Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Talvez esta seja a pergunta mais frequente que ouvi nos 23 anos da revista!
E ainda que nossos leitores tenham lido inúmeros artigos escritos e publicados aqui, participado de nossos cursos, comprado nossos CDs e enviado e-mails solicitando ajuda, sempre, lá no fundo, todo audiófilo acha que algo precisa ser melhorado para se chegar ao ajuste ideal.
Meu pai dizia que, quando o audiófilo começa a questionar a performance de seu sistema, ele foi picado pela insegurança. E acho que esta insegurança fará parte de sua trajetória, do começo ao fim desta jornada. Uma coisa, porém, deve ficar bem clara: este artigo é direcionado aos leitores que já possuem um sistema Diamante ou Estado da Arte e consideram que o estágio em que esses sistemas se encontram já está muito satisfatório em termos de performance global. Não fazendo muito sentido aos que ainda estão nos primeiros degraus desta empreitada. Este texto ronda minha mente há alguns anos. Cheguei até a realizar alguns esboços e trocar ideias com alguns amigos e colaboradores mais próximos. Porém, faltava um ‘click’ para ele realmente ser escrito.
E este ‘estalo’ veio ao navegar pela internet e ler um artigo em um site, em que o seu editor afirma que a medida que ele aprimora seu sistema, ele teve que excluir grande parte de sua discoteca e se concentrar apenas nas gravações DSD, pois as PCM ficaram muito aquém do seu sistema!
Fiquei meses pensando neste artigo e lembrando de fatos que vi ocorrerem com centenas de audiófilos que, na sua busca pela reprodução perfeita, foram excluindo toda a sua coleção de discos, ficando apenas com uma dúzia de gravações que soavam corretamente no sistema.
Alguns de tão obcecados com esta busca, chegavam a ouvir apenas trechos dos discos escolhidos. Meu pai afirmava ser esta atitude a inversão total de valores, afinal um sistema só vale o dinheiro e tempo investido se for para dar mais prazer auditivo às músicas que tanto amamos, e não o contrário!
E como podemos nos livrar desta armadilha? Não deixando o sistema ser mais importante que a música que você escuta nele, foi a resposta que obtive do meu pai, quando lhe fiz essa pergunta aos 12 anos! Claro que sistemas top hi-end são absolutamente sedutores, e assistir a uma apresentação bem-feita com gravações tecnicamente impecáveis é implacavelmente sedutor.
Mas quantidade de gravações tecnicamente impecáveis não é tão numerosa assim, para ‘justificar’ um investimento tão vultoso, você não acha? E se formos avaliar pelo lado mais importante – o artístico – aí que nos encontramos em uma ‘sinuca de bico’! Pois grande parte das gravações consideradas audiófilas, são artisticamente bem sofríveis.
Nunca me esqueço de uma sala no nosso Hi-End Show de 1998, em que na apresentação de uma bookshelf o expositor tocou uma gravação hi-end de Albinoni para solo de contrabaixo. Na book, o som era grandioso, como se a caixa tivesse o tamanho de uma coluna de três vias! Os visitantes ficaram extasiados com a performance da caixa, no entanto a performance do baixista era de um amadorismo completo. Pulando notas, desafinando, algo vergonhoso de se ouvir.
Intrigado em saber se a book realmente tinha um corpo harmônico de torres, levei no outro dia , antes do evento abrir, uma gravação solo do baixista Ron Carter, para tirar a dúvida, e a book ainda que correta, tocou com o corpo de uma bookshelf de dimensões reduzidas, faltando a primeira oitava, como teria que ser. Truques em gravação audiófilos tem aos montes e, em cada feira, todos os anos alguns desses discos são eleitos para estarem em todas as salas com todos os tipos de sistemas.
Infelizmente, essas gravações em sua esmagadora maioria artisticamente são ruins. Nas últimas edições da feira de Munique, uma cantora filipina que gravou obras do Led Zeppelin estava presente em centenas de salas. Consegui com um amigo o CD emprestado, na esperança de valer a pena conhecer o trabalho de uma cantora que, no mínimo, foi ‘ousada’ na escolha do repertório. Meu amigo, depois de dois dias, me ligou perguntando o que havia achado da cantora, dos arranjos e da qualidade técnica e artística. Tentei ser o mais educado possível e procurei medir as palavras, afinal se ele tinha comprado o disco, ele havia gostado. Mas tamanha foi a sua insistência e, me conhecendo, ele foi me apertando até que deixasse as ‘formalidades’ de lado e fosse direto ao ponto – acabei confessando minhas observações, rs.
Disse que os músicos os arranjos e principalmente sua interpretação me lembraram a juventude quando peregrinávamos de bar em bar até amanhecer, ouvindo bandas cover em bares cheirando a mijo e cerveja. Ele soltou uma sonora gargalhada, e disse que foi essa a mesma impressão que teve depois de duas audições. Muito ruim, amador, técnica vocal limitada, pouca extensão para interpretar os maiores clássicos do Led. Enfim, um caça-níquel para arrancar uma grana dos audiófilos, que clamam por ouvir o Led Zeppelin original (mas que não soa bem em seus sistemas) então se sujeitam a ouvir cover de boteco!
A mesma coisa ocorreu quando peguei o disco da cantora Jacinta, muitos anos atrás, para fazer uma resenha na nossa seção CDs do Mês. Ruim, técnica vocal limitada, arranjos pobres, clássicos da música americana que merecem ser escutados em suas versões originais. Que não soarão tão ‘assépticos’ como no CD da Jacinta – que soa bem em qualquer sistema – mas que artisticamente ficam a dever.
Então, quando algum leitor me escreve que seu sistema está naquele ponto de ‘escolher’ as gravações que ficam e as que serão esquecidas na prateleira, fica evidente que este audiófilo atravessou a fronteira para o lado do ‘sistema acima da música’, e não o contrário.
Neste artigo não irei focar em dicas de como você pode saber para que lado seu sistema está indo. Não falarei de metodologia e nem tão pouco darei dicas de discos que você precisa escutar para saber se o sistema está bem ajustado. Falarei do óbvio, que se te disserem que um sistema hi-end irá excluir gravações tecnicamente limitadas, não acredite! Os sistemas evoluíram tanto nesta última década que discos que nos sistemas de dez anos atrás eram inaudíveis, hoje podem ser resgatados e escutados com enorme prazer auditivo. E você deve estar se perguntando o que melhorou para possibilitar este resgate tão desejável? Tudo melhorou em todos os componentes da cadeia na reprodução, dos cabos a toda eletrônica.
Com isso a ‘folga’ na reprodução macrodinâmica ganhou fôlego suficiente para reproduzir até mesmo aquelas gravações super comprimidas e que soavam frontalizadas e que causavam rápida fadiga auditiva.
Assim, se você deseja saber em que direção seu sistema está indo, faça um pente fino em sua discoteca e pegue aquelas gravações que você gosta tanto e que ficaram hibernado na prateleira desde quando, em alguma etapa de seus upgrades, aquela gravação foi recusada pelo sistema. Todos nós temos dezenas dessas gravações, que fomos aceitando resignadamente que, naquele novo setup, soavam desconfortáveis, então precisavam ser esquecidas.
Escolha uma ou duas, de preferência aquelas que sente mais saudade de escutar, e coloque na sua configuração atual. Se continuarem soando ruins, tenha a certeza que, ainda que seu esforço em termos de grana e tempo tenha sido grande, ainda não foi o suficiente para resgatar essas gravações.
E fique atento: pois se soaram ainda piores, o senhor começa a caminhar a passos largos para ir reduzindo cada vez mais sua discoteca. E acreditar que o sistema esteja ‘expurgando’ apenas o que está muito abaixo do padrão de qualidade alcançado, é um dos mais elementares equívocos que podemos cair. Pois se o sistema que caminha no sentido oposto, não exclui, e sim resgata!
Então duvide se algum audiófilo lhe apresentar uma dúzia de discos, ainda que ele tenha centenas de gravações espalhadas na sua sala de audição. Adoro dar a liberdade ao meu visitante de fuçar nas minhas prateleiras e escolher alguma gravação que o agrade artisticamente. São mais de 8.000 CDs com todos os gêneros musicais de bom nível (é claro), à disposição de todos que frequentam nossa Sala de Testes.
E, à medida de que nosso Sistema de Referência sobe de pontuação (hoje está em 101 pontos em nossa metodologia), até mesmo aquele CD de ‘Best-Of’ toca muito decentemente (ainda que tenha sofrido compressão e equalização), pois o sistema está correto em todos os quesitos da Metodologia de forma coerente e homogênea, assim a folga existente comporta até mesmo gravações tecnicamente bem limitadas. Aì não tem discussão de gosto subjetivo, ou se está certo ou errado, pois se no sistema toca sem fadiga auditiva e em outro sistema é inaudível, o que não consegue reproduzir bem é que está errado.
Essa equação até minha filha de 10 anos compreende. E, aí meu amigo, quando se entende o caminho que se deve tomar para que um sistema hi-end esteja a serviço da música e não o contrário, a busca se torna muito mais clara.
Então, se você quiser realmente saber em que nível se encontra seu sistema, ouça seus discos de cabeceira, aqueles que ao escutar lhe emocionam ou lhe trazem lembranças que lhe são muito caras! E se o seu sistema tiver a folga e a ausência de fadiga tão desejada, nessas gravações tecnicamente mais limitadas, relaxe! Pois todo o seu esforço foi recompensado!
E se em meu sistema, a cada novo upgrade que realizo, diminuiu cada vez mais a quantidade de discos que dá prazer ouvir, o que faço? Diria para primeiro você tirar umas férias do seu sistema, deixá-lo de lado por algumas semanas, para você ter tempo de repensar e ver onde está o erro.
Todo sistema possui um elo fraco, e descobrir este(s) elo(s) é o primeiro passo, pois as vezes este elo é o que o fez caminhar na direção errada. Exemplo: excesso de grave na sala não tratada, qual a tendência?
Secar os graves. O problema que quando você seca os graves, o médio grave também é alterado. E com isto o equilíbrio tonal é seriamente afetado. Gravações tecnicamente ruins tendem a ter médio-grave com pouco corpo e, somando-se as deficiências da gravação com as da sala e do sistema, está explicado o caos sonoro. Ou, ao contrário, o problema encontra-se em uma sala muito viva e não tratada. As gravações remixadas (principalmente as de música pop ou também classificadas como ‘comerciais’ dos anos 60,70,80 e 90) sofrem muita equalização (os responsáveis por essas remixagens sempre querem dar seu ‘toque de midas’) e ficam com um brilho nos agudos que não existia na máster original. Em salas vivas, com muita janela, piso frio, etc, essas gravações sempre irão agredir os nossos ouvidos.
O que estou tentando dizer com esses dois exemplos é para você não entrar em pânico e querer começar do zero, pois o problema pode não ser integralmente do setup. Então descobrir o(s) elo(s) fraco(s) é o primeiro passo. Se for acústico, trate-o e ouça o sistema com essas gravações expurgadas e veja se melhorou. Se andamos, mas ainda está torto, mantemos o foco e vamos descobrir quais são os outros elos. Geralmente para compensar deficiências acústicas usamos como ‘band-aid’ os cabos. Então busque ver se os cabos estão ‘amarrando’ o sistema.
E só depois de checado toda a cabeação, se ainda estiver rejeitando as gravações tecnicamente limitadas, descubra qual eletrônica está impedindo de ouvir todos seus discos novamente. Um detalhe importante: presume-se que os sistemas todos sejam Diamante Referência ou Estado da Arte, e os componentes tenham no máximo dez anos de uso. Pois se o setup for uma mistura de fonte digital ou caixas acústicas de mais de dez anos com amplificadores mais recentes, o ajuste nunca será possível.
Vendo o sistema do editor do site que expurgou todas as suas gravações PCM e que passou apenas a ouvir DSD (SACD), fica claro o motivo dele ter que partir para esta solução. Pois seu setup é uma mistura de produtos de classificações bem distintas (de Ouro Recomendado à Diamante de entrada) e ainda que ele tenha tido enorme cuidado com elétrica e acústica, existe o que chamo de pontas de elos fracos entre sinergia dos componentes, cabos, caixa, etc.
E quando o sistema se encontra neste patamar de pontas não ‘amarradas’, o índice de gravações que não soarão bem é gigantesca. O problema é que o audiófilo nesta situação culpa as gravações e não seu sistema, afinal é muito mais fácil culpar os discos do que a nós mesmos por não sermos capaz de detectar o óbvio. Aí o audiófilo entra naquela espiral de só mostrar aos amigos e a si mesmo gravações que não comprometam todo o dinheiro investido (como se pudéssemos empurrar o problema para debaixo do tapete e esquecermos que ele está ali na nossa cara).
Quem nunca usou desse expediente (de só mostrar as gravações que soam impecáveis), levantem a mão! Quando somos mais jovens temos a ilusão de que ‘reinventaremos a lâmpada’, que nossas soluções serão sempre certeiras e podemos cortar caminho achando atalhos. Não, meu amigo, este é um hobby que precisa de maturação, sapiência, paciência, ouvido e sensibilidade. Sem estes quesitos, iremos errar muito mais que acertar.
Como diz a letra da música “ouça um bom conselho que lhe dou de graça”, se queres saber em que estágio está seu sistema, veja a quantidade de discos que ele rejeita. Se for menos de 20%, parabéns! Você está no caminho e todo o seu esforço está na direção certa. E se o seu sistema já rejeita mais de 30% dos seus discos, cuidado! Você está indo muito rápido na direção errada! E se o seu sistema Estado da Arte, que lhe custou um fígado, rejeita mais de 50% de sua discoteca, você anda a passos largos para ver sua tão estimada discoteca ser reduzida a uma dúzia de gravações.
E não me odeie por estar tocando na ferida de muitos de nossos leitores, mas este também é o meu papel como editor. O que desejo realmente é que o seu sistema lhe traga cada vez mais satisfação e beleza a sua vida. Pois ouvir música em um sistema de qualidade nos traz um bem-estar mental, emocional e espiritual.