Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
A partir deste ano, publicamos na Edição de Dezembro as melhores gravações indicadas por nós na seção Playlist. Entrarão nessa primeira lista, discos que foram lançados em 2021 e 2022.
Os critérios utilizados são: Qualidade Artística e Qualidade Técnica.
Esperamos que as indicações possam levar nossos leitores a conhecerem novos artistas, estilos e também sejam uma ‘ferramenta’ útil no ajuste de seus sistemas.
1- Beatrice Berrut – Jugendstil (La Dolce Volta, 2022)
Das pianistas com menos de 40 anos, Beatrice Berrut ocupa um lugar de destaque em minhas gravações de piano solo.
Nascida nos Alpes Suíços, na região de Valais, atualmente com 36 anos, Beatrice antes de descobrir seu dom para a música, com apenas dois anos de idade aprendeu a esquiar e dessa paixão nasceu seu encanto pelas paisagens inebriantes dos Alpes Suíços.
A música só a conquistou aos 8 anos de idade – graças a sua mãe que amava a música de Brahms e Liszt – e a menina decidiu começar a ter aulas de piano. Foi uma surpresa para todos ao ver a facilidade com que ela dominou o instrumento e se dedicou diariamente aos estudos. Neste período inicial, sua obra preferida era o Concerto No.2 para Piano e Orquestra de Brahms, e que ao ouvir repetidamente descobriu que iria ser uma pianista.
Sua segunda paixão, foi Liszt, ao qual sua admiração é tão intensa que, certa vez, ela escreveu em seu diário de adolescente: “Sempre que toco Liszt, tenho a sensação de que estou imersa em um mundo que me é estranho e familiar, e que em um piscar de olhos me junto a ele em sua busca pela liberdade. Eu adoraria ter conhecido Liszt pessoalmente”.
Sua evolução é tão impressionante que, aos 16 anos, ela se torna aluna de Esther Yellin em Zurique e depois segue seus estudos em Berlim com Galina Iwanzowa, por mais de cinco anos – ambas são ex-alunas do mestre Neuhaus.
Para o amigo leitor leigo, nas diversas escolas existentes para piano, Neuhaus defende a linha que ele denominou de ‘piano orquestral’, e ensina técnicas de como obter o domínio e controle sobre as cordas vibrantes e a ressonância brilhante de um piano. Que para ele, quando o estudante interioriza esse conceito, o instrumento transcende o mundo dos martelos e da mecânica de uma caixa ressonante. Vou traduzir para o ouvinte da seguinte maneira: no conceito de Heinrich Neuhaus, o piano literalmente soa como uma orquestra integral, pois a digitação é tão expressiva e limpa, que transcende o próprio instrumento.
Parece algo difícil de entender a quem não tem enorme vivência com as diferentes escolas pianísticas, mas o disco que escolhi para apresentar aos que não conhecem Beatrice Berrut, vai ajudar muito a entender o conceito. Pois todas as faixas deste disco são obras escritas para orquestra, e transcritas para piano solo.
O leitor só precisará pegar o 2o. Movimento da Quinta Sinfonia de Mahler, o Adágio, ouvi-lo e depois ouvir a transcrição para piano. E facilmente você entenderá o conceito Neuhaus e, de tabela, descobrirá a virtuosidade de tirar nosso ar e cessar os pensamentos de Beatrice Berrut!
Sua técnica é simplesmente exuberante em todos os sentidos, e quando ela vier ao Brasil, amigo leitor, faça um favor a si mesmo, vá assisti-la ao vivo.
Garanto que será uma noite inesquecível ao corpo e espírito!
Enquanto esse dia não chega, escute esse disco em seu sistema, e descubra se ele está suficientemente adequado para reproduzir essa gravação como ela foi captada. E aos audiófilos ávidos pela descoberta de novos selos de qualidade, coloquem em seu radar: La Dolce Volta, pois esses engenheiros entendem do riscado como poucos.
2- Beethoven for Three – Yo-Yo Ma, Leonidas Kavakos & Emanuel Ax (Sony, 2022)
Meu amigo, se eu mostrar esse disco para uma criança que não tenha escutado a obra original, garanto que ela irá apreciar como se Beethoven as tivessem escrito mesmo para um trio de piano, cello e violino.
Só que não é um trio comum – trata-se de três virtuoses que aceitaram o desafio de apresentar duas das sinfonias mais admiradas do repertório clássico de maneira minimalista, e com impressionante requinte e bom gosto.
Para os curiosos de como ficou o resultado, e se realmente é admirável uma obra sinfônica transcrita para um grupo tão reduzido de câmara, minha sugestão é que comecem a audição pelo primeiro movimento da Quinta Sinfonia (faixa 5), e percebam a beleza e a qualidade dos instrumentos usados, e o primor na captação.
O engenheiro de gravação foi muito feliz, pois tanto o corpo harmônico dos instrumentos, quanto o grau de inteligibilidade do trio – mesmo quando soando em uníssono – são primorosos!
Para aqueles que possuem ‘resistência’ em ouvir música clássica (principalmente obras sinfônicas), eis um excelente disco para iniciar essa jornada.
E ainda entender, de forma singela, a genialidade de Beethoven.
Meu primeiro disco de cabeceira de 2022!
3- Alex Riel, Bo Stief, Carsten Dahl – Our Songs (Storyville Records, 2021)
Eis Alex Riel, um baterista de jazz e rock dinamarquês que acaba de completar 81 anos, e que transita com total desenvoltura nesses dois universos, ganhando Grammys em ambos os estilos, e que gosta de dizer em suas entrevistas que, para ele, a música não tem fronteiras, e quem as coloca em compartimentos desconhece a universalidade musical.
Como baterista de Jazz, Riel tocou com todos os grandes, como: Bill Evans, Ray Brown, Don Cherry, Art Farmer, Stéphane Grappelli, Ben Webster, Kenny Drew, e uma dezena de grandes talentos.
Em 1968, ele fundou um grupo de rock The Savage Rose, e gravou com a banda sete álbuns, Our Songs, com seu trio (o pianista Bo Stief e o baixista Carsten Dahl), quiseram fazer uma homenagem ao pianista Keith Jarrett, e gravaram esse belo disco com obras que ficaram imortalizadas com ele e que, provavelmente, outros músicos pensariam mil vezes antes de topar esse desafio.
Mas Riel nunca se esquivou de desafios, mergulhou de corpo e alma e o resultado foi uma belíssima homenagem, que tenho certeza que se o Keith Jarrett ouviu, aprovou plenamente!
Se aceita um conselho, não comece pela faixa 1 (My Song), e sim pela faixa 3 (Moon River), pois ela lhe dará o ‘clima’ da homenagem, ao mesmo tempo que prepara seu coração e espírito para uma viagem musical de um bom gosto singular!
Aqui, novamente, seu sistema irá precisar que, em termos de Equilíbrio Tonal, ele esteja ‘azeitado’ e pronto para os desafios de ter a extensão correta nos agudos no trabalho magistral de Alex nos pratos e na condução, e no bom gosto do uso da vassoura na caixa.
E com tão exuberantes texturas, é possível que você que é mais jovem e está ainda sob o ápice do domínio da testosterona, consiga ter um vislumbre do quanto é belo, ‘o menos é mais’!
Todos os arranjos e solo são absolutamente minimalistas, com tempo para o silêncio permear cada nota e ideia que se apresenta.
Em sistemas ultra transparentes, toda essa magia se dissipa como vapor, então se queres ver o equilíbrio entre transparência e musicalidade de seu setup, essa gravação é perfeita!
4- Renaud Garcia-Fons – Le Souffle des Cordes (E-motive Records, 2021)
Eu já indiquei outros discos, aqui mesmo nessa seção, deste genial baixista francês, também conhecido em seu país como “o Paganini do contrabaixo”.
Sua impressionante técnica de tocar com o arco, ele aprendeu com seu professor aos 16 anos, François Rabbath, que permite que ele explore seu instrumento de maneira livre e, diria, até audaciosa!
Tanto que em seus solos algumas notas ‘excedem’ o limite de resposta do instrumento, nos fazendo duvidar que seja mesmo um contrabaixo não ‘turbinado’.
Fons, assim como o cellista Yo-yo Ma, nunca se enquadrou em um único estilo, e abraçou muito cedo a world music, principalmente a música oriental, graças à amizade e parceria de longos anos com o mestre do alaúde iraniano, Ostad Elahi.
Renauld também compõe para quartetos de cordas, e faz inúmeros workshops pelo mundo quando lhe sobra tempo, divulgando e ensinando a técnica de arco que ele aprendeu com seu mestre Rabbath.
Suas composições possuem inúmeros elementos da música oriental, e com um enorme interesse em fazer uma releitura do flamenco para seu instrumento e quartetos de cordas.
O resultado é primoroso.
Se você quer entrar no universo musical de Renaud Garcia-Fons, não existe melhor exemplo do que esse belo disco gravado ano passado, em que ele escreveu as 12 faixas para instrumentos de cordas, como quarteto, alaúde, violão flamenco e seu contrabaixo.
A música é tão vigorosa e intensa, que o tempo simplesmente cessa a sua volta.
Só tem um pequeno problema, um alerta que necessita ser dado (rs!). Seu sistema será exigido integralmente. Aqui não tem conversa, ou aquele ‘jeitinho brasileiro’ – ou passa ou sucumbe!
Pois o sistema como um todo será exigido ao limite em termos de Equilíbrio Tonal, transientes, corpo harmônico e textura.
Então comece pegando leve no volume, principalmente para ver como suas caixas se comportam nos graves, e se a sala acusticamente suporta tamanha pressão sem embolar as notas, ou as paredes saírem vibrando por horas (rs!).
Espero que seu sistema supere os desafios, pois se o fizer, garanto que você irá gostar e mostrar com o maior orgulho para os amigos, enchendo o peito de felicidade, com tamanho feito!
5 – Janine Jansen & Antonio Pappano – 12 Stradivari (Decca, 2021)
Antes que algum leitor com excelente memória, levante a ‘lebre’ de eu já ter indicado esse disco algumas edições atrás, quero justificar minha escolha em voltar ao tema, dedicando uma edição completa a esse trabalho – após assistir no canal Film & Arts dois documentários sobre a ‘odisseia’ que foi literalmente realizar esse lindo projeto. Aí me caiu a ficha, que valeria a pena compartilhar os incríveis detalhes que ocorreram da ideia original ao trabalho finalizado.
E por um outro fato importante: ouvir esse trabalho nas plataformas que o disponibilizam para streaming não faz jus a qualidade técnica e artística da obra. Então, meu amigo, se queres desfrutar integralmente desse trabalho, a única maneira será ter a mídia física. Aí sim será possível ouvir e compreender as diferenças de assinatura sônica dos 12 Stradivarius utilizados na gravação.
Importante salientar que nunca, em nenhum momento da história fonográfica, foi reunido em um único projeto 12 violinos Stradivarius, e que nem tão pouco esse trabalho inovador foi realizado por um virtuose tão dedicado e preparado para o desafio como a violinista holandesa Janine Jansen!
A idealização desse projeto foi iniciativa de Steven Smith, diretor administrativo da John & Arthur Beare, um especialista em instrumentos Stradivarius, que decidiu reunir 12 dos melhores violinos do mestre de Cremona para mostrar suas sonoridades únicas, e suas diferenças sonoras.
E fazê-lo de forma a deixar para as futuras gerações o registro deste momento único!
Para tornar viável seu projeto, ele procurou a gravadora Decca e a violinista Janine Jansen, e partiu para resolver os problemas logísticos de reunir por duas semanas os violinos em Londres, para que Janine pudesse conhecer os instrumentos se adaptar a eles e, junto com o maestro e pianista Antonio Pappano, montar o repertório perfeito para cada um dos instrumentos.
Janine explica no documentário como se sentiu ao receber o convite: “Quando Steven me abordou sobre este projeto, eu sabia que era uma oportunidade única na vida. Minha chance de experimentar a magia desses instrumentos famosos e explorar as diferenças entre eles, especialmente tendo em mente que alguns deles não eram tocados há muitos anos”.
O mais incrível desse projeto é saber que alguns dos 12 violinos não são tocados há muitas décadas, e possivelmente nunca foram gravados comercialmente. E outros pertenceram a violinistas virtuoses, como Fritz Kreisler, Nathan Milstein, Ida Haendel e Oscar Shumsky.
Para a escolha das 15 faixas, Janine e Pappano levaram duas semanas – o tempo em que ela precisou para conhecer o ‘caráter’ dos instrumentos (tirando o seu Stradivarius, que ela já toca há um bom tempo).
Até que o ‘imponderável’ resolveu surgir, e afastou por três semanas Janine Jansen do projeto, pois ela contraiu Covid. Foi preciso renegociar com os donos e fundações responsáveis pelos Stradivarius, para que a gravação acontecesse.
Recuperada do Covid, Jansen teve apenas uma semana para definir qual instrumento seria o ideal para cada obra escolhida. E mais duas semanas para gravar as 15 faixas. A grande dificuldade em um período tão curto, foi extrair todo o potencial de cada instrumento, pois é notório que alguns Stradivarius são muito exigentes com a escolha de arco, encordoamento e, claro, com a virtuosidade do violinista, principalmente os que estavam há décadas sem serem tocados!
Foi quase um trabalho sobre-humano de Jansen, o que ela extraiu de cada um dos instrumentos e como isso fica explícito na mídia física e passa batido no streamer.
E, ao ouvir a gravação tanto no Tidal Master quanto no QoBuz (finalmente agora no Brasil), e comparar com a mídia física, é que me dei conta que precisava compartilhar essa descoberta com todos vocês!
Os 12 violinos escolhidos cobrem um período de 1699 (Stradivarius Haendel) à 1734 (Kreisler).
Não vou fazer spoiler contando as diferenças entre cada um dos Stradivarius, pois seu sistema precisará estar à altura dessa gravação para o amigo desfrutar a riqueza harmônica de cada um desses violinos. Pois cada um tem sua própria identidade, e sim, é possível observar essas diferenças.
E para aqueles que buscam uma referência para os quesitos: equilíbrio tonal (é uma excelente gravação, graças a virtuosidade e qualidade de captação do piano de Antonio Pappano), textura e corpo harmônico – não conheço gravação recente mais apropriada!
Segundo a crítica musical Charlotte Gardner, da revista Gramophone: “É o violinista que faz o violino”.
Mas, em algumas gravações excepcionais como essa, arrisco dizer que se torna impossível separar ambos. Pois a simbiose é de tal magnitude, que o que ouvimos são as diferenças intencionais do violinista, sonoramente executada pelo instrumento, sendo impossível em nossa mente fazer correlações enquanto ouvimos atentamente.
E poder ouvir uma obra tão impecavelmente produzida (em todas as suas etapas), e apreciar esse trabalho em sistemas corretos, é uma ‘dádiva’, amigo leitor!
Para mim esse é um acontecimento que merece ser compartilhado com todos os que amam a música, e entendem que ela é a expressão mais sublime do homem!
E se você não tiver mais como reproduzir a mídia física, lamento muito por isso, pois só assim será possível apreciar integralmente esse trabalho.
Deixo aqui o link dos dois documentários, para que todos que desejem possam desfrutar, em detalhes, dessa gravação histórica.
6- Alma Naidu – Alma (Leopard, 2022)
Meu amigo, estou apaixonado por essa cantora, compositora, pianista e arranjadora, alemã de 27 anos, que finalmente tomou coragem de mostrar seu enorme talento!
Esse é seu primeiro trabalho, mas no Youtube você achará alguns vídeos de shows seus realizados nos últimos dois anos.
Indico os feitos com seu sexteto (dois cantores), trio de cordas (violino, viola e cello) e bateria. Aí se tem uma ideia exata de sua versatilidade.
Filha de uma famosa cantora lírica alemã e de pai músico de jazz, Alma navega por todos os gêneros musicais, como a música lírica, música de câmara, música à capela e jazz, com tamanha desenvoltura e segurança, que ela mais parece uma veterana com muitos anos de estrada.
Dona de uma voz com excelente extensão, ela, no entanto, canta de maneira tão intimista que nos seduz à primeira nota. Quer um exemplo?
Sente e dê play na faixa 1 – Just a World, observe como sua interpretação é segura sem a necessidade de mostrar suas qualidades técnicas. Na sequência, ouça a faixa 4 – And So It Goes. E esteja liberado para curtir todo o disco! Será uma viagem sonora maravilhosa, acredite!
7- Samara Joy – Samara Joy (Whirlwind Recordings, 2021)
Detesto comparar novos talentos com referências consagradas. Acho, além de temerário, desnecessário com quem está iniciando sua trajetória. E lembremos que timbres vocais são como impressão digital: não existem duas iguais.
Faço este adendo para dizer algo que talvez não diria alguns anos atrás (não sei se por auto censura, vergonha, sei lá….), mas acho que ouvi a voz feminina mais divina dos últimos anos! Ela se chama Samara Joy, e já ouvi seu primeiro trabalho quase que 30 vezes desde que o descobri!
Com apenas 24 anos, Samara nasceu no Bronx, em Nova York. Em 2019 ela venceu o Concurso Internacional de Jazz Vocal Sarah Vaughan, e com isso ganhou notoriedade e convites para lançar seu primeiro trabalho.
Samara, depois de muito pensar, chamou o trio do guitarrista Pasquale Grasso, o que na minha opinião foi uma decisão acertadíssima, pois o trio lhe dá a ‘sustentação’ para sua voz e técnica vocal brilharem. Os arranjos são excelentes, e o repertório, ainda que repleto de ‘standards’, soam primorosamente na voz angelical de Samara!
Bem, mas de onde vem todo esse talento nato? Seus avós paternos, Elder Goldwire e Ruth McLendon, lideraram por décadas o grupo gospel da Filadélfia, The Savettes. E sua casa sempre esteve repleta de música e de muitos artistas de gospel, R&B, e vozes consagradas como Stevie Wonder, Lalah Hathaway, George Duke, Kim Burrell e muitos outros.
Em sua primeira entrevista para a BBC após o lançamento do seu primeiro trabalho, Samara Joy disse: “Embora eu não tenha crescido cantando na Igreja, eu constantemente ouvia minha família cantando músicas inspiradoras, o que só acrescentou à minha formação musical”.
Isso, segundo ela, ajudou-a a explorar o alcance de sua voz, que a levou finalmente a ser líder de canto de louvor nos cultos da igreja, sendo na igreja a lapidação final de sua voz.
O escritor veterano de Jazz, Will Friedwald, no encarte do disco (algo que infelizmente só a mídia física nos proporciona), comenta: “As pessoas estão sempre usando a palavra ‘timeless’ como se fosse o maior elogio de todos os tempos, mas de certa forma a voz de Samara e sua música parecem pertencer a todos os tempos, como se ela estivesse conectada a toda a história do jazz de uma só vez- como se ela já existisse em todas as épocas simultaneamente, pois ela soa clássica e contemporânea” – assino embaixo, amigo leitor!
E não estou errado em afirmar que se trata da voz mais divina deste novo século!
8- Catarina Rossi & André Mehmari – Arco de Rio (Estúdio Monteverdi, 2022)
Esse foi o primeiro disco que ouvi, dos discos que separei, naquela luz das duas e meia da tarde, que suavemente tocava meu rosto, só do meu lado direito, já que a janela fica desse lado da sala.
Fechei os olhos e a sonoridade inconfundível da rabeca da Catarina Rossi, preencheu todos os cantos vazios, e que ainda teimavam em permanecer insolentemente silenciosos.
A música se fez presente com tamanha delicadeza que o resto de tensão que ainda havia nos ombros se desfez instantaneamente.
Arco de Rio é o primeiro EP da violista e pesquisadora de rabeca brasileira, Catarina Rossi, em parceria com o músico André Mehmari. Foi criado através do edital Proac Lab 2021 – Prêmio por Histórico de Realização em Música – Artista.
Um álbum que nos leva a navegar por uma pluralidade de rabecas e teclas, percorrendo histórias de um Brasil sensível, potente e ancestral, sob a linda visão, talento e determinação e percepção de dois grandes músicos.
As composições de Mehmari deram voz às rabecas utilizadas neste trabalho de maneira magistral, que foram construídas por mestres de diferentes regiões deste Brasil, que se misturam com cravo, sintetizadores, clarinete e piano.
O disco conta com a participação especial de Jaques Morelenbaum ao violoncelo, Jackie Cunha na percussão, e ‘inspirações’ do Mestre Nelson da Rabeca, que em memória é citado na música Memória ao Mestre, composta por Catarina Rossi e tocada nos instrumentos do próprio Mestre, por ambos (Catarina e André).
Quando o disco acabou, minhas lembranças estavam nas paisagens do livro Grande Sertão Veredas, do mestre Guimarães Rosa, e as reflexões iniciais de Riobaldo sobre a vida, o bem e o mal, deus e o diabo, até a revelação de seu grande amigo Reinaldo, que na verdade se chama Diadorim, seu grande amor!
Eis duas dicas para o amigo fazer em suas horas de lazer: ouvir Arco de Rio e reler Grande Sertão Veredas.
Em um período tão angustiante que vivemos, ambos são essenciais.
9- Chick Corea: The Montreux Years Live (BMG, 2022)
Assim que entrei no colegial, meu horizonte musical se expandiu para estilos que não ouvíamos em casa, e nem tampouco na casa dos clientes do meu pai.
E essa abertura para o jazz fusion, no início dos anos setenta, ocorreu justamente quando em um sábado em minha peregrinação pelas lojas de discos, me deparei com dois discos que iriam mudar para sempre minha percepção musical: Where Have I Known You Before da banda Return To Forever com o pianista Chick Corea, de 1974, e seu disco solo The Leprechaun de 1975.
Discos originais que tenho até hoje e ouço com enorme interesse, cada vez que realizo um upgrade em meu setup analógico. Pena ambos serem prensagem nacional e estarem bem ‘malhados’.
Se for falar de todos os trabalhos de Chick Corea que possuo, a lista será extensa com mais de 30 gravações. Nascido Armando Anthony “Chick” Corea, em junho de 1941, seu primeiro trabalho de destaque foi justamente sua colaboração na banda de Miles Davis, no final da década de 60. Antes de sair para formar seu grupo Return Forever, com participação do baixista Stanley Clarke, o baterista Lenny White e o guitarrista Al Di Meola.
Descendente de italianos, seu pai era um trompetista de jazz que liderava uma banda de Dixieland nos anos 40. O que fez com que o garoto Chick Corea escutasse em sua casa, desde cedo, muito jazz e música clássica.
Começou a estudar piano com 6 anos, e teve a sorte grande de estudar com Salvatore Sullo, e que lhe mostrou a riqueza da música clássica e da composição. Para ganhar experiência, ainda bem jovem tocou na banda de Willie Bobo, depois na de Blue Mitchell, até chamar a atenção do saxofonista Stan Getz e realizar uma longa turnê com o ele pela costa leste dos Estados Unidos, em 1967.
Sua primeira gravação como líder foi em 1968, com Miroslav Vitous e Roy Haynes – Now He Sings, Now He Sobs – ainda hoje considerado um disco clássico.
Em 68, com a saída de Herbie Hancock da banda de Miles Davis, Chick Corea foi convidado a fazer um teste. Para sua surpresa, ao chegar para a avaliação, não havia um piano acústico e sim um piano elétrico. Corea não se intimidou, e mostrou a Miles que poderia perfeitamente ser o tecladista que ele desejava. Ficou na banda de Miles por três anos (68 a 70) e participou dos álbuns: Filles de Kilimanjaro, In a Silent Way e Bitches Brew. Chick Corea sempre afirmou que os três anos na banda de Miles, foram como uma pós graduação, e que mudaram sua maneira de pensar musicalmente para sempre – tanto na maneira de compor, como de executar suas ideias.
Fica evidente essa influência já nos seus primeiros trabalhos, tanto com o grupo Return Forever, como nos seus discos individuais, com o uso de piano, um Fender Rhodes e diversos sintetizadores.
Passada a febre do jazz fusion, no final dos anos setenta, ele voltou a se dedicar ao piano e fez excelentes trabalhos em duo com o grande amigo Herbie Hancock. Trios, quartetos com Michael Brecker, Miroslav Vitous e Roy Haynes, e fez excelentes trabalhos com o grande parceiro vibrafonista Gary Burton.
No Festival de Jazz de Montreux, Chick Corea se apresentou 23 vezes! E com algumas apresentações marcantes, tanto com trios, quartetos como em formações maiores.
A BMG, em parceria com o Montreux Jazz Festival, lançará no dia 23 de setembro o pacote Chick Corea: The Montreux Years, uma coleção com os principais shows entre 1981 e 2010. Esses shows estarão disponíveis em diversas plataformas, em configurações multi-formato, incluindo vinil de 180 gramas, CDs, e em serviços de streaming em versão HD e MQA.
O CD terá a apresentação do festival de 2001, seguido da homenagem a Bud Powell em sua apresentação de 2010, a famosa apresentação de 1988 com seu quarteto acústico, Interlude de 2004, a apresentação solo de 1993, a sua apresentação de 2006, e fechando com a New Waltz de 1993 (sua famosa apresentação em que teve que voltar ao palco quatro vezes para realizar o bis).
A BMG não disponibilizou o preço dos pacotes nem de vinil e nem de CDs. Mas, se tiver o mesmo capricho do pacote da Nina Simone, garanto que será uma bela homenagem a esse grande músico que, se estivesse vivo, teria completado 80 anos!
10- Anat Cohen – Quartetinho (Anzic Records, 2022)
Esse é seu mais recente trabalho, lançado a poucas semanas, e virou logo depois de sua primeira audição mais um disco de ‘cabeceira’ – como costumo dizer dos discos que me encantam e passam a ser ouvidos nos raros momentos que tenho de lazer, geralmente entre o encerramento de uma edição e o começo de outra.
Se você não quiser apenas em streamer esse lindo disco, seu selo Anzic Records vende o download em alta resolução pelo seu site. Mas se você for assinante do Tidal ou QoBuz, a qualidade já é de alto nível.
Como em todos os seus trabalhos mais recentes (para ser exato das gravações de 2008 para cá) Anat grava nossa música. Nesse disco temos versões espetaculares de Palhaço e Frevo de Egberto Gismonti, e O Boto de Tom Jobim. É um disco de um repertório brilhante, em que todos os músicos convidados têm liberdade para solar e participar ativamente dos arranjos.
E o que mais se sobressai é a técnica exuberante de Anat, que toca como se estivesse ensaiando ou apenas exercitando. Sua digitação e o grau de limpeza em seus fraseados, são espetaculares!
Aqui você precisará ter tempo para escutar as 11 faixas, pois será impossível levantar para fazer qualquer outra atividade. Trata-se de uma gravação que exigirá um bom equilíbrio tonal de seu sistema (principalmente nas faixas com contrabaixo, clarinete, piano e vibrafone). E também para avaliar o grau de inteligibilidade de seu sistema na resposta de microdinâmica.