Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br
Respirando audiofilia por décadas, como profissional e como hobista, venho acompanhando a solidificação de uma farsa, de uma mania, um ponto de vista absolutamente errôneo. Talvez até seja um pouco originário daquela mania atual do “o mundo tem que se adaptar a mim!”.
Tirando os egos inflados e os egos sólidos (rs!), penso que cresceu demais entre os audiófilos (e em outros grupos também) a busca por um hiper-realismo. Um disparate onde muitos passam a pensar que uma representação é (que absurdo!) superior à realidade, mais ‘real’ que o real, ‘melhor’ do que a realidade. Pode ser, de novo, a aplicação de uma baixíssima compreensão e educação sobre o mundo, onde as pessoas têm uma ótica ‘quantitativa’ em vez de ‘qualitativa’. Quantidade em vez de qualidade. Mais e menos, em vez de melhor e pior – onde os conceitos passam até a se confundir para alguns. Isso é, geralmente, por falta de conhecimento, puro e simples.
Sintomas? Gente que acha que seus sistemas são superiores à música ao vivo por escancarar detalhes que deveriam fazer parte do todo. Organicidade, o mundo real, passa a ser inferior à sua ‘mentira bem contada’. Já vi gente que prefere ouvir seus discos de música clássica do que ouvir a mesma música ao vivo! Dizem perceber mais detalhes! Gente, não existem ‘mais detalhes’ do que a Realidade!
Isso, claro, expressa-se na audiofilia principalmente na adoração de sistemas e equipamentos que procuram trazer mais detalhamento do que o normal, onde parecem que querem ouvir os ruídos estomacais do regente. Onde já cansei de ver gente proferindo que ‘parecia que a cantora estava sentando no meu colo’ – gente, todos os instrumentistas estão para trás das caixas, por definição, e isso é Física e não opinião. E se o sistema está mostrando o acontecimento musical entre o ouvinte e a caixas, então esse sistema está distorcendo o material que está reproduzindo.
Existem cantoras belíssimas, mas é preciso conter fetiches e ver a música como um todo. Pois – cuidado – a cantora é uma artista e mulher real, e interessante sob muitos aspectos, e ela não pode ser substituída por uma fantasia.
Não se pode nem pensar em se achar como uma voz, um piano, um violino, possam parecer decepcionar as pessoas na vida real, fazendo-as preferir representações ‘turbinadas’ por sistemas de som que querem avançar ‘além da realidade’, serem ‘mais’ do que a vida real.
Neste momento, alguns de vocês devem estar rindo, mas eu já testemunhei gente que foi ver uma orquestra sinfônica pela primeira vez e disse que achou o volume de som baixo! Essa pessoa, claro, não se tocou que isso é uma inversão de valores absurda! Uma distorção de visão de mundo. Você não olha para o sol e diz que ele é inferior porque a foto que você tem de um sol está mais amarela e está brilhante do que a REALIDADE.
Lembrei de quando, anos atrás, fui no lançamento de uma TV 4K – acho que era uma das primeiras, uma TV top, caríssima. Meu comentário foi o oposto dessas inversões de valores citadas acima. Disse: “essa TV enxerga melhor do que eu”. A ideia que a TV me passou foi de que tudo que passava na tela era mais nítido do que o que eu enxergava no mundo real, tudo era mais limpo e mais ‘acertadinho’. Tive a mesma impressão, em anos mais recentes, quando fui ver conteúdo de filmes remasterizados em 4K e 60fps: a impressão é de que tudo era falso e de plástico. Vi o mundo real a minha vida inteira e, quando vi aquilo, me pareceu falso (e era mesmo!).
O objetivo de um sistema de som de Qualidade (e não de Quantidade) é expressar o acontecimento musical o mais próximo da realidade possível – isso é a Organicidade. Quando você começa a ouvir mais detalhes do que ouviria no acontecimento musical real, é porque você está ouvindo uma hiper-realidade falsa, ‘de plástico’. Uma perfeição que não é real. Afinal, nem se você sentar na primeira fileira da sala de concertos, ouvirá os barulhos digestivos do maestro.
Onde isso tudo nos deixa em sistemas de áudio? Pare de se babar, de achar lindo, ouvir coisas que no mundo real você não ouviria – procure se focar no Todo Musical. O nosso intrépido e incontível editor, Fernando Andrette, já cansou de falar que NÃO é uma qualidade um sistema ou componente que te faz focar mais no detalhe do que no todo – afinal, uma experiência real é sobre o Todo, e a música não é o terceiro violino da segunda fila, ou o trompista da primeira estante, ou o ar saindo da trompa. A experiência é o Todo! Porque a música é o produto de todos os instrumentistas e a expressão da composição completa da obra.
Outro problema é que esses sistemas de áudio hiper-realistas, hiper-detalhistas, soam sempre frios e artificiais – e isso é cansativo ao ouvido e ao cérebro, causa Fadiga Auditiva, fadiga sensorial, e não adiciona nada à alma.
Não existe realismo maior que a Realidade. Parem com isso! Procurem primeiro a musicalidade e a organicidade, e daí seus sistemas de áudio irão crescer e melhorar com você, de acordo com o que você pode adquirir. E o nível de detalhamento irá melhorar com mais experiência e melhores equipamentos – mas nunca será, ou deverá ser, mais verdadeiro que a verdade.
1 Comments
A questão de mostrar mais detalhes no sistema caseiro, de alta qualidade, do que “ao Vivo”, refere-se a captação e posicionamento dos microfones no estúdio de gravação.
Ao Vivo, em música clássica, o som é direto, sem amplificação, portanto será diferente e , obviamente, mais natural.