Fernando Andrette
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Já havia escolhido todos os discos desta edição, e estava apenas decidindo as gravações que seriam publicadas em dezembro, quando recebo a triste notícia da morte de Nelson Freire.
Fiquei por algumas horas com aquele vazio intenso que sentimos quando perdemos alguém que admiramos e respeitamos, até nos recompormos e nos lembrarmos que a vida segue até que chegue nossa vez de partirmos para o silêncio absoluto, aquele que sentimos todas as noites no sono profundo sem sonhos.
Para algumas culturas orientais, é ensinado a suas crianças que a morte nada mais é do que a experiência do sono sem sonho, em que perdemos a identidade e a noção de tempo e espaço. Essa descrição da morte sempre me caiu muito bem e, se assim for, não tenho absolutamente nada a temer.
E das descrições ocidentais, a que mais se aproxima da visão oriental, é a do poeta Fernando Pessoa ao descrever que a morte é mais do que se quer e menos do que se espera.
Acho ambas muito interessantes e humanizam o desfecho inexorável a todos que vivem.
Passado o choque inicial, resolvi colocar na playlist um disco recente do Nelson Freire, mas depois cheguei à conclusão que ele merecia um playlist só seu. E assim decidi, na esperança que muitos dos nossos leitores mais jovens e avessos à música clássica possam se interessar por alguma das gravações sugeridas.
Difícil foi escolher as quatro gravações para essa playlist, pois foram mais de 50 discos nos 60 anos de sua brilhante carreira profissional.
Nasceu em Boa Esperança, no Sul de Minas, em 1944, em 1950 mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em busca de professores que pudessem aprimorar seu talento e, em 1957, com apenas 13 anos, Nelson Freire foi finalista do Primeiro Concurso Internacional de Piano, interpretando o primeiro movimento do Concerto no.5 – Imperador, de Beethoven.
Como prêmio, Nelson Freire ganhou uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar na Europa. E foi estudar com o mestre Bruno
George Seidlhfer, que lecionava na Academia de Música de Viena. Acabou por fixar residência em Paris, e a despontar como um jovem talento, conquistando prêmios em concursos importantes europeus, como: Dinu Lipatti e o Vianna da Motta International Music Competition.
Os selos de música clássica rapidamente o convidaram para gravar obras importantes. Pela CBS/Sony, na década de 60, gravou o Carnaval de Schumann, a Sonata Opus 5 de Brahms, a Sonata de Liszt e a Sonata Opus 58 de Chopin, seguidos dos concertos de Grieg e Tchaikovsky. Mas a crítica o ‘rotulou’ (termo que ele abominava), nos anos 70 e 80, como um grande intérprete de Beethoven, Chopin, Debussy e Rachmaninov.
Foram tantas críticas positivas que, em janeiro de 1970, Harold C. Schoenberg, o mais conceituado crítico de música americano, escreveu no New York Times: “Um dos mais consistentes ganhadores de prêmios musicais da última década tem sido o pianista brasileiro Nelson Freire. Ele tem agora 25 anos de idade. Na noite passada, ele finalmente fez sua primeira aparição em Nova York, tocando o Concerto para Piano no.4 de Rachmaninov, acompanhado da Filarmônica de Nova York sob regência de Rafael De Burgos”.
Ali Nelson Freire passaria sua vida em salas de concerto, se apresentando com as mais relevantes orquestras do mundo e grandes maestros, como: Pierre Boulez, André Previn, Seiji Ozawa, Riccardo Chailly, Lorin Maazel, Rudolf Kempe, Kurt Masur e mais uma lista interminável.
Nelson Freire nunca esqueceu de suas origens e, em 1973, fez questão de lançar para o selo alemão Teldec um disco com obras de Villa Lobos, e deixou claro nas entrevistas da época que, para ele, Villa Lobos é o maior compositor latino americano do
século 20.
Não pensem que os quatro discos aqui escolhidos foram fruto de uma intensa pesquisa – pelo contrário, foram escolhidos sobre a forte emoção da perda. Só queria compartilhar com vocês minha tristeza e ao mesmo tempo homenageá-lo.
Espero que apreciem.
Este primeiro disco saiu dois dias antes de sua morte, e trata-se de uma coletânea feita com inúmeras gravações para o selo Decca.
São diversos compositores, e o ouvinte terá uma consistente ideia de seu talento e genialidade como pianista.
Obras de Gluck, Chopin, Villa-Lobos, Bach, Brahms, Debussy, Grieg, Rachmaninov, Schumann, Beethoven, Saint-Saens e Liszt.
Indico este disco a todos os leitores que ainda não descobriram o universo que é a música clássica.
Infelizmente tenho a impressão que a este belíssimo disco só será dado o seu devido valor agora que ele não está mais aqui.
Pois tirando a Diapason, que fez uma crítica bastante elogiosa, li ‘besteiras’ como: ‘uma gravação burocrática’ (algo inimaginável para um talento como o de Nelson Freire), mas que não me surpreende vindo dos críticos que geralmente desejam criar polêmica.
nteressante que este mesmo crítico fez elogios rasgados a um pianista oriental que gravou essas mesmas sonatas, e a sensação que tive ao escutar era de um estudante inseguro, amedrontado, tentando sair o mais rápido possível daquela situação.
Para o leitor não familiarizado com as ‘sutilezas’ da sonata número 3 de Brahms, ouça atentamente o primeiro movimento com suas variações dinâmicas, e as tensões que vão em um crescendo, e perceba o contraste com o segundo movimento, em que o silêncio permeia cada nota e acorde.
Se você não leu meu editorial, por favor o faça, pois essa gravação mostra com enorme clareza o grau de disciplina corporal e delicadeza de Nelson Freire.
Ouça o primeiro movimento – foi com este que Nelson Freire, aos 13 anos de idade, ganhou a bolsa de estudos para ir estudar na Europa. Ele sempre teve um carinho enorme por essa obra.
Não acredito que se tenha registro da sua apresentação aos 13 anos, mas eu morrerei curioso em saber como foi a execução deste primeiro movimento do frágil menino prodígio, em comparação com o experiente Nelson Freire no apogeu de sua gloriosa carreira.
Belíssima gravação, digna de ser aplaudida de pé!
Este é um disco duplo, e um dos meus discos ‘de cabeceira’. Eu o ouço em diversos momentos de minha vida, seja em momentos de profunda paz ou de angústia dilacerante.
É um dos meus discos que, em cada audição, descubro detalhes de intencionalidade, como se Nelson Freire estivesse ali na minha frente explicando a razão dele tocar daquela exata maneira, muito distinta de outras interpretações, também elogiadíssimas.
E a cada nota é possível ver seus suaves ou intensos movimentos, para nos transmitir o que ele descobriu naquela passagem em que Chopin escreveu apenas “pianíssimo”, e nenhuma pista adicional, deixando à mercê do pianista que a traduza da melhor maneira possível.
Nelson Freire para mim não foi apenas um genial pianista, era também um exímio ‘tradutor’ das intenções dos grandes compositores que escreveram obras para piano.