MUSICIAN – Bibliografia: O Neobarroco e o Neoclassicismo do Século XX

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Omar Castellan
revista@clubedoaudio.com.br

A influência da segunda fase de Stravinsky – quando ele se ocidentalizou e se voltou para os melodismos de Haendel e Pergolesi e para as ‘formas musicais’ da primeira metade do século XVIII – refletiu-se nos movimentos Neoclassicistas e Neobarrocos da música contemporânea. Escolas, tendências e vanguardas confundiam-se. O antigo de ontem podia perfeitamente ser o moderno de hoje, e o incompreendido de hoje a vanguarda de amanhã. O mundo girava cada vez mais rápido, e a música tratava de acompanhar esse compasso. Muitas vezes, adiantava-se, tanto que, em vários aspectos, até hoje não foi compreendida.

Na França, a ressurreição da música ‘antiga’ foi abraçada pelo programa dos Six. O teórico do Groupe des Six (‘Grupo dos Seis’) foi o escritor e cineasta Jean Cocteau (1889-1963) que, no seu manifesto Le Coq et l’Arlequin (O Galo e o Arlequim, 1918), exprimiu ideias estéticas coincidentes em muitos pontos com as de Satie e Stravinsky. No seu escrito, Cocteau ridicularizava não só o sublime e o retórico, próprios, segundo ele, da arte musical germânica, mas também o impressionismo de Debussy e o mundo eslavo de Mussorgsky. Como solução, advogava a renúncia a um excesso de sonoridade e um regresso ao primitivo. Para ele, a volta ao estilo do café-concert, do circo e da feira eram caminhos válidos para escrever ‘obras essencialmente construídas, equilibradas, desenhadas com um traço firme e seguro, uma orquestra sem a carícia dos instrumentos de corda, como se fosse uma banda, formada por instrumentos de madeira, metal e percussão’. Apesar de muita publicidade, nem todos os integrantes do Grupo dos Seis conseguiram sucesso: Louis Durey e Germaine Tailleferre, autores de lieds e de boa música de câmera, ficaram à sombra dos outros; Georges Auric teve reconhecimento tardio com o bailado Phèdre, quando o grupo já estava disperso. Na realidade, para a história e para o público, os ‘Seis’ são apenas ‘Três’: Poulenc, Milhaud e Honegger.

Francis Poulenc (1899-1963), o representante mais típico dos princípios dos Six e das ideias de Cocteau, introduziu na música francesa a euforia, o encanto, o agradável. É um clássico sensível e anti- acadêmico, à maneira de Couperin, Scarlatti e Ravel. Nada em sua música evoca a secura do Neoclassicismo convencional. Parisiense típico e bastante espirituoso, ele foi um mestre das pequenas formas, capaz das mais brilhantes paródias, nas quais deixava entrever a profundidade do sentimento. Produziu coros esplêndidos, profunda música religiosa, canções e peças instrumentais. A melhor definição para a sua pessoa foi proposta por um dos seus biógrafos, que afirmou ter ele um pouco do ‘menino travesso’ e um pouco do ‘monge’. Do primeiro, surgiram: Le Bestiaire (O Bestiário, 1919), contendo seis retratos de animais, que na realidade são estudos psicológicos das fraquezas humanas, baseadas em textos de Apollinaire, em forma de canções; Mouvements Perpétuels para piano (1919); e o bailado Les Biches (As Corças, 1924), escrito para os Bailados Russos de Diaghilev, em que a fantasia e ternura expressam-se com grande espontaneidade. Dentre as suas obras concertantes, destaca-se o belo Concerto para Órgão (1938), que traça linhas sonoras que brilham, correm, enternecem-se e retornam com novo vigor, para, finalmente, perderem-se em uma atmosfera imaterial; nele, todos os recursos do órgão são valorizados, como também toda a extensão de seu registro sonoro. Porém, é na fé profunda de sua porção ‘monge’ que a carreira de Poulenc, por vezes, atinge os píncaros em Figure Humaine (1943), para coro duplo, com poemas de Eluard; no Stabat Mater (1950) e na sua obra-prima, a ópera Dialogues des Carmélites (O Diálogo das Carmelitas, 1957), sobre um texto de Bernanos, que retrata musicalmente uma história de perseguição religiosa durante a revolução francesa – a daquela tímida jovenzinha que, tomada pela fé e por desejos sinceros de liberdade, aceita com serenidade a morte na guilhotina, ao lado de suas companheiras de devoção. Essa página corresponde a um drama de valor atemporal, da mais alta inspiração e admirável mestria. Ele também pode ser considerado um ‘inovador musical’, no monólogo La Voix Humaine (A Voz Humana, 1959), drama íntimo de uma mulher que, depois de ter sido abandonada pelo amante, tenta mais uma vez lhe telefonar. Poulenc é, sem dúvida, um ‘grande mestre menor’. As principais qualidades de sua música são a espontaneidade da inspiração e a perfeição do estilo; não lhe devemos nenhum enriquecimento da técnica musical, mas ele sempre alcança admiravelmente seu objetivo, quer se trate de comover, quer de seduzir. Sua originalidade não está na audácia, mas na naturalidade, que lhe permitiu inventar um classicismo bem pessoal.

‘Francês da Provença e de religião judaica’: era assim como Darius Milhaud (1892-1974) gostava de ser classificado. Formado academicamente no Conservatório de Paris, a sua vasta produção (mais de 500 obras, e algumas delas de grandes proporções) é uma das mais importantes na primeira metade do século XX nos Países latinos. Viveu entre 1914 e 1918 no Brasil, como diplomata, e entre 1919 e 1945 nos EUA, como exilado. Para ele, a politonalidade foi uma necessidade plasmada dentro de si mesmo e empregou-a sobrepondo duas ou mais melodias pertencentes a tonalidades diferentes, o que formava um tecido polifônico e denso. A sua posição estava muito distante das experiências paralelas, exclusivamente atonais, que realizavam, então, Stravinsky e, mais sistematicamente, Schoenberg. Na realidade, o seu propósito era enriquecer a sua linguagem sem nunca chegar à ruptura com o sistema tonal, e sim potencializá-lo. A isso se junta a instrumentação característica de Milhaud, que consistia na utilização de grupos de instrumentos insólitos na época, como os de percussão, em especial a bateria. Pode-se criticá-lo por acumular lado a lado o raro e o ordinário, o sério e o fútil. No entanto, o milagre de seu gênio é precisamente a inesgotável espontaneidade, a alegria de criar, livre de qualquer megalomania ou de autossatisfação.

Como fruto da estada de Milhaud no Brasil, surgiu a suíte Saudades do Brasil (1920-21), que compreende doze danças sobre melodias e ritmos sul-americanos, concebida tanto para piano solo quanto para orquestra. Outras criações dele, inspiradas em temas brasileiros, foram o balé Le Boeuf sur le Toit (O Boi no Telhado, 1920), sua partitura mais célebre, em que explora mais as impressões da exuberância da vida urbana, no caso, o Carnaval do Rio de Janeiro, do que dos sortilégios da natureza; Carnaval d’Aix (1924), ‘fantasia’ para piano e orquestra que apresenta um maxixe; e Scaramouche (1937), suíte para dois pianos, composta por três trechos exóticos para o público europeu, que culminam em um samba de ritmo desenfreado e muito sincopado, com harmonias ‘primitivas’ sabiamente dosadas. No balé La Création du Monde (A Criação do Mundo, 1923), obteve uma das fusões mais bem sucedidas entre o jazz e formas clássicas como a fuga. A sua consagração internacional foi conquistada perante o grande público, com a estreia da imensa ópera Christophe Colomb (Cristóvão Colombo, 1930), em que ele experimentou a bitonalidade e a compactação extrema. Podem-se encontrar, ainda, verdadeiras obras preciosas em sua imensa produção musical, como a Suíte Provençale (1936), para orquestra, e o quinteto de sopros La Cheminée du Roi René (1939), obras de música sincera e espontânea que evocam, sem afetações gratuitas, as paisagens e os perfumes da Provença, tão cara ao compositor.

Devido à sua formação, Arthur Honegger (1892-1955), de origem suíça, foi o membro mais independente do Grupo dos Seis; na realidade, sempre divergiu dele: ‘Não tenho o culto da feira, nem do music-hall, mas, pelo contrário, o da música de câmara e da música sinfônica no que têm de mais sério e austero’, declarou. Inimigo de qualquer sistema, ele se tornou puro artesão e músico ‘popular’ (‘a música deve tornar-se direta, simples, de muita personalidade; o povo não liga para a técnica e para o esmero’), e dedicou, enfim, um culto a Bach e Beethoven (descoberto ainda na infância). Sua escrita, de um lirismo vigoroso, adota polifonias complexas e tende, geralmente, para o drama; o que é de se lamentar que Honegger não tenha realmente composto óperas. Nos primeiros anos, foi um músico agressivo, transformando-se, mais tarde, em um tradicional. Tornou-se famoso pela peça orquestral Pacific 231 (1923), uma descrição programática de uma locomotiva a vapor, a qual se transformou no símbolo de uma época, de uma geração sensibilizada pelas novas tecnologias, que parecem encontrar nessa música a sua expressão artística por excelência. No entanto, as suas mais poderosas criações são os oratórios, Le Roi David (O Rei David, 1921) e Jeanne d’Arc au Bûcher (Joana D’Arc na Fogueira, 1938), como também as grandes sinfonias. Em O Rei David, Honegger provou ser um compositor dramático cuja música pode não necessitar da representação no palco para nos emocionar; ela é ‘livremente tonal’, utilizando duras dissonâncias, sem privá-la do sentido harmônico. A suíte orquestral tirada dessa obra conquistou as salas de concerto. Joana D’Arc na Fogueira é o único oratório autêntico do século XX, o ponto culminante da obra de Honegger. Nessa página, de representação tão variada e de inesgotáveis recursos, o compositor coloca a pureza ao lado da luxúria, a canção popular junto aos gritos de morte, as atividades desenfreadas dos poderosos em contraste com o canto tranquilo da paisagem. A fantasia do poeta Paul Claudel, mística, realista e poética, cria oportunidades ao músico para empregar seu conhecimento de todos os estilos, o canto gregoriano ao lado do jazz, a tonalidade dissonante ao lado do simples acorde. Honegger, também, amplia as possibilidades do conjunto instrumental, utilizando pela primeira vez, em uma obra de peso, as novas sonoridades eletrônicas etéreas do Ondes Martenot.

O ciclo das cinco sinfonias de Honegger, compostas entre 1930 e 1951, constituiu um sucesso mais duradouro, principalmente a Segunda e a Terceira. A Segunda Sinfonia, composta durante a Segunda Guerra Mundial, em Paris, é uma obra sombria para orquestra, apresentando uma conclusão comovente e surpreendente, na qual o trompete toca um coral otimista, sendo Bach a fonte de inspiração. Considerada uma de suas melhores obras, a Terceira Sinfonia (1945-46), conhecida como ‘Litúrgica’, vai buscar os seus subtítulos para cada um de seus três andamentos na Missa do Réquiem – os gritos das profundezas da dor e a invocação ao Juízo Final transformam-se em documento de uma época, a do pós-guerra.

Honegger retrata musicalmente o combate que se trava no coração entre o abandono às forças cegas que o sufocam e o instinto de felicidade, o amor e a paz, o sentimento de refúgio divino.

A música alemã do século XX é muito diferente, em sua concepção, da produzida nos decênios anteriores. Além disso, opõe-se, em muitos aspectos, aos princípios básicos que presidiam a arte musical do século XIX, e isso em diversas facetas. A trajetória de três alemães, Busoni (de origem italiana por parte materna, mas alemão por parte paterna e formação), Weill e Hindemith – é uma demonstração de que três variantes de uma mesma estirpe puderam ser tão próximas e, ao mesmo tempo, tão díspares, demonstrando como o mundo se agilizava. Busoni tratava de retornar às origens do clássico mais radical, Hindemith buscava a fonte do barroco e Weill variava entre os dois no rumo da fogueira social.

Pianista legendário e famoso por suas memoráveis transcrições de peças para órgão de Bach, Ferrucio Busoni (1866-1924) é o verdadeiro precursor do Neoclassicismo. Embora formado na tradição romântica, previu o que seria a música moderna. O seu escrito teórico ‘Esboço de uma Nova Estética da Arte dos Sons’ surpreende pela sua posição avançada, defendendo uma liberdade tonal ilimitada e um regresso às origens a partir do zero. Suas teorias acabaram sendo a base para trabalhos especialmente vanguardistas, como as do tcheco Alois Hába ou de Edgard Varèse. No entanto, Busoni jamais aplicou em sua própria música as teorias ultramodernas que preconizara. Sua maior música foi, certamente, aquela que idealizara e que nunca chegou a escrever. A trajetória foi essencialmente essa – a de um pianista fantástico e de um teórico ousado e importantíssimo, e não a de um compositor fundamental. Sua obra ambiciosa é o Concerto para Piano, Coro Masculino e Orquestra (1903-1904), cujos cinco movimentos devem ser tocados sem interrupção; corresponde mais a uma sinfonia com piano obligato do que um concerto tradicional, apesar da dificuldade da parte do solista. Entre as suas composições, sobressai a ópera Doktor Faustus (1916), com coros grandiosos.

Figurado entre os compositores mais citados e polêmicos de sua época, como também um dos mais influentes na música alemã desde 1920 até 1950, Paul Hindemith (1895-1963) representou o auge do que poderia ser denominado de ‘Neobarroco’. Trabalhou essencialmente as antigas formas musicais – a fuga, a sonata e a suíte – e compôs uma quantidade inimaginável de músicas. Sua filosofia era, acima de tudo, antirromântica, e sua música tinha as raízes na música alemã, sobretudo aquela do período que vai de Bach a Beethoven. Seu grande objetivo era demonstrar que a música alemã não estava esgotada. Na juventude, namorou as vanguardas e a sua música dissonante causava espanto, apesar do talento, que era conhecido por todos. Na realidade, era mais um músico para músicos do que para o público, mas nem por isso pouco importante. Excelente instrumentista (dominava perfeitamente a viola e o violino), ele tocava todos os instrumentos de uma orquestra, além de conhecer música profundamente e apresentar uma enorme facilidade para compor. Mundano e sofisticado, Hindemith foi considerado um compositor revolucionário, uma espécie de ‘Prokofiev germânico’, capaz de chegar à última palavra da dissonância e atonalidade. Entretanto, nunca chegou nem perto da música atonal, mas suas partituras ásperas e dissonantes deram à sua obra um aspecto que provocou vários equívocos de avaliação. O mais grave deles talvez seja exatamente esse – considerá-lo um paradigma da revolução musical na Alemanha da época. Sua obra mais famosa é a Sinfonia Mathis der Maler (‘Mathias, o Pintor’), de 1935 – três movimentos orquestrais tirados da ópera homônima, que conta a história da vida do pintor medieval Mathias Grünewald, autor do Altar de Isenheim; nela, exprime as ânsias sociais e as angústias espirituais daquele e do nosso tempo. Essa obra foi considerada como ‘arte degenerada’ pelos nazistas, e foi o começo da sua perseguição, depois o exílio nos Estados Unidos. Na série Kammermusiken (‘Músicas de Câmara’), escritas na década de 1920, busca a objetividade em uma polifonia mecânica, sem paixão, sem oposição de ideias, sem sorriso – a estética impassível para músicos robôs. O drama sangrento (sobre um ourives que assassina os seus clientes), tirado de um conto de Hoffman bem expressionista, é o tema da ópera Cardillac (1926), em que Hindemith leva sua lógica ao absurdo através de uma música fria e linear, inexpressiva e indiferente às situações dramáticas. Já Der Schwanendreher (‘O Cisneiro’, 1935) trata-se de um meditativo e suave concerto para viola, baseado em velhas canções folclóricas alemãs, de terna inspiração, melancólico e eloquente. A suíte para orquestra do balé Nobilissima Visione (1938), obra impregnada tanto de humanismo quanto de valores místicos, demonstra o domínio da forma e do tratamento contrapontístico do músico alemão. Também, de elevada inspiração, é a coleção de lieder Marienleben (‘A Vida de Nossa Senhora’), de 1922, revisados em 1948. Apesar de um título chato e extenso, a suíte Metamorfoses Sinfônicas sobre Temas de Carl Maria von Weber (1943) apresenta-se extrovertida e alegre, com melodias deliciosas e harmonia com tempero do século XX. Geralmente, Hindemith é lembrado não como compositor, mas como um professor genial, não fosse pelo fato de que, quando suas obras são boas, elas se colocam entre as mais características e impressionantes do século.

Um dos alunos de Busoni conseguiria mais êxito que o próprio mestre – o alemão Kurt Weill (1900-1950). Na verdade, ele surgiu como compositor de música moderna. Teve certo êxito na apresentação de suas obras, mas com uma característica amarga e curiosa: elas nunca tornavam a ser executadas. Seu público era restrito praticamente à Sociedade Internacional de Música Contemporânea. Mas, a partir de seu encontro com o dramaturgo Bertold Brecht, encontrou seu verdadeiro ofício. Nos anos 20, ele alcançou o maior êxito entre todos os compositores alemães de ópera, com Die Dreigroschenoper (‘A Ópera dos Três Vinténs’), na qual traduziu o clima de decadência e sarcasmo da Alemanha que se aproximava do Nazismo. Foi um dos primeiros compositores, provavelmente o primeiro, a trazer, sem nenhum disfarce, desprezando qualquer atalho, a problemática social de emergência para a música. Também, com Brecht, lançou-se em um trabalho mais extenso e ambicioso, outra furiosa sátira social, Mahagonny. Em 1935, na antevéspera dos horrores que estavam por vir, Weill foi para os Estados Unidos. Tornou-se um compositor bastante popular na Broadway; no entanto, o gênio dramático de Brecht representava um papel preponderante no seu êxito, e o que compôs com outros libretistas resultou em obras de interesse musical e dramático bem menor. Com sua inesgotável invenção de canções emocionantes e importunas, e pelo emprego bastante hábil de pequenas formações instrumentais, a obra de Weill aproxima-se mais da comédia musical americana e da balada popular berlinense do que da ópera. Se ela não foi ousada em sua estrutura ou revolucionária na linguagem, abriu um caminho paralelo e profundo – buscou na pulsação do dia a dia as bases para um trabalho cujo intuito era justamente traduzir as agonias e angústias dessa realidade opressora, sufocante.

Danza de aldeanos – Peter Paul Rubens (1577-1640)

Também é Neobarroco, pelo menos em parte de sua obra, um dos grandes mestres da música moderna, o inglês Benjamin Britten (1913-1976). Este ano comemora-se o centenário de seu nascimento. A sua música sempre conservou uma voz humana pessoal, dizendo o que sentia a um público cujo gosto ele conhecia. É um dos muitos compositores que se inspiraram nos estilos oriental, indonésio e japonês, mas o trabalho de sua vida foi dedicado à música que deu pouca ou nenhuma atenção às tendências ou modas passadas. Aliás, nada predispunha esse independente ferrenho às revoluções estéticas: um humor sólido, a aversão a toda ênfase, seu gosto de artesão escrupuloso permitiram-lhe enfrentar todas as tentações da vanguarda. Britten devolveu ao seu País o brilho musical perdido desde a morte de Purcell e dos grandes ‘elisabetanos’, de quem ele herdou a poesia alusiva, o pudor e a propriedade do sentimento dramático, o vigor e o frescor da expressão vocal, a ambiguidade, o humor. De acordo com suas próprias palavras, ele aprendeu com esses mestres barrocos ‘como ser maravilhoso o conto dramático em língua inglesa’. O melhor de sua produção parece ser, sem dúvida, sua música vocal (óperas, obras diversas para vozes e orquestras, ciclos de canções). Talvez seja o melhor compositor de óperas da segunda metade do século XX. Sempre encontramos a mesma voz, apaixonada, consoladora e ávida nas quinze óperas que escreveu, desde Peter Grimes (1945), a ópera com que ele, pela primeira vez, obteve aclamação mundial, até a sua última, Morte em Veneza (1973).

Em 1939, Britten deixou a Inglaterra, indo para os EUA com Peter Pears, companheiro conjugal de toda a sua vida. Ao retornarem para a Inglaterra no começo de 1942, em plena guerra, ambos resolveram dar uma contribuição por meio da música, em vez de pegar em armas, desenvolvendo intensa atividade de concerto. Foi nesse período que Britten trabalhou na ópera Peter Grimes, estreada em 1945, alcançando retumbante sucesso internacional e marcando um novo começo para a ópera inglesa. O tema é sobre a história de um pescador de Suffolk, homem austero e marginalizado, que poderia ter sido ou não o assassino da única pessoa desse mundo a quem realmente amava, para tornar público seu apaixonado posicionamento individual a respeito da solidão e da liberdade de espírito. Seu personagem central, o primeiro de muitos papéis escritos para Pears, ditou um novo estilo na ópera – o desajustado social apresentando um senso feroz de orgulho e independência, mas que é, também, profundamente inseguro, o que proporciona um fluxo lírico que deveria ser livre, mas não é. Do mesmo modo, o talento de Britten para a caracterização se encontra em sua música orquestral evocando o mar, e na grande variedade de papéis secundários, nitidamente definidos. O sentimento geral da ópera é revelado na famosa obra orquestral, os Quatro Interlúdios Marinhos e Passacaglia, que constituem o melhor contato inicial com ela – música das mais despojadas que ele escreveu, transmitindo de imediato, com economia de meios, as sensações de solidão, de espaço infinito e a fúria que o mar proporciona. Após Peter Grimes, o padrão de sua produção operística já estava definido (Britten aborda, de alguma forma, os temas do indivíduo e da sociedade, e da violação da inocência), mas não o estilo, pois sempre demonstra um visível anseio por temas sempre novos – comédia de aldeia, em Albert Herring (1947), conflito psicológico, em Billy Budd (1951), reconstrução histórica, em Gloriana (1953), uma história de possessão diabólica com seu toque genuinamente inglês para fantasmas e almas penadas, em The Turn of the Screw (‘A Volta do Parafuso’, 1954), magia noturna, em Sonho de uma Noite de Verão (1960), uma luta entre história familiar e responsabilidade individual, em Owen Wingrave (1971), e a obsessão com um ideal infortunado, em Morte em Veneza (1973).

Britten encontrou uma nova roupagem musical para cânticos medievais, em Cerimônia de Cânticos Natalinos (1942), usando coro de meninos e harpas; suas linhas melódicas são claras e bem delineadas, sem qualquer traço das doçuras angelicais que marcam o gênero. Entre suas obras-primas, encontra-se o War Réquiem (‘Réquiem de Guerra’, 1962), composto para a reconsagração da Catedral de Conventry, bombardeada pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. A obra evidencia, uma vez mais, os próprios sentimentos do compositor sobre a estupidez e a devastação inerentes aos conflitos bélicos, bem como sobre a natureza do consolo necessário para elas. O cataclismo traumatizante das guerras sempre trouxe uma contribuição indelével para os artistas, colocando-os em contato com experiências que os afetaram profundamente – uma vivência em que o inesperado e o improvisado se tornam a regra, sempre reacendendo um clima de novo entusiasmo e estímulo.

Da rica produção criativa de Britten, destaca-se a Serenata para Tenor, Trompa e Orquestra de Cordas (1943), uma magnífica disposição de sete poemas sobre a noite e a escuridão, plena de atmosfera e de assombramento, e as Variações e Fuga sobre um Tema de Purcell (‘Guia dos Jovens para a Orquestra’, 1946), obra vivaz que evidencia cada um dos instrumentos orquestrais, que executa sua própria variação sobre o tema; ao final, todos se unem sinfonicamente em uma brilhante fuga – uma contribuição ideal para introduzir a juventude ao som da orquestra moderna. A partir de 1948, ele passou a promover o Festival de Música de Alderburgh, a aldeia litorânea onde morava e morreu. Os maiores intérpretes de sua época participaram do festival, como o tenor Peter Pears, o trompetista Denis Brain, o violoncelista Mstislav Rostropovich e o pianista Sviatoslav Richter. Britten escreveu obras adequadas ao talento e à técnica extraordinária de cada um deles. Ainda hoje, o Festival de Música de Alderburgh é um evento internacional e importante centro de atividades culturais.

Outro compositor que escreveu música neobarroca, porém por necessidade íntima, foi o francês Oliver Messiaen (1908-1992). Talvez tenha sido o compositor mais influente do pós-guerra. No Conservatório de Paris, estudou composição com Dukas e órgão com Dupré. Posteriormente, já como mestre consumado do órgão, executava suas próprias obras e improvisações, parecendo fazer emergir a imagem sonora de Frescobaldi, Pachelbel, Bach, Bruckner e Franck. Como nenhum outro compositor, mistura o sensual com o sobrenatural, o racional com o extático, o cristão com o ocultista. Com um estilo próprio, meio suntuoso, meio bárbaro, sua música contém elementos de uma síntese extraordinária – o cantochão, o folclore, Bach, Debussy, Stravinsky, Bartók, Alban Berg, elementos exóticos (asiáticos e africanos), o canto dos pássaros e os ruídos da natureza; tudo isso fundido de uma maneira personalíssima e complicada, o que contribuiu fortemente para a formação de um estilo reconhecível entre todos, com uma riqueza melódica, harmônica e rítmica inesgotável. A sua obra mais importante pode ser sumariamente definida a partir da sua fé católica, reivindicada quer nas obras de órgão (L’Ascencion, Livre d’Orgue, Messe de la Pentecôte), quer nas de piano (Vingt Regards sur l’Enfant Jésus), ou nas de orquestra (Trois Petites Liturgies, La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ), e até na ópera (Saint François d’Assise), bem como do seu gosto célebre pelo canto dos pássaros, que se manifestou abundantemente no domínio do piano (Catalogue d’Oiseaux, La Fauvette des jardins e obras para piano e orquestra).

Durante a Segunda Guerra Mundial, Messiaen foi capturado e aprisionado na Silésia. Aí, escreveu o Quatour pour la Fin du Temps (‘Quarteto para o Fim dos Tempos’, 1940) para piano, clarinete, violino e violoncelo, estreado no campo de prisioneiros, em 1941, pelo compositor e três colegas detidos, para um público de cinco mil presos. Mais tarde, ele comentou: ‘Nunca fui escutado com uma tão profunda atenção e compreensão’. Como o título sugere, a peça refere-se, em grande parte, à visão de São João do Apocalipse (tema bastante apropriado nesse momento da história mundial), entretanto Messiaen estava, também, anunciando o fim do tempo musical. Essa música é extática, comovente e excitante por si mesma, totalmente isolada de sua inspiração. Em 1942, ele foi repatriado e ocupou o cargo de professor de harmonia no Conservatório de Paris, em que iria, mais tarde, ter como alunos Boulez, Stockhausen e Xenakis. Escreveu, nessa época, sua obra mais famosa, a Turangalîlâ-Sinfonia (1948), imenso canto de amor, barroco e caloroso. A obra foi escrita em dez movimentos para solos de piano, de ondes martenot e grande orquestra, e sua inspiração musical é o ritmo indiano; corresponde a uma série de canções de amor interligadas, usando, em particular, a habilidade de ondes martenot para sugerir êxtase elevado. O movimento no 6 , ‘Jardim do Sono do Amor’, cerne de toda a obra, é especialmente sensual. O piano, com as cordas e metais da orquestra, transforma os ritmos irregulares indianos em algo sincopado e vivo como um jazz de grandes proporções. Obra curta, de apenas 15 minutos, apaixonante, Reveil des Oiseaux (‘Coro do Amanhecer’, 1953), para piano e orquestra, apresenta uma abordagem ideal do mundo sonoro de Messiaen. É um verdadeiro mistério a forma como semelhante mistura de cantos (autênticos) de pássaros, harmonia avançada e ritmos gregos e indianos consegue ser uma peça musical coerente ou, até mesmo, um ‘adequado’ concerto para piano, para não dizer, uma obra-prima – música diferente da de qualquer outra pessoa, esplendidamente abordável e inesquecível.

Parnassus – Anton Raphael Mengs

DISCOGRAFIA SELECIONADA

Poulenc

  • Obras Completas: EMI France – ‘L’Édition du 50o Anniversaire’ 9721652 (20 CDs).
  • Obras para Piano Solo e de Câmara: Rogé / Collard – Decca 4757097 (5 CDs).
  • Obras de Câmara: Le Sage / Meyer / Portal / Pahud / Dufor / Leleux / Koster – RCA 632122 (2 CDs).
  • Concertos, Obras Orquestrais e Corais: Dutoit / Rogé / Le Roux / Pollet / Orchestre National de France – Decca 4758454 (5 CDs).
  • Canções (Mélodies): Dubosc / Cachemaille / Lott / Kryger / Le Roux / Rogé – Decca 4759085 (4 CDs) ou Bernac / Souzay / Gedda /Poulenc / Baldwin – EMI 566849-2 (5 CDs).
  • Dialogues des Carmélites: Nagano / Dubosc / Gorr / Yakar / Dupuy / Fournier / Orchestre de L’Opéra de Lyon – Virgin Classics 759227-2 (2 CDs) ou Dervaux / Duval / Crespin / Scharley / Berton / Orchestre et Choeurs du Theatre National de L’Opera
    de Paris – EMI 9482282 (2 CDs).

Milhaud

  • A Criação do Mundo. O Boi no Telhado. Concerto para Harpa. Le Carnaval d’Aix. Concertos para Piano nos 1 e 4. Cinco Estudos para Piano e Orquestra. Balada para Piano e Orquestra: Nagano / Cambreling / Hellfler / Orchestre de L’Opéra de Lyon – Erato 3984-21347-2 (2 CDs).
  • A Criação do Mundo. O Boi no Telhado. Suíte Provençal: Casadesus / Orchestre National de Lille – Naxos 8.557287 ou Tortelier / Ulster O. – Chandos 9023.
  • Saudades do Brasil. La Muse Managère. L’Album de Madane Bovary (Música para Piano): Tharaud – Naxos 8.553443.

Honegger

  • Sinfonias nos 2 e 3: Karajan / Berliner Phil. – DG ‘Originals’ 447435-2.
  • Sinfonia no 3 (+ Poulenc: Gloria): Jansons / Concertgebouw O. – RCO Live 06003.
  • Jeanne d’Arc au Boucher: Ozawa / Orchestre National de France – DG 476165-2.
  • Le Roi David: Piquemal / Todorovitch / Honegger / Orchestre de la Cité – Naxos 8.553649 ou Dutoit / Collard / Ensemble Instrumental / O. P. de Monte Carlo (+ Obras Orquestrais) – Warner 2564 62033-2 (2 CDs).

Busoni

  • Concerto para Piano: Elder / Hamelin / Birmingham SO – Hyperion 67143.
  • Doktor Faust: Nagano / Henschel / Begley / Choeur et Orchestre de L’Opera National de Lyon – Warner 2564646824 (3 CDs).

Hindemith

  • Sinfonia ‘Mathias, o Pintor’. Nobilissima Visione. Metamorfoses Sinfônicas: Abbado / Berliner Phil. – DG 447389-2.
  • Obras Orquestrais: Blomstedt / San Francisco SO / Gewandhausorchestre Leipzig – DG 475264-2 (3 CDs).
  • Kammermusiken: Chailly / Concertgbouw O. – Decca ‘Double’ 473722-2 (2 CDs).

Weill

  • A Ópera dos Três Vinténs: Fichter / Stryi / Shimada / Bocker / Johanns / Hagen / Ensemble Modern – RCA 66133-2 (2 CDs) ou Mauceri / Kollo / Lemper / Milva / Adorf / Berlin RIAS Chamber Chorus & S. – Decca 430075-2.
  • Mahagonny Songspiel. Os Sete Pecados Mortais: Mauceri / Lemper / Wildhaber / Haage / Berlin RIAS Chamber Chorus & S. – Decca 430168-2.
  • Lotte Lenya sings Kurt Weill: Levine / Lenya / Armstrong / Gilford – Sony 60647.
  • Ute Lemper sings Weill: Mauceri / Lemper / Berlin RIAS Chamber S. – Decca 425204-2 (Vol. 1) e 436417-2 (Vol. 2).

Britten

  • Britten – ‘The Collector’s Edition’: Vários intérpretes e orquestras – EMI 752629 (37 CDs).
  • Obras-Primas (‘Masterpieces’): Britten / Cleobury / Tuckwell / The Choir of King’s College Cambridge / Rachel Masters / Ladies of Cambridge University Choir / Choir of St John’s College / English Chamber O. / Orch. of the Royal Opera House / Covent Garden O. – Decca 4785723 (4 CDs).
  • Obras de Câmara e Instrumentais: vários intérpretes – EMI 0151492 (6 CDs).
  • Obras Orquestrais e Corais: Rattle / Bostridge / Donohoe / Söderström / Tear / Allen / Berliner Philh. / City of Birmingham SO – EMI 2427432 (5 CDs) ou Pesek / Rattle / Järvi / Donohoe / Knussen etc. / Norwegian CO / English CO – EMI 9781602
    (8 CDs).
  • Variações e Fuga sobre um Tema de Purcell (‘Guia dos Jovens para a Orquestra’). Quatro Interlúdios Marinhos e Passacaglia. Sinfonia de Réquiem. Chacony: Slatkin / London Phil. – RCA 61226-2.
  • Serenata para Tenor, Trompa e Orquestra de Cordas. Les Illuminations. Nocturne: Pears / Brain / Goossens / Britten / New SO – Decca ‘Eloquence’ 4768470.
  • Obras Corais e Ópera para Crianças: Tear / Baker / Söderström / Choir of King’s College Cambridge – EMI 0151562 (7 CDs).
  • War Réquiem (‘Réquiem de Guerra’): Britten / Vishnevskaya / Pears / Fischer-Dieskau – London SO – Decca ‘The Originals’ 4757511 (2 CDs) ou Hickox / Harper / Langridge / Hill / Quirk / London SO – Chandos 8983/4 (2 CDs).
  • Britten Conducts Britten (Óperas): Britten / Pears / Amit / Brannigan / Cantelo / Evans / Fisher/ English CO / London SO / Royal Opera House Covent Garden Ch. and Orch. / Ambrosian Opera Chorus – Decca 4756020 (Vol. I: Albert Herring, Billy Budd, Owen Wingrave, Peter Grimes – 8 CDs) e Decca 4756029 (Vol. II: A Midsummer Night`s Dream, The Rape of Lucretia, The Turn of the Screw Bedford & Mackerras Conducts Death In Venice & Gloriana – 10 CDs).
  • Benjamin Britten Centenary (Óperas): Brunelle / Knussen / Harding / Hickox / Chorus & Orch. of the Plymouth Music Series / Orch. and Chorus of the Royal Opera House / Aldeburgh Festival Ensemble / London Ch. and SO / Mahler CO / City of London Sinfonia – Warner Classics 735007-2 (13 CDs).

Messiaen

  • Obras Completas: vários intérpretes – DG 4801333 (32 CDs).
  • Obras Orquestrais: Boulez / Chung e vários intérpretes – DG 4801333 (10 CDs).
  • Messiaen Edition: Boulez / Nagano e vários intérpretes – Warner Classics 2564621622 (18 CDs).
  • Turangalîlâ-Sinfonia: Nagano / Aimard / Kim / Berlin PO – Teldec 8573 82043-2 ou Previn / Béroff / Loriod / London SO – EMI (Japan) 15079 (2 SACDs) ou Wit / Bloch / Wegl / Polish NOS – Naxos 8.554478/9 (2 CDs) ou Chung / Loriod / Orch. de L’Opéra Bastille – DG 431781-2.
  • Réveil des Oiseaux. Poème pour Mi. Sept Haïkaï: Boulez / Pollet / Aimard / Jones / Cleveland Orch. – DG 453478-2.
  • Obras Completas para Piano: Hill – Regis 7001 (7 CDs).
  • Catalogue d’Oiseaux: Muraro (piano) – Accord 465768-2 (3 CDs).
  • Vingt Regards sur l’Enfant Jésus: Osborne (piano) – Hyperion 67351/2 (2 CDs).
  • Huit Préludes: Hewitt (piano) – Hyperion 67054.
  • Obras Completas para Órgão: Bate – Regis 6001 (6 CDs).
  • La Nativité du Seigneur e outras Obras para Órgão: Weir (órgão) – Priory 921 ou Thiry (órgão) – Calliope 9928.
  • Quatour pour la Fin du Temps (‘Quarteto para o Fim dos Tempos’): Shaham / Meyer / Wang / Chung – DG 469052-2 ou Mustonen / Bell / Isserlis / Collins – Decca 452899-2.
  • Saint François d’Assise (ópera): Nagano / Van Dam / Upshaw / Aler / Krause / Hallé O. – DG 445176-2.

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