Discos do Mês: ART-ROCK, TRILHA SONORA & JAZZ
julho 15, 2021
Opinião: POPULARIZAÇÃO CULTURAL DESTRUTIVA
julho 15, 2021

Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

SE SOMOS O QUE COMEMOS, SERÁ QUE TAMBÉM SOMOS O QUE OUVIMOS?

Essa é uma velha e calorosa discussão no meio audiófilo, e já rendeu dezenas de artigos em inúmeras mídias especializadas.

Eu não me atenho tanto ao tema no sentido em que ele é defendido e atacado, preferindo apenas lembrar a todos que o fato de que expandir nosso horizonte musical pode ser extremamente prazeroso.

E se as mais recentes teses defendidas pela neurociência, de que aprender algo novo independe de nossa idade biológica, e pode nos defender da perda de memória na velhice, acho que todos nós podemos nos esforçar para que isso ocorra, pois é infinitamente melhor prevenir do que remediar.

Sei que, muitas vezes nesta seção e na antiga CDs do Mês, devo ter me ‘excedido’ nas dicas, mas se mereço alguma defesa, era justamente no sentido de instigar a todos que saíssem de sua zona de conforto auditivo. Pois li artigos que mostram que nossas escolhas musicais e o ávido interesse em descobrir e curtir novos estilos, terminam antes de completarmos 30 anos de idade.

Confesso que relutei muito em aceitar essa tese, mas à medida que fui observando o gosto das pessoas acima de 40 anos,
constatei que é fato que a maioria dos melômanos escutam com maior prazer músicas que ouviram em sua infância, adolescência e nos primeiros anos da vida adulta.

Não entrarei no âmbito das memórias auditivas, pois bem sei o quanto elas nos são caras, mas sempre deixei espaço em minha curiosidade permanente de bisbilhotar por de cima do ‘muro’, e nunca me arrependi de fazê-lo. Pois descobri preciosidades musicais que não poderia passar essa existência sem conhecer.

Gosto muito de uma frase de uma letra da Adriana Calcanhoto, em que ela diz: “(…) eu presto muita atenção no que meu irmão ouve”, pois sempre fui assim, desde a mais tenra idade. Escutava com enorme interesse tudo que se ouvia em casa, e olha que o gosto dos meus familiares era o mais eclético que se possa imaginar. E só tenho a agradecer ter desfrutado deste caleidoscópio musical, pois ele ajudou-me a tornar-me um ser inquieto e sempre atento a tudo que as pessoas me apresentam.

Adoro descobrir obras que nunca ouvi, sejam elas uma simples canção folclórica ou uma obra clássica importante. E não sei se o leitor também passa por este processo, mas gosto de ouvir uma obra em diferentes estados emocionais, para saber se ela realmente conseguiu me fisgar ou não.

Claro que grande parte dos meus mais de 10 mil discos (CDs e LPs) são compostos por obras ’atemporais’, pois meu interesse por obras ‘datadas’ veio gradativamente diminuindo à medida que os primeiros cabelos grisalhos surgiram – mas algumas ainda resistem, como os ‘clássicos dos clássicos’ do rock progressivo e do jazz fusion. Mas suas audições são cada vez mais raras, a não ser que alguém, ao conhecer minha coleção, se interesse por escutar.

Neste aspecto, o streaming tem sido uma ‘viagem sonora’ fabulosa, pois tenho visitado universos musicais nunca antes explorados por mim. Então, para escrever a cada mês esta seção, o leitor não tem ideia do quanto eu me empenho em descobrir lançamentos ou obras que acho que podem ‘cutucar’ vocês.

Portanto, se este mês extrapolei, peço de antemão desculpas, mas escolhi obras que valem pelo menos uma audição. E quem sabe alguns até curtam, pois todas tem o intuito de nos tirar da zona de conforto e nos fazer ‘experimentar’ novas emoções.

Espero que se manifestem, seja para agradecer ou descer o sarrafo.

O primeiro disco deste mês é de uma talentosa trompetista francesa, Airelle Besson, com seu disco Radio One lançado em 2016. Além de trompetista, Airelle também é compositora e arranjadora. Ganhou por duas vezes o prêmio da Academia Francesa Django Reinhardt como Revelação Jazz do Ano, e Melhor disco. Radio One foi o primeiro trabalho com seu novo quarteto, com a vocalista Isabel Sörling, Benjamin Moussay no piano e Fender Rhodes, e Fabrice Moreau na bateria. Ela foi aluna por dois anos de Wynton Marsalis e Kato Havas, e se formou e graduou-se no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris. Já se apresentou com o próprio
Wynton Marsalis, com Charlie Haden, Carla Bley, Youn Sun Nah, Manu Katché, Philip Catherine, Avishai Cohen (de que também indico um disco neste mês), e José James. Nos últimos anos, além do trompete, ela também tem gravado com flugelhorn, e mais recentemente violino (instrumento que ela tocava antes dos sete anos, quando se apaixonou pelo instrumento de sopro).

OUÇA RADIO ONE – AIRELLE BESSON, NO TIDAL.

Suas primeiras gravações profissionais foram feitas com a big band European Jazz Youth Orchestra, sob a direção de Helge Albin, passando logo em seguida para a big band de François Laudet e, na sequência, foi convidada para tocar no sexteto de Éric Barret. Isso até iniciar seus trabalhos solo e, em 2015, formar seu próprio quarteto.

Para não lhe assustar, meu caro leitor, inicie a audição pela faixa 2 – All I Want, e se gostar, escute todo o disco. Claro que pode causar um certo ‘estranhamento’ em algumas faixas, como a que dá título ao disco, ou as faixas Candy Parties e No Time to Think – mas se estiver em um daqueles dias ensolarados e de bem com a vida, garanto que a chance de gostar do disco existirá! O quarteto é muito bom, e os arranjos são bastante interessantes e criativos.

A segunda escolha é de um bandolinista fabuloso chamado Chris Thile e seu disco lançado em 2014 – Bass & Mandolin com o baixista Edgar Meyer. Thile nasceu em 1981 na Califórnia, e começou a tocar bandolim com cinco anos, tendo aulas com John Moore. Com
13 anos, após tocar em vários festivais regionais pelo país, ele gravou uma fita demo e enviou à gravadora Sugar Hill e à Honder – para a surpresa de seus pais, ambas as gravadoras quiseram contratá-lo! Mas seus pais escolheram a Sugar Hill e, com apenas 14 anos, Chris lançou seu primeiro álbum solo – Leading Off, quase todo com composições suas. Era o início de uma meteórica carreira para um jovem ainda menor de idade.

OUÇA BASS & MANDOLIN – CHRIS THILE E EDGAR MEYER, NO TIDAL.

Mas seu reconhecimento artístico veio em 2003, quando ele se juntou ao também bandolinista Mike Marshall, e gravaram o disco Into The Cauldron, que incluía composições inéditas de ambos e obras transcritas para duo de bandolim, de Charlie Parker e de J.S. Bach. Com sua carreira já solidificada, Chris partiu para produções mais ‘experimentais’, como o disco de 2004 – Deceivers, no qual ele gravou todas as faixas sozinho, tocando além do bandolim, guitarra, baixo, bateria, piano, violino, viola, violoncelo e baixo. Este trabalho teve maior repercussão entre os músicos e críticos de música do que no público consumidor, mas colocou Chris na mira das gravadoras maiores, que estão sempre buscando novos talentos multi-instrumentistas para aumentar suas vendas.

Em 2007 Chris se viu novamente com a necessidade de mostrar seu trabalho com uma banda permanente, e deste desejo ele criou a Punch Brother, que lançou seu primeiro trabalho em 2008 pelo selo Nonesuch Records. Na sequência, vieram os trabalhos Antifogmatic, de 2010, e Who’s Feeling Young Now, de 2012. O último álbum da banda foi lançado em 2015: The Phosphorescent Blues. Chris Thile também tem alguns trabalhos paralelos, como um duo com o guitarrista Michael Davis, e obras clássicas com a Orquestra Sinfônica do Colorado, Orquestra de Câmera de Los Angeles, Orquestra do Oregon, e trabalhos mais recentes com o violoncelista Yo-Yo Ma, tocando obras de J.S. Bach.

Bass & Mandolin é uma obra belíssima de dois virtuoses explorando seus instrumentos integralmente. Composições complexas, intrigantes que, no entanto, na mão dessa dupla, parecem melodias simples com apenas dois acordes. Chris também, em algumas faixas, toca piano, mostrando que sua genialidade há muito ultrapassou sua paixão inicial pelo bandolim. Mas se o amigo leitor achar o disco ‘desinteressante’, tenho um argumento ‘matador’ que o fará se interessar em escutar este disco com muito gosto, e ainda terá orgulho de mostrar aos amigos audiófilos, pois se trata de uma excelente gravação para se avaliar corpo harmônico (mesmo em streaming). Usando este argumento, me lembro quando meu filho era pequeno e o fazia comer jiló, dizendo que era excelente para seu crescimento e fortalecimento dos dedos (pois ele reclamava aos seis anos que era difícil fazer corretamente os acordes que o professor passava no violão). Só consegui enganá-lo até os oito anos, quando ele não teve mais dificuldade alguma, rs.

E o último disco deste mês é do baixista israelense Avishai Cohen, e para os que não conhecem sua obra escolhi uma coletânea lançada em 2020 – 50 The Gold Selection, que lhe permitirá ter um panorama consistente de sua genialidade. Avishai Cohen nasceu em Kabri, Israel, em 20 de abril de 1970, filho de uma família multicultural cujas raízes de seus ancestrais se encontram na Espanha, Grécia e Polônia. Seus pais amavam a música, e ouviam de tudo, desde música folclórica até grandes obras clássicas. Aos nove anos, uma tia o presenteou com um piano e, quando se mudou aos 14 anos para os Estados Unidos, no estado do Missouri, ele também começou a tocar baixo. Um dia, ao chegar para sua aula semanal, ele ouviu ainda da rua um contrabaixo elétrico, que parecia mais um solo de guitarra grave, e foi apresentado pelo seu professor ao baixo elétrico de Jaco Pastorius.

OUÇA THE 50 GOLD SELECTION – AVISHAI COHEN, NO TIDAL.

Quando voltou para Israel, aos 18 anos, para servir os dois anos obrigatórios no exército, conseguiu em suas horas vagas estudar contrabaixo na Academia de Música e Artes em Jerusalém. Livre do exército, decidiu que seguiria a carreira de músico, e voltou aos 22 anos para Nova York. Era um inverno rigoroso, em 1992, quando ele chegou à cidade, e o jovem teve que trabalhar na construção civil para sobreviver. Já estabelecido na cidade, ele se matriculou no curso noturno na New School, e logo chamou a atenção de um jovem pianista que também lá estudava – Brad Mehldau – e com o também jovem pianista panamenho Danilo Peres, que estava formando seu trio e convidou Avishai Cohen. Em 1997, ainda vendo sua carreira patinar, recebeu uma ligação do pianista Chick Corea, que escutou sua fita demo que ele havia distribuído em uma série de casas noturnas. Por sorte Chick Corea escutou e o convidou para participar de seu novo trio, Origin. Foram seis anos de uma convivência que se tornou uma sólida amizade, a ponto de Avishai o considerar seu verdadeiro professor.

Chick Corea ficou tão impressionado com Avishai, que produziu e lançou pelo seu selo os primeiros quatro discos solo: Adama (1998), Devotion (1999), Colors (2000) e Unity (2001). O que mais chama a atenção das composições de Avishai Cohen é sua facilidade em navegar por todas as influências musicais da Europa, Ásia e também latinas, como se ele fosse verdadeiramente um cidadão do mundo. Com os anos Avishai se mostrou muito mais que apenas um virtuose no contrabaixo, se apresentando e também tocando piano e escrevendo obras cada vez mais complexas, e expandindo seu universo para todos os estilos, do clássico ao jazz.

Em 2002 Avishai montou seu próprio selo – Razdaz Recordz – que busca dar oportunidade a novos talentos de todos os estilos e continentes. Em 2008, já com sua carreira solidificada, resolveu fazer o caminho de volta e se instalou em Israel definitivamente. Buscando resgatar suas raízes, lançou Sensitive Hours e conseguiu a façanha da venda de mais de 100 mil discos. Foi seu primeiro álbum a introduzir vocais em todas as suas composições, bem como canções em hebraico. Em 2009 ele foi convidado a realizar uma parceria com EMI/Blue Note, com liberdade total na produção de seus discos, e ele viu neste convite a grande oportunidade de se cercar de músicos jovens e criou um projeto grandioso que mesclou jazz, música erudita e tradições sefarditas, e gravou em todas as línguas que tinha domínio de escrita e canto: hebraico, inglês, espanhol e latino, e passou a cantar suas composições.

Por sua vasta cultura musical é que escolhi este disco, pois ele lhe dará uma ideia consistente da criatividade deste excelente baixista.
Espero que você aprecie as três dicas deste mês, e por favor, gostando ou não, deixe-me saber, pois a pior coisa é ter tanto cuidado na audição e escolha da lista e acabar ‘ficando no vácuo’ sem um feedback.

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