Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
O que recebo de solicitações para indicar boas gravações para avaliação de corpo harmônico, vem crescendo à medida que os leitores se tocam da importância desse quesito para que o nosso cérebro aceite que a quela reprodução é quase ‘real’.
Me lembro que, nos primeiros anos de apresentação da Metodologia em nossos Cursos de Percepção Auditiva, ao perguntar aos participantes quais quesitos eram essenciais para eles montarem seus sistemas, corpo harmônico e textura eram os últimos da fila de prioridades.
Até eu mostrar àquela turma a diferença de um disco reproduzido em um CD-Player mais simples – onde o corpo de todos os instrumentos são quase que do mesmo tamanho, e muito menores do que em uma apresentação ao vivo. E somente em um CD-Player ou DAC de melhor qualidade, é possível notar que um cello tem um corpo menor que um contrabaixo, ou um flautim tem corpo menor que de uma flauta transversal.
E que, um ‘cérebro’ com referências reais desses instrumentos, não se deixaria enganar, por mais que os outros quesitos da Metodologia estivessem bem apresentados.
E quando eu apresentava a versão da mesma música em LP, a sala geralmente vinha abaixo com o enorme alvoroço causado pela apresentação muito mais próxima do real nessa mídia.
Ainda hoje leio e escuto que o vinil tem uma sonoridade ‘especial’, que o ouvinte tem uma relação de memória afetiva com o vinil, a possibilidade de capas e encartes mais bem elaborados, que nos remetem a explorá-las – e todo esse blá, blá, blá – e esquecem dessa característica essencial: o corpo harmônico!
Antes de nossa Metodologia ser lançada em 1999, jamais nenhuma revista de áudio ou algum articulista notou essa característica, e os efeitos que ela proporciona em uma audição criteriosa.
Aliás, fui questionado a respeito desse quesito, já que nunca havia sequer sido mencionado ou percebido como um elemento importante para a nossa percepção auditiva.
Lembro que, quando ouvi os primeiros CD-Players e as primeiras mídias, o que mais me chocou foi justamente a dureza dos timbres e a falta de corpo harmônico em todos os instrumentos e gravações.
E me perguntava, incessantemente: como no desenvolvimento dessa plataforma e na remasterização dos discos da fita para o digital, ninguém está percebendo essas anomalias tão evidentes?
Nenhum objetivista se manifestou – eles não podem tirar de seus ombros essa responsabilidade. Ficaram como sempre apenas obcecados pelos números, e julgaram que o digital era um avanço enorme em relação ao analógico.
Se não fosse os ‘subjetivistas’ com referência de música ao vivo não amplificada levantarem o problema, o digital estaria ainda hoje como em seu nascedouro.
O que teria melhorado? Números, apenas isso e nada mais!
E a história está a se repetir com o streamer, pois se tem duas coisas que faltam ser corrigidas, ainda são: soundstage e corpo harmônico. E nos DACs de entrada e streamers mais baratos, quando sou levado a ouvi-los, parece que estou de novo de volta aos anos 90!
O que os objetivistas falam? Que gastar mais de 1000 dólares em um DAC é jogar dinheiro fora, e que usar um cabo USB de mais de 100 dólares, idem. E que os streamers de 500 dólares são o verdadeiro nirvana sonoro!
Toda gravação que indico na Playlist, antes de publicá-la ouço no meu celular com diversos fones, no streamer de algum integrado que esteja testando, no Innuos e, agora, no Nagra – para justamente poder ouvir como nesses dois quesitos (soundstage e corpo harmônico) das gravações escolhidas se comportam.
Se as diferenças não forem audíveis, procuro outras, pois acho importante que o nosso leitor perceba em seu sistema, principalmente quando fizer upgrades, as melhoras que essas gravações terão em setups mais bem afinados.
Isso não é efeito placebo – como os objetivistas adoram dizer quando conseguimos observar diferenças – elas são reais e estão lá para quem quiser ouvir.
Vamos às duas gravações escolhidas para o Playlist deste mês.
Com elas, você leitor poderá avaliar se sua sala está com sobra de graves (o problema central da maioria das salas de qualquer audiófilo), e a qualidade do corpo harmônico do seu DAC e do seu streamer, e de sua caixa acústica.
1) AVISHAI COHEN – BRIGHTLIGHT (NAÏVE RECORDS, 2024)
Não é a primeira vez que indico um disco desse virtuoso contrabaixista, arranjador, compositor e cantor na Playlist.
Esse é o seu mais recente trabalho com seu trio, com Roni Kaspi no piano, e Guy Moskovich na bateria.
O interessante deste trabalho é que o quesito corpo harmônico irá ser muito diferente à medida que você sobe de patamar, tanto no streamer quanto no DAC.
Mas para entender a qualidade desse feito, por favor, antes de ouvir no seu sistema, ouça em seu celular com o melhor fone que tiver. Se possível o disco inteiro e você irá observar que fones não conseguem diferenciar o corpo dos instrumentos, por limitações óbvias do próprio fone. E você, que é mais jovem, terá uma ideia de como os primeiros CD-Players apresentavam o corpo dos instrumentos todos como ‘pizzas brotinhos’ (e nos fones fica ainda pior, pois parecem ‘mini coxinhas’, rs).
Depois de fazer essa primeira etapa de sua lição de casa, ouça em seu sistema, que certamente mostrará os instrumentos em tamanhos maiores que no fone.
Mas e aí, é possível perceber que o contrabaixo tem um corpo diferente do aro da caixa da bateria, ou do chimbal, e que o piano também tem um corpo maior que o contrabaixo?
Ou no seu sistema, são apenas maiores, mas continuam soando homogêneos como se todos fossem iguais.
Para responder a essa minha dúvida, por favor comece pela faixa 4, The Ever And Ever Evolving Etude. Pois ela irá lhe dar as respostas que estou solicitando.
E se no seu sistema, o trio soar com o mesmo corpo, acredite, não será assim em DACs, streamers e caixas acústicas de melhor qualidade.
Agora, some a essa limitação o problema de muitos streamers e DACs de entrada terem um som chapado – bidimensional, só com largura e altura e você jamais convencerá seu cérebro a prestar a devida atenção, por mais que seu cérebro goste muito do que está ouvindo.
Pois nosso cérebro, para prestar total atenção, precisa estar convencido que aquilo é muito interessante de se ouvir.
E se você entender isso, compreenderá quando nos fóruns de discussão tem o depoimento de um audiófilo ou melômano, afirmando que com o upgrade realizado, ele teve o interesse não só de ouvir uma faixa ou duas, mas sim o disco todo!
Isso não é placebo! Isso é nosso cérebro sendo levado a prestar mais atenção e explorar aquela audição!
Se é tão óbvio, qual a razão dos objetivistas se negarem a aceitar?
Sinceramente, não sei.
Mas continuo tentando entender a mente do objetivista, quem sabe um dia ainda nessa minha existência eu tenha a resposta.
A outra faixa deste disco que quero que você ouça na sequência é a 7 – Roni’s Swing, em que todo o trio sola, e aí fica evidente o corpo harmônico de cada um dos instrumentos.
Se atente ao solo do Cohen, com a bateria ao fundo marcando o tempo.
Esse exemplo será matador para você avaliar o corpo harmônico de seu sistema.
Boa sorte!
2) BRIAN BROMBERG – LAFARO (2023)
Bromberg é um músico assíduo nos eventos hi-end, principalmente para mostrar em caixas book, em como elas reproduzem o contrabaixo.
É outro virtuose com longa carreira.
Esse disco é uma linda homenagem ao Scott LaFaro, um dos mais brilhantes contrabaixistas de jazz, que morreu precocemente em um acidente de carro quando estava apenas começando sua carreira.
Sua morte foi devastadora para o pianista Bill Evans, que mergulhou nas drogas e levou anos para se recuperar e voltar a tocar e gravar.
LaFaro tinha uma digitação tão limpa e precisa, e um bom gosto para a apresentação de seus solos, que beirava a perfeição.
Eu quando escuto as gravações dele com Bill Evans, em discos que estão na minha vida há mais de 50 anos, ainda percebo nuances que me dão a dimensão de sua genialidade.
Essa é uma homenagem mais do que merecida. E Bromberg estava inspirado tanto na seleção do repertório, quanto nos arranjos.
É um disco para saborear cada nota, e para avaliar o corpo harmônico do seu sistema de forma ‘minuciosa’. Aqui não haverá reféns: ou seu sistema passa com méritos, ou ‘volta dez casas’.
O engenheiro foi extremamente feliz na escolha dos microfones, posicionamento dos instrumentos na sala e na mixagem.
Quer começar já colocando seu sistema à prova neste quesito? Então play na faixa 2 – Waltz for Debby, e veja o corpo do contrabaixo, da bateria, dos pratos de condução da bateria, e na mão direita do pianista.
Se o corpo desses instrumentos não for muito semelhante ao instrumento ao vivo sem amplificação, seu sistema está ruim de corpo harmônico, meu amigo!
Repense o que pode estar errado. Se você tiver uma caixa bookshelf, comece por ver se o resto do sistema reproduz de maneira mais ‘real’ o corpo harmônico.
Se não for a book, veja o DAC. E se não for ele, todos os olhares de acusação e dedos estarão apontando para o seu streamer.
Só não culpe nenhuma dessas duas gravações, pois elas são exemplos ‘perfeitos’, como escrevi, para avaliar problemas de graves nas salas, e corpo harmônico. E com uma reprodução excelente, tanto no Tidal como no Qobuz.
Se tiver alguma dúvida, por favor mande uma mensagem para o meu e-mail: fernando@clubedoaudio.com.br.