Esta frase ouvi tanto em minha infância que, sinceramente, não me recordo quem a disse primeiro. Mas parece que a curiosidade realmente pode levar alguns a perder o sono. E não me venham dizer que isto é coisa de mulher, pois o homem é até mais curioso. O que difere a curiosidade do homem e da mulher é apenas em relação ao tipo de assunto. Mas a curiosidade é uma característica humana inata.
Dei este título ao Espaço Aberto deste mês, por um simples motivo: a quantidade de mensagens que recebemos querendo saber qual foi o disco que ocasionou tanto reboliço na família Andrette a ponto de eu me tornar um desgarrado em termos musicais!
Sinceramente, achei que este texto poderia sair em um outro momento, só não imaginei que a curiosidade de tantos leitores em conhecer o disco de tamanha discórdia, seria tão grande! Então, atendendo a pedidos e buscando amainar a curiosidade de muitos, vamos a história.
Depois de meu primeiro compacto simples, comprado com a minha primeira mesada integral, descobri outras prioridades como, por exemplo, ir com os amigos pela primeira vez à Galeria Pajé, comprar meu primeiro jeans Lee.
Sim meus amigos, minha idade não se restringe apenas a ter acompanhado missa em latim, também, como tantos jovens dos anos setenta, sofríamos com a impossibilidade de comprar jeans importados que não parecessem com lonas de caminhão que não se moldavam ao corpo e soltavam uma tinta tão grande que precisavam ser lavados separadamente de toda a roupa. Se quer me tirar do sério é ver alguém defender reserva de mercado como algo bom para o país!
Não foi boa em nenhum setor. No de roupa, por exemplo, a diferença de um jeans importado para o jeans nacional era como ir daqui à lua.
Então, a única maneira de conquistar seu jeans importado era, em São Paulo, se sujeitar a peregrinar pela Galeria Pajé, subir seus 13 andares a pé, ir de sala em sala, e aguentar aqueles asiáticos mal humorados e extremamente ressabiados com todo jovem que adentrava a loja. As salas que não tinham provador de roupa eram sumariamente descartadas, pois isto já era um indício de que eram jeans falsificados. Sim, meus amigos, o Paraguai já existia e já era o centro de falsificação e muamba da América do Sul.
Havia um truque para saber se o jeans era americano ou falsificado, e para saber era preciso um provador de roupas. No provador, com os modelos e os tamanhos, era só cuspir no bolso e esfregar com força em várias partes do jeans. Se soltasse tinta era paraguaio, se não soltasse tinta nenhuma, era autêntico!
Para comprar meu primeiro jeans e ficar bacana como meu irmão mais velho e poder frequentar os bailinhos de final de semana, o jeans original era o cartão de visita de que você era descolado e havia conquistado uma certa independência dos pais.
Pois, afinal, que mãe ou pai se sujeitaria a ir com o filho em uma peregrinação de horas na Galeria Pajé para comprar um jeans em salas lotadas e sem elevador?
Para comprar este tão sonhado jeans original, tive que juntar seis a sete meses de mesada, o que criou um hiato de quase um ano entre o meu primeiro compacto simples e meu primeiro LP.
Como meu irmão mais velho era meu ponto de referência para os deslocamentos de ônibus pela cidade, precisei implorar para ele me dizer como chegar ao centro da cidade, até a tão falada e aclamada loja Museu do Disco! Os amigos do meu irmão e ele também só compravam seus discos lá.
Lembro do selo prata e preto que vinha colado no celofane, com a logomarca, e ficava só ouvindo meu irmão descrevendo para o meu pai os lançamentos do mês e a variedade de discos que lá existia.
Ele também nos dizia que o som da loja da Rua Sete de Abril era muito bom e possuía um par de caixas gigantes que fazia com que muitos ficassem na calçada só para apreciar o som que vinha da loja. Aquelas descrições foram me deixando maluco de curiosidade em conhecer esta tão importante loja de discos.
Lembro-me de ter perguntado ao meu irmão quanto precisaria juntar para poder comprar um disco lá e quanto gastaria de condução.
Feitas as contas, e já com meu jeans Lee original e a uma das minhas três camisetas Hering branca de botões, me paramentei e lá fui eu com uma cola no bolso com o ônibus que precisava pegar até a Praça da Luz, e depois um mapinha de como chegar até a Rua Sete de Abril. Meu coração parecia sair pela boca, tamanha a expectativa. Hoje lembrando esta passagem eu me pergunto se não teria sido bom ter ido em grupo com os amigos de escola.
E se não fui, certamente este ritual de passagem da infância para a adolescência, tinha que ser do jeito que ocorreu!
Minha memória só gravou a descida na Praça da Luz, eu atravessando por dentro a Estação da Luz, saindo do outro lado e seguindo reto até chegar na Av. Ipiranga, ficar do lado esquerdo na avenida Ipiranga, passar por uns três grandes cinemas repletos de pessoas entrando e saindo, até finalmente avistar a Sete de Abril e chegar na loja. Por mais que meu irmão a tenha descrito centena de vezes, o impacto de ver a loja, a caixa gigante (vista pela ótica de um garoto de 12 anos), e aquela muvuca de pessoas escolhendo seus discos, me deixou paralisado por alguns segundos.
Lembro-me de pedir ajuda a um vendedor onde estava a seção de rock e, depois, só tenho flashs da angústia de não saber sequer o que pegar para ouvir, tamanha a variedade de discos.
Fiquei ali olhando as capas, descobrindo bandas que jamais havia escutado sequer o nome. T.Rex foi uma capa que me chamou muito a atenção. David Bowie idem. Led Zeppelin que meu irmão tinha o Volume 1.
Com a dúvida aumentando, e quase desistindo de não ter vindo com uma lista de prioridades, fui resgatado por um casal muito jovem, que acho que se compadeceu de minha ineficiência em organizar meus pensamentos e puxaram conversa.
Eles pareciam saber tudo sobre rock, mas duas palavras que a garota falou me chamaram muito a atenção: Rock Progressivo. Sem coragem para perguntar que diabos era isso, o rapaz virou para mim e disse: “Se você não conhece, vale a pena. É um rock mais elaborado, com pitadas de música clássica, jazz e até alguma coisa de ópera”. Sua explicação ficou soando em minha mente como um bálsamo. Afinal existia um gênero que reunia todos os estilos que eu escutava em casa desde que usava fraldas, e era moderno? Como meu irmão mais velho não sabia que existia Rock Progressivo?
Tomei coragem e pedi ao casal ajuda para comprar um que fosse a expressão máxima desta nova vertente do Rock. A moça pegou alguns, e depois de olharem e trocarem algumas palavras me entregaram um com uma capa muito estranha- uma enfermeira com um taco, mirando umas cabeças ao chão! Achei bizarro, mas confiei plenamente no casal. Paguei e levei lacrado para casa. Era um final de sábado, os casais continuavam a sair e entrar nos cinemas da Av. Ipiranga em um ritmo ainda mais frenético.
Voltei para casa certo que iria arrasar nas audições dominicais. Afinal, estava levando um novo gênero musical que agradaria a todos os membros da família: rock, pitadas de música clássica, talvez alguma faixa com vocais operísticos. Cheguei em casa meus pais já tinham jantado e queriam saber por onde eu andara. Ao verem o LP em uma sacola do Museu do disco, se acalmaram. Não via a hora de mostrar a toda a família meu primeiro LP! Uma escolha que abriria o universo musical de todos e a descoberta havia sido minha!
Na audição dominical após o almoço, meu pai não me escolheu para abrir as audições e começamos ouvindo uma trilha de cinema do meu irmão do meio.
Depois veio minha mãe com um trecho de Madame Butterfly e, finalmente, com a ausência de meu irmão mais velho, que havia saído para namorar, me foi dada a honra de mostrar meu primeiro LP!
Nunca vou esquecer o desapontamento na cara de todos e a vontade daquele martírio sonoro acabar!
Enquanto cada um foi arrumar algo mais interessante para fazer, só ficou eu e meu pai na sala e ele logo deu um jeito de escapar daquela situação, só me lembrando de desligar tudo depois de ouvir todo o disco.
Em um primeiro momento fiquei muito triste e desapontado, mas a música logo me chamou tanta atenção, que em minutos estava imerso naquele mar de informações.
A música era absolutamente sedutora e eu me encantei de imediato pelas melodias, arranjos e a forma operística do cantor!
Sim, tudo que o casal disse do Rock Progressivo era verdade, só precisava ter paciência e boa vontade para perceber! Antes de acabar o lado A, minha mãe pediu para baixar o som, depois meu irmão e finalmente meu pai. Foi a deixa para eu escutar todo o lado B no fone de ouvido (para alívio da família). Ali se estabeleceu a ruptura.
Pois nossas tardes musicais estavam chegando ao fim. Meu irmão mais velho estava em outra fase da vida, meu outro irmão também cada vez mais embrenhado na igreja nos finais de semana, e meu pai e minha mãe cada vez mais distantes, já não se entendiam mais.
Hoje, quando lembro deste episódio e coloco para escutar Nursery Cryme, do Genesis, é um dos discos que mais me causa um turbilhão de sensações e lembranças antagônicos.
Pois, se por um lado guardo em mim o impacto que foi descobrir o Rock Progressivo aos 12 anos de idade, por outro me traz a lembrança do término daqueles saraus dominicais que, além de unirem a família em volta da vitrola, expunham de forma clara o gosto musical que cada um levou por toda vida. Em casa fui o único que abraçou um número muito grande de estilos musicais. Todos sempre se restringiram a um ou dois gêneros, no máximo.
E devo parte desta diversidade aos meus familiares, que me deram a oportunidade de apreciar a música clássica, o jazz, a ópera, o rock, trilhas de filmes e, ao jovem casal, que me apresentou o Rock Progressivo. À Stela e ao Maicon, meu eterno agradecimento!