapa evolutiva humana.

Outro elemento muito importante, e que muitos não dão o devido valor, é quanto a afinação de instrumentos. E mesmo que não tenhamos nenhum conhecimento musical ou afinidade com algum instrumento, acredite, nosso cérebro reconhece quando alguém desafinou.

Como isso ocorre?

Justamente pelo nosso cérebro ter uma precisa interpretação das alturas do som!

Todo instrumento tem suas alturas definidas e só podem tocar essas alturas. E quando um instrumentista erra a precisão da altura de cada nota, ele comete o erro que chamamos de desafinação.

E se seu cérebro achar algo estranho em uma apresentação musical, lhe dê o crédito devido, pois ele sabe o que seu ouvido não sabe!

E aí temos a oportunidade de introduzir um dos melhores exemplos do quesito textura/intencionalidade.

Quando falamos de músicos mais experientes, criativos virtuosos, estes são capazes de alterar sutilmente as frequências das notas com finalidades estéticas e emocionais, fazendo a nota soar ligeiramente abaixo ou acima de seu valor nominal (o que também é chamado de semitonado), com a ‘intenção’ de transmitir emoção, tensão ou expectativa – que só podem ter êxito na mão de músicos realmente talentosos.

E essa conclusão nos remete à primeira pergunta: Como meu cérebro reage a essas sutis diferenças de altura?
De duas maneiras: com estranhamento ou encantamento. Nunca ficaremos indiferentes, pois toda informação considerada nova para o nosso córtex auditivo precisará ser armazenada ou expurgada.

Mas é somente com as alturas que músicos talentosos trabalham para nos chamar a atenção?

Certamente que não, eles também, ao comporem, podem querer usar as alturas brincando com as notas ou bloco de notas, sejam individuais ou criando acordes.

Imagine o teclado de um piano! Estamos acostumados a ver qualquer obra executada neste instrumento ser usado o teclado todo ou pelo menos de duas a três oitavas deste instrumento.

Agora, imagine uma música que use apenas as teclas pretas? Como soaria?

Como nosso cérebro responderia quando exposto a este exemplo?

Quer experimentar como seu cérebro irá reagir?

Certamente você já ouviu muitas e muitas vezes música que toda a introdução e a base foi feita só nas teclas pretas!
Se você tem aí fácil, pare a leitura agora e sente em frente ao seu sistema e ouça Superstition de Stevie Wonder – toda a base da música é tocada somente nas notas pretas do teclado.

Qual foi a intenção do Stevie Wonder?

Pergunte ao seu cérebro.

O que posso dizer é que sua ideia era criar um clima de estranhamento inicial, passando rapidamente para o prazer em acompanhar o ritmo e a batida contagiante. Tensão e relaxamento.

E aí temos mais uma pergunta importante: Se nosso cérebro, no hipocampo, armazena a memória de longo prazo, quando ouvimos ‘sonoridades’ não familiares isso amplia nosso gosto musical?

Essa é uma resposta que os neurocientistas ainda estão debatendo. Alguns acreditam que sim, outros acham que não. Os que discordam desta possibilidade, se baseiam na teoria de que a formação do nosso gosto musical vai apenas da nossa infância até o início de nossa fase adulta (24 a 26 anos).

Eu pessoalmente discordo dessa teoria, pois ao longo dos anos vi inúmeros leitores e leitoras ampliarem significativamente seu gosto musical a partir da evolução de seus sistemas de áudio (abordarei mais a fundo essa minha opinião no último capítulo, quando falaremos de como nosso cérebro interpreta musicalidade).

Voltando à questão das alturas, o sistema musical vigente no ocidente atual é da afinação no Lá de 440 Hz. Porém isso não é obrigatório, e inúmeros compositores não seguem essa norma.

Querem um exemplo bastante famoso de músicos que não seguem essa afinação do Lá 440 Hertz? A banda de rock Led Zeppelin. Eles usaram em inúmeras de suas composições afinações em 439 ou até 424 hertz, com a ‘intenção’ de criar maior tensão e chamar justamente a atenção do seu cérebro para algo diferente do que ele está familiarizado com alturas.

Acho que dei exemplos suficientes de como nosso cérebro interpreta alturas, e como os músicos fazem uso desse elemento para intencionalmente nos chamar a atenção!

E quando os compositores querem intencionalmente nos emocionar, que truque eles utilizam?

Aí, meu amigo, entraremos no campo das escalas musicais em que os compositores utilizam as chamadas ‘escalas maiores’ para que nosso cérebro assimile como algo feliz, altivo ou imponente. Ou ao uso de ‘escalas menores’ para denotar introspecção, tristeza ou solidão.

Todo compositor sabe o quanto essa fórmula é poderosa e necessária para passar emoção a faz uso dela intencionalmente.

Nosso cérebro é capaz, desde muito cedo, de perceber as variações de alturas, desafinação ou troca de andamento nas músicas que ouvimos.

E, para que isso ocorra de forma tão impressionante, os neurocientistas descobriram que as redes de neurônios formam intensamente representações abstratas da estrutura musical, e criam internamente regras musicais para o que nosso cérebro as identifique cada vez que são reproduzidas novamente.

Da infância, até por volta dos 30 anos, a estrutura do nosso sistema neural se encontra no seu apogeu. E à medida que envelhecemos, os circuitos neurais se tornam menos flexíveis, ficando mais difícil para o cérebro aprender novos programas musicais. Lembre-se que tornar menos ‘flexível’ não é o mesmo que impossível de criar circuitos neurais.
Passemos para o timbre dos instrumentos, para mostrar a vocês como a intencionalidade está presente também.

O timbre, uma vez memorizado em nosso cérebro, nos permitirá reconhecer cada instrumento ou voz tocado, como também poderemos perceber como o timbre de um instrumento se altera dependendo da altura em que está soando.
E justamente por essa sutil alteração, que os compositores as usam como maneiras de nos surpreender.

Pegue bons cantores e cantoras, e você irá perceber facilmente que no grave eles conseguem passar um tipo de sentimento e, quando passam ao agudo, as emoções podem ser completamente distintas.

Isso separa os grandes cantores, que conseguem expressar com emoção o que a letra conta, dos cantores simplesmente burocráticos!

E quando falamos de música instrumental, como essa intencionalidade é passada na obra?

Peguemos os impressionistas franceses, como Ravel e Debussy, e teremos exemplos excelentes para entender essa intencionalidade.

Suas obras precisam ser assimiladas mentalmente como cores e paisagens em constante movimento, um mosaico de imagens mentais que nosso cérebro pode fazer livremente enquanto escuta suas obras.

Não é de surpreender que as obras de Debussy e Ravel, principalmente as para quartetos de cordas, duos e solos de piano, são usadas em sessões de musicoterapia em todo o mundo – atualmente até mesmo na China, com pacientes que já não respondiam bem à medicação, com os quais ocorreram melhoras significativas na diminuição de ansiedade e síndrome de pânico.

Se passarmos para o Jazz, temos inúmeros exemplos de intencionalidade que passam enorme expressividade em obras compostas para diversos instrumentos em que a intenção central é substituir a palavra por pinturas sonoras. Permitindo ao nosso cérebro sinapses muito intensas e complexas. Menores apenas que tocar um instrumento.

Isso nos leva ao seguinte questionamento: existem estilos musicais que irão exercitar melhor nosso cérebro?

A neurociência está provando que sim. E mostrando na prática os inúmeros benefícios que ouvir música pode nos proporcionar. No entanto existe a questão de como extrair esses benefícios da audição de maneira mais eficaz, e não pense que é ligando o rádio no seu carro ou o seu sistema em sua casa enquanto você toma banho ou prepara a janta, que irá beneficiar seu cérebro e tirar proveito de todos os benefícios que a música pode nos beneficiar.

E como fazemos isso acontecer, Andrette?

Primeiro aprendendo a ampliar o gosto por estilos musicais mais complexos e, segundo, tendo sistemas bem ajustados em ambientes adequados e preparados para receber essa experiência sonora!

E se não podemos ter um sistema estéreo adequado, o que fazemos?

Um bom fone de ouvido pode ser uma alternativa. O único problema é que um fone jamais terá a espacialidade 3D necessária para enganar nosso cérebro de que não se trata de reprodução eletrônica.

Eu sempre digo que por melhor que seja o fone de ouvido e o amplificador de fone e a fonte musical, nosso cérebro sempre estará na ‘antessala’ e não no local do evento.

Portanto, para nosso cérebro ser ‘enganado’ será preciso um sistema adequado em uma sala silenciosa.

Aí poderemos exercitar nosso cérebro diariamente e dar a ele condições de armazenar em seu hipocampo tudo que lhe for apresentado de maneira eficaz.

Lembro a todos os nossos leitores, que nossos ouvidos são meramente a porta de entrada deste complexo sistema auditivo que temos. E achar que ouvir é o suficiente para desfrutarmos de todos os benefícios da música em nossas vidas é um enorme equívoco.

Nosso cérebro, como tudo na vida humana, precisa ser desenvolvido, trabalhado e aprimorado.

E ter condições e não usufruir dele de maneira plena, é um desperdício completo.

Pois quando devidamente ‘treinado’, nosso cérebro é capaz de distinguir dois instrumentos tocando a mesma nota com alguns milésimos de diferença na sustentação daquela nota, ou ouvir simultaneamente naipes de instrumentos tocando em uníssono ou separado! Isso é uma dádiva, amigo leitor!

Exercite seu sistema auditivo por completo, e terá inúmeros benefícios para toda vida!

Mês que vem vamos falar de Transientes, e suas implicações em ritmo, andamento e métrica.

Mas, para dar um gostinho do que iremos abordar, adiantarei uma parte do assunto.

Em estudos recentes investigando os Centros Superiores do Cérebro e Memória, os neurocientistas descobriram que com um treinamento musical eficiente, é possível realizar mudanças corticais significativas. Aumentando o corpo caloso e melhorando a sinapse do hemisfério direito para o esquerdo intensamente.

E, quando esse treinamento se instala no Hipocampo, essa sinapse é subdividida em dois tipos: episódico (relacionado a eventos) ou experiências que podem ser revividos através da recordação de se ouvir ‘aquela’ música, e semântico que está relacionado à atividade dos fatos.

Recordar uma música envolve ativar tanto a memória episódica da sensação e emoção, quanto a semântica que define aquele acontecimento musical como intenso, leve, alegre ou triste.

E, para aprimorar esse treinamento no hipocampo, o estudo de ritmo, andamento e métrica é essencial (o que, na nossa Metodologia, está no quesito Transientes).

Então, vamos nos preparar para no próximo capítulo entender como nosso cérebro reconhece se uma gravação está precisa em termos de tempo e ritmo, ou se está soando letárgica e sem graça.

Até lá, ouçam muita música e descubram se o seu sistema está devidamente adequado para apresentar as intencionalidades e, na dúvida, escutem o que seus cérebros têm a dizer do seu sistema. Pois ele sabe muito mais que seus ouvidos!

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