Vinil do Mês: VANGELIS – HEAVEN AND HELL (RCA, 1975)
julho 7, 2022
Enquete: RESULTADO DA ENQUETE DA EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO
julho 7, 2022

Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Adoro a luz das tardes de julho. Tenho lindas recordações de minha infância e das férias escolares do meio do ano, em que podíamos finalmente dedicar o dia as brincadeiras de rua como andar de bicicleta, jogar taco, queimada, futebol e, o que eu mais gostava: andar de carrinho de rolimã no asfalto recém colocado nas antigas ruas de paralelepípedo do bairro do Tatuapé, quase divisa com o bairro da Penha.

Quem assistiu a série Anos Incríveis, que passou há muitos anos na TV Cultura, certamente entenderá um pouco dessa ‘magia’ que era ser criança nos anos sessenta, em que as calçadas eram extensão de nossas casas e que todos comunitariamente dividiam aquele espaço democraticamente.

Foi nesse clima, olhando essa iluminação deslumbrante pela janela de nossa sala de referência que sentei para escrever mais um Playlist, ouvindo os lançamentos deste mês no Tidal, e me deparei com mais de uma dezena de excelentes gravações.

Então como se tivesse de férias, despretensiosamente ouvi todos os lançamentos, em nosso Sistema de Referência, e concluí que a escolha seria pelos discos que mais me tocaram emocionalmente nesse primeiro contato com essas gravações.

Este não costuma ser meu critério de escolha frequente, pois sempre faço uma pré seleção e depois escuto o trabalho na íntegra para avaliar qualidade artística e técnica.

Dessa vez me deixei contagiar pela ‘atmosfera’ dessa luz de inverno, e minha mente ficou a vagar entre notas e frases sem nenhum pré requisito.

Espero que você aprecie a escolha, pois reouvindo os quatro discos para escrever, fiquei contente de serem esses os discos escolhidos. Pois cada um deles tem algo a dizer.

OUÇA ALMA NAIDU – ALMA, NO TIDAL.

1- Alma Naidu – Alma (Leopard, 2022)

Meu amigo, estou apaixonado por essa cantora, compositora, pianista e arranjadora, alemã de 27 anos, que finalmente tomou coragem de mostrar seu enorme talento!

Esse é seu primeiro trabalho, mas no Youtube você achará alguns vídeos de shows seus realizados nos últimos dois anos.
Indico os feitos com seu sexteto (dois cantores), trio de cordas (violino, viola e cello) e bateria. Aí se tem uma ideia exata de sua versatilidade.

Filha de uma famosa cantora lírica alemã e de pai músico de jazz, Alma navega por todos os gêneros musicais, como a música lírica, música de câmara, música à capela e jazz, com tamanha desenvoltura e segurança, que ela mais parece uma veterana com muitos anos de estrada.

Dona de uma voz com excelente extensão, ela, no entanto, canta de maneira tão intimista que nos seduz à primeira nota. Quer um exemplo?

Sente e dê play na faixa 1 – Just a Word, observe como sua interpretação é segura sem a necessidade de mostrar suas qualidades técnicas. Na sequência, ouça a faixa 4 – And So It Goes. E esteja liberado para curtir todo o disco! Será uma viagem sonora maravilhosa, acredite!

OUÇA VALENTINA LISITSA – LE ONDE – LUDOVICO EINAUDI’S 14 BEST SONGS, NO TIDAL.

2- Valentina Lisitsa – Le Onde – Ludovico Einaudi’s 14 Best Songs (QO Records, 2020)

Não acredito que algum leitor da revista nunca tenha assistido no Youtube uma apresentação dessa maravilhosa pianista ucraniana, Valentina Lisitsa. Minha filha de 13 anos acompanha seus vídeos desde que tinha apenas 8 anos.

Nascida em Kiev em 1973, numa família em que ninguém era músico, Valentina começou a tocar piano aos 3 anos e, aos 4 anos, fez seu primeiro recital solo.

Ainda que tivesse esse enorme talento desde muito cedo, Valentina na verdade queria ser enxadrista profissional. Por insistência dos pais e de seus professores continuou estudando, e no conservatório de Kiev conheceu seu marido (também pianista), Alexei Kuznetsoff, que a fez repensar sua carreira musical.

Em 1991, o casal venceu a competição para duo de pianos da Fundação Murray Dranoff, e ali as portas se abriram para eles. Atualmente o casal vive na Carolina do Norte, nos EUA.

Pois bem, em vez de escolher Valentina tocando Chopin, Beethoven ou Rachmaninoff, escolhi um dos seus trabalhos mais pessoais, que ela fez a próprias custas, já que o selo Decca não se interessou em lançar (e deve com certeza ter-se arrependido).

Trata-se de 14 obras do compositor Ludovico Einaudi, transcritas para piano. Também pianista, ele nasceu em Turim em 1955 e foi discípulo do compositor Luciano Berio nos anos 80, o que determinou sua carreira como compositor de música erudita. Mas logo percebeu que não poderia deixar de também incluir outros gêneros como rock, world music, folk music e trilhas de filmes.

Valentina, em uma entrevista para uma rádio de Milão, contou de sua admiração pelo trabalho de Ludovico e que estava ‘pensando’ em fazer um disco solo com 14 temas que ela sempre tocou para amigos próximos.

Deixarei para vocês me dizerem o que acham deste disco de Valentina com obras de Einaudi. Assim que ouvi, chamei minha filha, achando que estava lhe mostrando algo inédito. Assim que ouviu as primeiras notas da Le Onde, sorriu e me disse: “que legal que você descobriu esse trabalho da Valentina!”. Ou estou ficando velho, ou esses filhos estão espertos demais!

OUÇA SAMARA JOY – SAMARA JOY, NO TIDAL.

3- Samara Joy – Samara Joy (Whirlwind Recordings, 2021)

Detesto comparar novos talentos com referências consagradas. Acho, além de temerário, desnecessário com quem está iniciando sua trajetória. E lembremos que timbres vocais são como impressão digital: não existem duas iguais.

Faço este adendo para dizer algo que talvez não diria alguns anos atrás (não sei se por auto censura, vergonha, sei lá….), mas acho que ouvi a voz feminina mais divina dos últimos anos! Ela se chama Samara Joy, e já ouvi seu primeiro trabalho quase que 30 vezes desde que o descobri!

Com apenas 24 anos, Samara nasceu no Bronx, em Nova York. Em 2019 ela venceu o Concurso Internacional de Jazz Vocal Sarah Vaughan, e com isso ganhou notoriedade e convites para lançar seu primeiro trabalho.

Samara, depois de muito pensar, chamou o trio do guitarrista Pasquale Grasso, o que na minha opinião foi uma decisão acertadíssima, pois o trio lhe dá a ‘sustentação’ para sua voz e técnica vocal brilharem. Os arranjos são excelentes, e o repertório, ainda que repleto de ‘standards’, soam primorosamente na voz angelical de Samara!

Bem, mas de onde vem todo esse talento nato? Seus avós paternos, Elder Goldwire e Ruth McLendon, lideraram por décadas o grupo gospel da Filadélfia, The Savettes. E sua casa sempre esteve repleta de música e de muitos artistas de gospel, R&B, e vozes consagradas como Stevie Wonder, Lalah Hathaway, George Duke, Kim Burrell e muitos outros.

Em sua primeira entrevista para a BBC após o lançamento do seu primeiro trabalho, Samara Joy disse: “Embora eu não tenha crescido cantando na Igreja, eu constantemente ouvia minha família cantando músicas inspiradoras, o que só acrescentou à minha formação musical”.

Isso, segundo ela, ajudou-a a explorar o alcance de sua voz, que a levou finalmente a ser líder de canto de louvor nos cultos da igreja, sendo na igreja a lapidação final de sua voz.

O escritor veterano de Jazz, Will Friedwald, no encarte do disco (algo que infelizmente só a mídia física nos proporciona), comenta: “As pessoas estão sempre usando a palavra ‘timeless’ como se fosse o maior elogio de todos os tempos, mas de certa forma a voz de Samara e sua música parecem pertencer a todos os tempos, como se ela estivesse conectada a toda a história do jazz de uma só vez- como se ela já existisse em todas as épocas simultaneamente, pois ela soa clássica e contemporânea” – assino embaixo, amigo leitor!
E não estou errado em afirmar que se trata da voz mais divina deste novo século!

Ouça e tire suas conclusões!

OUÇA CATARINA ROSSI & ANDRÉ MEHMARI – ARCO DE RIO, NO TIDAL.

4- Catarina Rossi & André Mehmari – Arco de Rio (Estúdio Monteverdi, 2022)

Esse foi o primeiro disco que ouvi, dos discos que separei, naquela luz das duas e meia da tarde, que suavemente tocava meu rosto, só do meu lado direito, já que a janela fica desse lado da sala.

Fechei os olhos e a sonoridade inconfundível da rabeca da Catarina Rossi, preencheu todos os cantos vazios, e que ainda teimavam em permanecer insolentemente silenciosos.

A música se fez presente com tamanha delicadeza que o resto de tensão que ainda havia nos ombros se desfez instantaneamente.
Arco de Rio é o primeiro EP da violista e pesquisadora de rabeca brasileira, Catarina Rossi, em parceria com o músico André Mehmari.

Foi criado através do edital Proac Lab 2021 – Prêmio por Histórico de Realização em Música – Artista.

Um álbum que nos leva a navegar por uma pluralidade de rabecas e teclas, percorrendo histórias de um Brasil sensível, potente e ancestral, sob a linda visão, talento e determinação e percepção de dois grandes músicos.

As composições de Mehmari deram voz às rabecas utilizadas neste trabalho de maneira magistral, que foram construídas por mestres de diferentes regiões deste Brasil, que se misturam com cravo, sintetizadores, clarinete e piano.

O disco conta com a participação especial de Jaques Morelenbaum ao violoncelo, Jackie Cunha na percussão, e ‘inspirações’ do Mestre Nelson da Rabeca, que em memória é citado na música Memória ao Mestre, composta por Catarina Rossi e tocada nos instrumentos do próprio Mestre, por ambos (Catarina e André).

Quando o disco acabou, minhas lembranças estavam nas paisagens do livro Grande Sertão Veredas, do mestre Guimarães Rosa, e as reflexões iniciais de Riobaldo sobre a vida, o bem e o mal, deus e o diabo, até a revelação de seu grande amigo Reinaldo, que na verdade se chama Diadorim, seu grande amor!

Eis duas dicas para o amigo fazer em suas horas de lazer: ouvir Arco de Rio e reler Grande Sertão Veredas.

Em um período tão angustiante que vivemos, ambos são essenciais.

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