Todos temos nossas memórias, que nos lembram nossas conquistas e nossas derrotas. Nossos sonhos realizados e nossas frustrantes decepções. Minha vó dizia: “Quem não têm memória, não pode ter vivido plenamente”. Pois o que somos hoje é a soma de tudo que já fomos e nossa memória é nosso arquivo pessoal, que carregamos por toda a nossa existência!
Já escrevi algumas vezes que minhas principais memórias, aquelas mais longínquas da primeira fase da vida, são quase todas olfativas. Já da fase ginasial em diante, todas as memórias mais intensas, são auditivas, ou melhor: musicais! Minha mãe era uma esposa muito preocupada com a educação curricular e de formação para o mundo. Foi ela que me despertou o interesse pela leitura e pelas artes, e tinha o mesmo ‘DNA’ do seu pai, meu avô Fernando Condurú, que era um retratista nato!
Em uma das minhas lembranças mais marcantes, sou eu e ela sentados à mesa na cozinha, tentando acabar mais uma página no caderno de caligrafia, com lágrimas escorrendo pelo rosto e minha mãe rabiscando uma folha de sulfite. Quando ela acabou o meu retrato, com tamanho realismo, fiquei impressionado com o seu talento! Alí, aos 6 anos de idade, descobri um dom que desconhecia que minha mãe tivesse. Mas sabem como guardei aquele momento tão vivo em minha memória?
Pelo olfato, pois enquanto minha mãe me desenhava e cobrava minha caligrafia, a panela de pressão zunia em nossos ouvidos, cozinhando feijão.
Entrei no primeiro ano primário com 6 anos (ainda por fazer) e aos 10 anos já estava indo para o primeiro ano do ginásio. Minha memória auditiva foi lentamente se apropriando da minha mente à partir dos 7 para 8 anos. Mas, se tentar colocar em ordem cronológica a inversão das memórias olfativas para as auditivas, diria que se deram integralmente a partir dos meus 9 anos. A partir deste momento, 90% de minhas memórias são todas auditivas. Se você me pedir para localizar em minha memória um natal, eu apenas preciso associar a música que estava tocando naquela data (meu pai adorava fazer trilhas e registrar em fitas de rolo, para datas com a família reunida). Os anos incríveis de minha adolescência, todos os principais momentos estarão ligados à uma música ou à alguns discos. Para todas as minhas namoradas, gravei fitas cassetes, e ainda que muitas não entendessem a mensagem subliminar, aquela trilha era a tentativa de colocar em música aquilo que não conseguia expressar em palavras. E, antes que você me pergunte se namorei alguma garota que não gostava de música, a resposta é um sonoro não! Pois não conseguiria conviver por um dia com uma pessoa que não gostasse de música. Não gostar de poesia, até seria tolerável, mas não apreciar música seria muito distante de meu universo. Sempre brinquei que, com meu pai e meus irmãos, nos comunicávamos muito mais pela música do que com palavras. Quando ia aos sábados visitar meu pai, só de ouvir ainda na rua o que ele estava a escutar, eu já sabia qual era seu estado de humor naquele momento. O mesmo se dava com os meus irmãos. Isso me ensinou uma bela lição que carrego pela vida: se estivermos atentos aos detalhes que os outros nos passam, criaremos relações muito mais profundas e sinceras! E a música exprime com sabedoria o estado emocional das pessoas em diversas fases da vida. Porém, para muitos, determinados gêneros musicais exprimem sempre determinados estados emocionais, que são associados com tristeza ou melancolia.
Algo que nunca concordei, mas já desisti de tentar explicar que não estou triste ou arrasado quando escuto o Adágio de Albinoni, ou Astor Piazzola, rs! Pois muitos associam essas obras a estados de melancolia trágica.
A música para mim transcende essas associações, pois quando ouço essas obras tento compreender o que o compositor estava a sentir e pensar e não o que esta obra me transmite.
Claro que sei que Adiós Noniño foi composta no momento em que Astor Piazzola soube da morte do seu pai. E obviamente existe ali uma carga de dor, difícil de não notar. Porém, se o ouvinte for sensível, perceberá que também há respeito e admiração, tornando aquele momento tão lírico e único que nos faz compreender como cada um trabalha o seu luto e que não necessariamente é feito apenas de dor e lágrimas.
Essas obras que aqui citei me fazem refletir sobre a real condição humana, repleta de incertezas, percalços, mas também de inúmeras realizações. Não somos seres lineares, todos experimentamos a dinâmica presente em todos os fenômenos universais.
Um filósofo uma vez escreveu: “A morte de uma estrela é tão trágica quanto toda a miséria humana”.
Voltando às relações familiares, consegui perceber desde muito cedo como as músicas que todos nós escutávamos, substituíam com mérito a falta de diálogo, o que foi se tornando mais frequente à medida que meus pais se distanciavam e meus irmãos cresciam.
Assim como as namoradas, jamais tive amigos que não gostassem de música. Aliás, para se tornar amigo, de levar em casa para ouvir música, tínhamos antes que saber do que gostavam e se era consistente o suficiente seu conhecimento musical (era um interrogatório minucioso).
Pois caso este novo potencial amigo ainda estivesse na fase de ouvir música somente no rádio, sua entrada no grupo seria negada. Éramos radicais como todo adolescente é nesta fase da vida.
Felizmente os extremos a vida corrige, e nos possibilita aceitar o outro como ele é. Mas, querer isso de um adolescente é esquecer que todos nós passamos por esta fase radical.
Olhando hoje para o passado, vejo que minhas memórias estão associadas a uma enorme trilha musical, que vai de canto gregoriano à Penderecki, com fases muito marcantes para determinados estilos musicais, como rock progressivo, jazz, música instrumental brasileira, música étnica.
Um mosaico de ritmos e estilos que traduz de forma precisa o que sou, o que sinto e no que acredito.
Minha memória musical não me deixa esquecer nenhum detalhe essencial de minha existência. Por isso a preservo tão intensamente e a alimento com uma dose diária de audições antes de me recolher para o justo descanso.