Fernando Andrette
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Outro dia um amigo me perguntou se tivesse que usar uma única gravação para avaliação de equipamentos, que disco eu usaria?
Já me vi fazendo essa mesma pergunta, e por muitos anos achei impossível nomear uma única gravação para analisar todos os 8 quesitos da Metodologia, porém ao menos para avaliar alguns quesitos (talvez metade) tenho algumas gravações que me são muito úteis!
Mas uma se sobressai em relação a todas as outras, pela riqueza de músicos que aceitaram o desafio e a forma com que cada solista interpretou essa obra.
Falo das Seis Suítes para Cello Solo, de Bach.
Uma obra que praticamente ficou esquecida por duzentos anos e que foi redescoberta por um dos maiores violoncelistas de todos os tempos, quando ele tinha apenas 17 anos de idade, no final do século 19. Estou falando do espanhol Pablo Casals, que ao se deparar com a partitura ficou tão encantado que, por doze anos, estudou-a diariamente, antes de apresentá-la em público.
A obra redescoberta teve um poder avassalador sobre o público e crítica, e inúmeros violoncelistas passaram a colocá-la em seu repertório. Em um levantamento feito pela revista inglesa Classic, em 2009, mais de 50 gravações das suítes estavam à disposição do público. E praticamente todos os grandes violoncelistas com sólida carreira internacional gravaram essa obra.
Os musicistas acreditam que as suítes foram compostas entre o período entre 1717 e 1723, quando Bach estava em Köthen, como mestre de Capela. Porém, a partitura original nunca foi encontrada, o que chegou ao final do século 19 foram quatro cópias: uma manuscrita pelo compositor Johann Peter Kellner (por volta de 1726), a outra cópia feita pela segunda esposa de Bach, Anna Magdalena Bach (provavelmente finalizada em 1730) e duas outras cópias feitas por dois copistas anônimos por volta de 1750.
As duas cópias mais utilizadas, por todos que se aventuraram a gravar a obra até aqui, foram a da segunda esposa de Bach, e a versão do compositor Kellner, utilizada por alguns.
As diferenças são sutis, mas já criaram enormes discussões a respeito de qual das duas seja a mais fiel ao que Bach escreveu.
Cada suíte possui seis movimentos, e cada uma segue uma estrutura determinada na ordem de movimentos, sendo que cada suíte é constituída por cinco danças precedidas de um prelúdio.
A suíte número cinco é considerada pelos violoncelistas a mais complexa das seis, pelo uso intenso de acordes e cordas duplas, exigindo um nível de virtuosidade e precisão muito elevado.
Óbvio que não conheço todas as gravações existentes dessa obra, mas acredito que tenha escutado (e tenha) as consideradas mais “essenciais”.
Entre essas, a que a maioria dos críticos acham a melhor de todas é a do Pablo Casals, gravada na Abadia de Saint Michel Cuxa, na França, em 1954 (veja o vídeo). A do Yo-Yo Ma, da Jacqueline Du Pré, de Pierre Fournier, e a de János Starker estão entre as que mais escuto.
Mas cada uma delas tem uma interpretação muito distinta, tanto que às vezes temos certa resistência em querer escutar na sequência, pois precisamos entender o motivo dessa suíte “soar” tão diferente nas mãos hábeis de cada um desses consagrados violoncelistas.
Para entender este mistério, é preciso entender que, ao contrário dos instrumentos de afinação fixa (piano, violão, cravo), o cello possui afinação variável, necessitando uma técnica de digitação e afinação muito precisa (e, claro, o instrumento também ser de alto nível).
E ainda que os instrumentos de afinação variável adotem os mesmos referenciais que os instrumentos de afinação fixa, existe uma “flexibilidade” para pequenas “correções” do ponto de vista interpretativo, intencional e contextual (como o que ocorre com a voz humana, que cada timbre possui suas nuances únicas), que possibilitam a estes instrumentos uma assinatura sônica muito mais ampla e que se adequa à personalidade do próprio músico.
Essa “adequabilidade” interpretativa possibilita uma apresentação solística mais pessoal, e Bach soube muito bem exigir do solista, em suas suítes, que ele exponha todo o seu conhecimento técnico do instrumento e sua capacidade de tocar e sentir o que está tocando.
Aí está a chave para entendermos a razão de tão poucos virtuoses conseguirem um excelente resultado ao escolher as suítes para fazer parte de sua discografia.
Alguns se deram muito mal, acreditem. Não vou aqui expor os insucessos, pois não sou crítico de música clássica (não tenho conhecimento suficiente para tanto), mas certamente a maioria das mais de 50 gravações existentes não receberam o selo de recomendação das revistas especializadas. Pois essa obra exige mais do que técnica virtuosística para ser tocada. É preciso que o músico assimile e interprete corretamente o discurso musical existente em cada nota.
Quem me chamou a atenção para este crucial detalhe, foi meu professor de iniciação musical da Fundação das Artes de São Caetano, que nos apresentou três versões da obra: Pablo Casals, Du Pré e Rostropovich.
Ouvimos com os três a suíte número 1 na íntegra, e depois tivemos que responder qual nos pareceu mais técnica (no sentido rigoroso de seguir à risca a partitura), a mais fluente (no sentido de nos guiar pela melodia) e a que tinha as duas qualidades na mesma proporção.
Por unanimidade a classe definiu como a mais técnica a do violoncelista russo, a mais fluente (mas com menor rigor técnico) a de Du Pré, e a que tinha a hábil precisão e a fluência simultaneamente, do espanhol Casals.
Depois de escutar a suíte 1 com Pablo Casals, ouvir as outras duas interpretações parecem muito mais limitadas do que realmente são.
Aí que finalmente chego à explicação de usar esta suíte para análise de alguns dos nossos principais quesitos: equilíbrio tonal, textura, transientes, dinâmica (micro principalmente) e corpo harmônico.
É possível com duas outras faixas da suíte (minhas preferidas: 1, 5, 8, 12 e 15), observar todos esses quesitos. E se o sistema for de altíssimo nível (não estou falando de preço, somente de performance e sinergia entre setup, elétrica e sala), observar as gravações que aliam precisão técnica e fluidez melódica.
E ir além, ao poder observar até os solistas que estavam inteiramente “à vontade” em gravar essa obra e os que se sentiram “obrigados” a gravar as suítes.
As suítes nos contam uma história feita apenas de notas e acordes, capaz de nos falar à alma e ao coração. É preciso lembrar que Bach era um homem profundamente religioso e que nunca escondeu que a música para ele, fosse sacra ou não, era uma forma de devoção a Deus!
Meu professor de iniciação musical nos deu uma dica importante de como separar os que entenderam o discurso musical intrínseco nas suítes, dos que apenas executaram corretamente o que está escrito na partitura: “Ouça-as como se estivessem escutando uma oração de louvor”!
Em nossos sistemas o mesmo efeito se repete. Se não conseguir nos “tocar” cada vez que escutamos uma obra que tanto admiramos, ele pode tecnicamente ser correto e de excelente nível, mas ainda falta aquele último elemento de arrebatamento, que faz desaparecer o tempo e o espaço a nossa volta.
Ouvir as suítes para Cello de Bach é uma excelente prova para saber exatamente em que direção o sistema que você investiu tanto tempo e dinheiro seguiu.
Se estiveres curioso para ter essa resposta sugiro três gravações desta suíte que podem lhe ajudar.
Minhas preferidas, para essa imersão e reconhecimento dos meus setups e dos produtos que testo mensalmente são: Pablo Casals, János Starker (minha preferida de todos os tempos) e Yo-Yo Ma (que vem crescendo a cada ano e quase se igualando as outras duas).
Mas como escrevi no texto, são mais de 50 opções. Talvez a sua preferida esteja entre essas.
Boa sorte!
Uma interpretação mais recente das suítes com a cellista Anne Gastinel.
1 Comments
Certamente você conhece a versão de Pierre Founier, a única que na minha opinião supera Casals