MUSICIAN – Bibliografia: O alvorecer de uma nova era (II)

MUSICIAN – Bibliografia II: O prelúdio de uma nova era (II)
julho 5, 2019
ESPAÇO ABERTO: as memórias que não nos deixam esquecer
julho 5, 2019


Omar Castellan
revista@clubedoaudio.com.br

Na Europa, no início do século XX, uma vez mais os pintores estavam começando a produzir imagens estranhas, não mais vinculadas a convenções consideradas ultrapassadas, rejeitando as meras aparências. O realismo lhes havia sido roubado pela câmera fotográfica, e a eles cabia encontrar novos caminhos, para revelar o que havia por baixo da superfície. A inversão na arte e na música era a ordem do dia; as matérias-primas básicas foram desmontadas e combinadas de novo. Alguns experimentos levaram a becos sem saída, outros a novos começos. O que os artistas produziam era tão perturbador quanto observar a Terra do ar pela primeira vez. Durante algum tempo o público se recusou a aceitar essa nova visão perturbadora do mundo. Da mesma forma, em 1906, não se podia aceitar, de início, a formulação de Einstein da Teoria da Relatividade. Inexoravelmente, as telas expressivas de Van Gogh, Cézanne e Munch levaram ao Cubismo de Picasso e Braque e ao Futurismo de Boccioni e Duchamp – rags, voo, Relatividade e Cubismo, tudo em menos de uma década. O verdadeiro cataclismo musical chegou às vésperas da Primeira Guerra Mundial, com as partituras dos três primeiros balés de Igor Stravinsky (1882-1971). Contemporâneos, Picasso e Stravinsky pertencem ao século XX, tanto pelas suas raízes quanto pelas primeiras manifestações estéticas, mas cedo cada um seguiu a sua respectiva arte. Por outro lado, os seus destinos desenvolveram-se de modo paralelo. Muitas são as analogias traçadas entre eles: a emigração, que os fez perder paulatinamente as raízes folclóricas, mas, ao mesmo tempo, explorar linguagens universalistas; a eterna busca do novo, seguindo caminhos próprios; a inspiração, que os acompanhou até uma idade bastante avançada; e a facilidade com que adotam um estilo para depois esgotá-lo e substituí-lo por outro, não raro envolvendo contradições.

Como muitos outros compositores russos, Stravinsky não se decidiu de imediato pela música, mas optou por essa atividade ao conhecer Rimsky-Korsakov, que exerceu sobre ele certa influência pós-romântica e levemente impressionista. Em seguida, foi para Paris, vindo a fazer parte, juntamente com outros jovens talentos, do círculo que se reunia em torno de Diaghilev e seu Balé Russo. Até 1914, ocorreu o desenvolvimento e o apogeu de Stravinsky, um gênio prodigioso que se inspirou, nesse período, na cultura russa. Sua arte, original e enfeitiçante, empregou orquestras enormes, uma harmonia carregada e contrastes dinâmicos impressionantes. As obras-primas dessa época são os balés O Pássaro de Fogo (1910), Petrouchka (1911), A Sagração da Primavera (1913) e uma deliciosa ópera pouco conhecida, O Rouxinol (1914). Ainda saturado de Mussorgsky e moderadamente de Tchaikovsky, mas sem exclusivismo nacionalista, e bastante influenciado por Debussy, Stravinsky escreveu O Pássaro de Fogo (L’Oiseau de Feu), que alude, ainda, aos sonhos românticos. Suas cores exóticas eram parte daquela combinação do sabor oriental e da sexualidade apaixonada com que Diaghilev seduzia toda Paris. Imediatamente depois veio
Petrouchka, que fez sensação pela ‘barbaridade’ das harmonias e dos ritmos, trazendo a exuberância da feira tipicamente russa e a figura do universo infantil, tragicômico na realidade, como demonstra o personagem do Palhaço. A Sagração da Primavera é, indubitavelmente, a obra mais célebre de Stravinsky, um marco na história da música, simplesmente porque interrompeu, como uma tormenta ou explosão, a barreira entre o Leste e o Oeste, cujas repercussões ainda hoje podem ser ouvidas e sentidas em todos os tipos de música, até mesmo em partituras para filmes e conjuntos de rock. Logo que o pano subiu, em 29 de maio de 1913, o Théâtre des Champs-Élysées foi palco de ‘diversos movimentos’. O público reagiu violentamente perante aquela música agressiva. Stravinsky retirou-se para os bastidores, onde Nijinsky, empoleirado em cima de um caixote, gritava em russo aos bailarinos os números da sua coreografia, enquanto Pierre Monteux continuava, impávido, a dirigir a orquestra, e Diaghilev mandava constantemente acender e apagar as luzes da sala, na esperança de apaziguar o tumulto. A estreia deu o que falar. Assobios, gritos, insultos e até cenas de briga multiplicaram-se entre os ‘a favor’ e os ‘contra’. Em pé, no seu camarote, com o diadema de lado, a velha Condessa de Pourtalés quebrava o leque de raiva e gritava vermelha de cólera: ‘É a primeira vez que troçam de mim’. Em compensação, à saída, Ravel dizia que era genial e Jacques Émile Blanche pedia ‘aos ignorantes que fossem dar uma volta’. ‘Uma obra fauve organizada’, escreveu Cocteau. De fato, com A Sagração da Primavera, o primitivismo e a barbárie irrompem na música, tal como, dois anos antes, o vulgar, sem vulgaridade, com Petrouchka. Foi isso, talvez, o que escandalizou o público da estreia, embora não impedisse que Stravinsky impusesse a sua terceira obra-prima. A obra remete aos tempos primitivos, com seus sacrifícios humanos e a selvageria orgiástica dos ritos pagãos, sob o efeito inebriante dos perfumes exalados pelo despertar da primavera após o torpor do inverno. Isso justifica os sons fabulosos de uma orquestra gigantesca, da qual se exigiam efeitos novos, inesperados – a erupção de impulsos primitivos, telúricos e fundamentais, a ausência de harmonia, o êxtase rítmico, as dissonâncias ásperas e as alterações constantes do compasso; abria-se o caminho para a atonalidade. É o retrato do século XX, de experimentação e fragmentação. Nunca mais o jovem compositor russo chegará a repetir tão grande sucesso.

Durante a guerra (1914-1918), Stravinsky instalou-se na Suíça, inaugurando uma arte de extrema clareza, em que emprega pequenas formações instrumentais, frequentemente insólitas, e uma escrita linear, mais contrapontística do que harmônica. Essa arte metodicamente insolente é, ao mesmo tempo, uma paródia destruidora dos métodos de composição tradicional e uma ascese fecunda que arranca a música de todas as hipnoses. Ocupa-se quase que exclusivamente de histórias folclóricas e canções russas: entre elas incluem-se o balé coral Les Noces (As Bodas), uma de suas composições mais ricas, originais e sedutoras, em que a forma em blocos é atrelada a um ritmo altamente mecânico para produzir um efeito cerimonial objetivo; Renard (A Raposa), obra mais curta, uma fábula cantada e dançada; e A História do Soldado, a primeira tentativa de uma obra total, envolvendo teatro, pantomima, dança, canto e música instrumental.

O período de 1920 a 1953 corresponde à fase marcada pelo Neoclassicismo; Stravinsky viveu na França até 1939 (Nice, Voreppe e Paris), e, depois de 1940, instalou-se definitivamente nos Estados Unidos (Beverly Hills). Durante esse longo período, a metade de sua carreira, opta por ser o defensor metódico da tradição ocidental. É o período dos ‘retornos a…’, da música objetiva, meticulosa, com extraordinário virtuosismo. A primeira obra é o balé Pulcinella (1920), baseado em temas de Pergolesi – corresponde ao primo mediterrâneo de Petrouchka; nela, ele confirma, ao mesmo tempo, o seu apego ao teatro de máscaras e a atração pela cultura latina. Em matéria de música coreográfica, escreve ainda Apollon Musagète (Apolo Musagete, 1928) para orquestra de cordas, uma de suas obras mais impessoais, com enredo inspirado na mitologia antiga e uma escrita muito melódica – corresponde à mescla de alegoria barroca e paródia offenbachiana da Antiguidade; Le Baiser de la Fée (O Beijo da Fada, 1928), sobre temas de Tchaikovsky; e Jeu de Cartes (Jogo de Cartas, 1937), em que a ação se desenrola em três atos, que são na realidade três ‘jogadas’ durante um jogo, e os atores são cartas, sendo o principal, o Curinga, que complica as partidas roubando e pretendendo substituir qualquer outra carta. As formas instrumentais tradicionais são representadas pelo Octeto para Instrumentos de Sopro (1923), uma transfiguração da polifonia pré-clássica; o Concertino para Piano e Sopros (o qual escreveu pensando em sua sobrevivência como pianista, 1924); o Concerto para Violino (1931), obra das mais encantadoras do gênero, por sua riqueza, brilho e todas as qualidades de escrita; e o Dumbarton Oaks Concerto (1938), peça ligeira e espirituosa – um autêntico concerto grosso inspirado nos Concertos de Brandenburgo de J. S. Bach. Essa limpidez de estilo atinge, também, as grandes obras orquestrais como a Sinfonia em Dó (1940) e a Sinfonia em Três Movimentos (1945): na primeira obra, retorna a Haydn, a Beethoven e à Primeira Sinfonia de Tchaikovsky, e, na segunda, adota um cromatismo tenso e recorre, de bom grado, à bitonalidade; composta entre 1942 e 1945, é, consequentemente, uma ‘sinfonia de guerra’, deixando uma impressão dominante de seriedade e dor. A magnífica e grandiosa Sinfonia dos Salmos (1930), menos uma sinfonia do que uma cantata sobre os versículos dos Salmos 28, 39 e 150, foi a primeira grande obra em que sua música ritual ligou-se à tradição cristã, e cujas sonoridades arcaizantes estão cheias de reminiscências de tempos passados: o canto gregoriano, a polifonia antiga, o gótico puro, o tempo estático e objetivo. A predileção de Stravinsky por essa forma de compor aparece, também, na criação híbrida de oratório e ópera épica, Oedipus Rex (Édipo Rei, 1927) e na Missa (1948). O libreto de Oedipus Rex foi escrito por Cocteau em língua latina, para dificultar ao público a compreensão do texto e diminuir a participação sentimental com o enredo; o estilo da música pretende ser o das óperas barrocas de Haendel, no entanto, ela é intencionalmente arcaizante, expressiva e antioperística. Na Missa, a música é confiada a um coro misto e um quinteto duplo de sopros, de sonoridade extremamente áspera, lembrando primitivas esculturas em madeira e a polifonia dos flamengos. O ponto final nesse caminho é a ópera The Rake’s Progress (A Carreira de um Libertino, 1951), uma homenagem musical a Mozart – usa a orquestra, o cravo-contínuo e o estilo arioso de Don Giovanni e Così Fan Tutte, para contar uma história do século XVIII, de um jovem que cai nas mãos do demônio e é redimido, após grande sofrimento, pela pura devoção da garota que o ama.

Em seus últimos tempos (de 1953 até sua morte), Stravinsky, sob a influência de seu ‘auxiliar musical’, o jovem regente americano Robert Craft, converte-se à música que sempre o tinha horrorizado, o dodecafonismo serial; e isto justamente no momento em que essa música estava ficando acadêmica. No balé Agon (1957), nas cantatas sacras (Canticum Sacrum, 1956; Threni, 1958; Requiem Canticles, 1966) ou elegias (In Memoriam Dylan Thomas, 1954; Elegy for J. F. Kennedy, 1964) etc., adota os métodos seriais com coragem e destreza admiráveis. Com habilidade diabólica, produz uma música fria, de gelar os ossos. O balanço de tudo isso resultou na obra mais representativa da música do século XX. Estranho a tudo, exceto a si próprio, Stravinsky quis, com uma obstinação tenaz, refletir todos os gostos, audácias, tendências e valores do seu tempo. O milagre consiste, precisamente, no fato de tê-lo conseguido, procurando raízes nos outros, mas permanecendo pessoal. A sua arte representa a síntese entre o Oriente e o Ocidente; mescla Bach e jazz, Haendel e Mussorgsky, Pergolese e Tchaikovsky, Mozart e Webern. Assim como Bach pretendeu organizar e endireitar a caótica música barroca anterior a ele, Stravinsky tentou realizar o mesmo em relação à obscura música contemporânea, e, como aquele, pressentiu, também, que o único caminho para tanto era o da religião.

Stravinskyano autêntico foi o alemão Carl Orff (1895-1982): sua música não se parece com a do russo, mas possui os mesmos objetivos, extirpando todos os ornamentos e enfeites. Suas obras são uma extensão do teatro no canto, daí o motivo da música estar intimamente relacionada com a palavra e o gesto. No teatro de Orff, as situações dramáticas não se caracterizam pela sua evolução espiritual, sutileza psicológica ou grandeza heroica de alguns sentimentos, mas descrevem tipos que vivem em contato direto com os aspectos fundamentais da existência: amam, lutam, bebem, roubam e rezam com simples intensidade e abandono absoluto das preocupações de índole moral. Assim, se a mensagem do argumento é rude e imediata, a música encarregada de acompanhá-lo também o é. Para obter essa elementaridade primitiva, Orff regressou às origens da história musical europeia e não procurou a inspiração no seio daquelas fontes que pareciam já esgotadas, mas sim, precisamente, no ponto de onde brotava o manancial: o sistema modal grego, o cantochão, as canções medievais e as danças e cantos populares. Esse primitivismo encontrou a sua maneira de se expressar como uma tonalidade enérgica baseada numa única estrutura harmônica e lucidez formal, em que o material temático não se desenvolve, mas se repete em uma textura transparente e rítmica sem contraponto, com acumulação de ostinatos, por vezes obsessivos. Essa linha elementar estendeu-se, também, aos seus processos harmônicos, reduzidos, geralmente, à tônica e à dominante, com longos períodos em que não se observa uma alteração harmônica de qualquer tipo. Usou raramente a dissonância, e o cromatismo é quase inexistente em toda a sua produção. Orff tornou-se conhecido pela cantata cênica Carmina Burana (1936): os poemas que constituem a coleção original, anônimos em sua maioria, cantam indistintamente o amor, o vinho e a natureza, embora alguns sejam também didáticos e satíricos. Os seus autores, clérigos e monges, inspiraram-se tanto nas composições populares contemporâneas, frequentemente grosseiras, quanto nas cultas de Horácio, Ovídio e Catulo. O resultado foi a criação de uma obra poética desenvolta, exaltadora dos instintos primários do homem, como a gula e o sexo, por oposição à elevada poesia que refletia os ideais da Idade Média, entre os quais o amor platônico. Em resumo, a música de Carl Orff ocupa, na história, pelo menos, o lugar reservado às grandes experiências. Pelas suas características, ainda não teve continuadores, mas, embora fique como um monólito solitário na música do século XX, a sua tentativa extremamente popular e aplaudida (teatro, rádio, discos e TV) colocou os ouvintes em contato com fontes de inspiração menos contaminadas e cultas, as quais são mais simples, elementares e diretas e, por isso, mais fáceis de compreender e desfrutar, quando comparadas com os esquemas da complexa música serial.

Duas grandes correntes da música contemporânea estiveram sob a influência imediata de Stravinsky: um novo nacionalismo musical de ímpeto agressivo, como o de A Sagração da Primavera; e uma corrente neoclassicista ou pré-classicista ou neobarroca, partindo do Octeto, Oedipus Rex e outras obras arcaizantes do russo ocidentalizado. Um caso à parte, o novo nacionalismo musical húngaro, embora fosse mais tarde também influenciado por Stravinsky, não é propriamente stravinskyano; ainda prevalecem nele os impulsos recebidos pelo Impressionismo, pela arte de Debussy. A música húngara, para muitas pessoas, tem algo a ver com música cigana e violinos frenéticos. Contribuíram um pouco para isso as Rapsódias Húngaras de Liszt, compostas por um húngaro que, pelo menos até certa época, vivia muito longe da Hungria. Ciganos e húngaros são duas raças diferentes: estes, um povo de origem centro-asiática, de raça uralo-altaica, e aqueles, descendentes de uma tribo indiana. Suas expressões musicais, também, são radicalmente diferentes.

A verdadeira música húngara é a base da música de Béla Bártok (1881-1945), que a pesquisou com a meticulosidade de um cientista. Disso surgiu uma arte austera, que custou a ser reconhecida, mas que é, ao lado da de Stravinsky, um dos pilares da música do século XX. Consciente de que a expressão popular exprime a alma de uma nação, Bártok não se limitou a esse trabalho de pesquisa, mas alargou-o pelo estudo e classificação metódica dos diferentes tipos de ritmos e melodias (reuniu um tesouro folclórico avaliado em cerca de dez mil canções). Com o seu colega e amigo Kodály, ele estabeleceu uma espécie de quadro psicológico da arte tradicional dos Países dos Cárpatos e do Danúbio. Trata-se, já, de um trabalho importante, mas Bártok vai mais longe e, sem nunca utilizar sistematicamente a música étnica, ele a incorpora na sua própria música, na qual recria, à sua maneira, o folclore húngaro. A primeira característica da música de Bártok é, efetivamente, certo tipo de feições rítmicas e melódicas próprias de seu País. Por outro lado, o seu temperamento orgulhoso, desconfiado, facilmente irônico ou até escarnecedor, leva-o à violência expressiva, por vezes ao frenesi. A sua preocupação não é agradar, mas sim exprimir a verdade; existe algo de brutal na sua recusa em ceder à complacência. Assim foi o seu caráter e a sua música, alimentada, contudo, por uma sensibilidade rica e radiosa, uma bondade e um pudor que apenas alguns raros amigos puderam compreender. As formas tradicionais da música não interessam a Bártok; emprega-as livremente, e as suas obras são frequentemente construídas de acordo com estruturas originais, cada uma delas possuindo uma estrutura específica. Tonalidade, politonalidade ou atonalidade combinam-se; a harmonia é rica e complexa, e os ritmos cativam pela diversidade e particularidade, que não são características próprias, mas de toda a sua geração: o dramatismo, que ele explora de forma magistral. Efetivamente, a rítmica de Bártok, como a de Stravinsky ou Prokofiev, apresenta um poder dramático que age sobre os outros elementos da obra, melódicos ou harmônicos – ela arrasta o conjunto ao ponto de, por vezes, parecer a sua célula geradora.

Modesto e introvertido como pessoa, Bártok instalou-se em Budapeste, onde vivia como professor e pianista, ao mesmo tempo em que dava prosseguimento às suas pesquisas folclóricas. Em seguida à Primeira Guerra Mundial, tornou-se membro da Diretoria Musical da Hungria. Seguiram-se viagens à Europa e aos EUA, em que ele apresentava-se muitas vezes como intérprete de sua própria obra. Esta tomará impulso a partir de 1907 e 1908; desde então, Bártok realiza uma síntese bastante original entre a música moderna ocidental (principalmente a de Debussy) e o folclore magiar. Salvo indicações de proveniência incluídas no título, não utiliza em suas obras as melodias populares autênticas, preferindo criar um ‘folclore imaginário’. Nessa época, foram compostas várias peças para piano, como o Allegro Barbaro (1911), uma espécie de ‘manifesto musical’ de Bártok, que o mundo aprenderia a conhecer na sua linguagem inconfundível – o ‘primitivismo’ sofisticado. A esse período também pertence a ópera em um ato, O Castelo de Barba-Azul (composta em 1911, e estreada em Budapest em 1918), dedicada a sua jovem esposa; influenciada por Mussorgsky e Debussy, porém mais diretamente pela música camponesa húngara (e ainda Strauss, em seus quadros orquestrais), a obra é uma fábula sombria de uma situação extrema de isolamento individual do resto da humanidade. Um balé igualmente brilhante, O Mandarim Maravilhoso, de 1918, enfrentou oposição devido ao tema violento e erótico, e só foi encenado em 1926, em Budapeste. Rica e descritiva em sua invenção, a partitura é praticamente uma ópera sem palavras – seus ritmos ásperos e duros sugerem danças bárbaras e explosões de instintos atávicos; suas melodias são sombrias, e seus ‘modos’ e tonalidades estranhos: tudo isso caracteriza o ‘bárbaro’, o filho de uma nação asiática que não tem parentes, que é estrangeira na Europa. Enquanto compunha o Mandarim, Bártok, que sofria a influência de Stravinsky e Schoenberg, escreveu algumas de suas músicas mais complexas – as duas Sonatas para Violino (1921-1922). De execução muito difícil e com uma musicalidade áspera, essas partituras encontram-se, particularmente a segunda, entre as obras-primas do gênero, pela sua originalidade de invenção. Em 1923, por ocasião da união das duas partes da cidade, Buda e Peste, ele escreveu a vibrante Suíte de Danças, obra despojada de todo o ‘pitoresco’, com uma orquestração clara, às vezes seca (busca de efeitos percussivos nas próprias cordas); nela, transparece a calma e a alegria, características que se contrastam com muitas de suas partituras de clima menos ‘feliz’.

Como Beethoven, Bártok também prefere o piano para experimentar novos caminhos. Na Sonata (1926), trata o piano ‘barbaramente’, como experimento de percussão. Continuou essa experiência na Sonata para Dois Pianos e Percussão (1937), que também foi transcrita para orquestra. Sua principal composição pianística talvez seja o Mikrokosmos (1926-1939), coleção de 153 peças que visa ao desenvolvimento progressivo da técnica numa espécie de exercícios voltados para a moderna execução pianística, em que a marca inconfundível do compositor não apaga assimilações de Bach a Czerny, de Scarlatti e Chopin; é o que há de mais parecido com um Cravo Bem Temperado do século XX. Também o concerto instrumental despertou o interesse de Bártok durante toda a sua vida: os três concertos para piano são testemunhos de seu prazer em compor, seu temperamento palpitante e disciplinado, excepcional domínio do estilo pianístico e inesgotável inspiração. No Primeiro Concerto para Piano (1927), aproximou-se do movimento Neoclássico – repele qualquer romantismo (mas também todo modernismo provocador), retornando à música anterior a Bach no rigor rítmico, contraponto e diatonismo; a obra apresenta formidáveis dificuldades para o solista e, em várias passagens, o piano é tratado como um instrumento de percussão (tímpanos, bumbo, tambor, tantan e pratos). Sempre desconcertante na primeira audição, essa partitura é mais estranha do que qualquer coisa que Stravinsky jamais escreveu. O diatonismo também é patente no Segundo Concerto (1931), que logo chama a atenção por certa alegria e pela sedução de sua riqueza criativa, naturalidade e versatilidade do acompanhamento orquestral; sua forma estilística está a meio termo entre a exterioridade virtuosística do Primeiro Concerto e o despojamento do Terceiro. O Terceiro Concerto para Piano (1945) é bem mais tardio: corresponde à sua última obra, inacabada (os 14 últimos compassos foram instrumentados por Tybor Serly, o melhor ‘discípulo’ do músico, que terminou igualmente o Concerto para Viola). Aqui não se encontra mais o dinamismo agressivo ou a tensão voluntária das primeiras obras, mas sim a clareza na estrutura, a transparência nas tonalidades e a serenidade dos sentimentos expressos nessa simplicidade que é a marca da inspiração final de Bártok. Menos frequentemente se ouve o Concerto para Violino (1938), obra de extrema virtuosidade, com passagens de violência extremada e ‘expressionista’, que a aproxima do Concerto para Violino de Alban Berg, composto três anos antes; apresenta rigorosa arquitetura clássica, apesar do fluxo quase rapsódico da invenção. No Concerto para Viola (1945), do qual restaram somente alguns esboços, a parte da orquestra é bastante rudimentar, mas o expressionismo intenso da partitura e a amplitude rapsódica da parte do solista compensam essa debilidade. Bártok escreveu uma importante Cantata Profana (1930), hino à natureza e à liberdade, sua profissão de fé mais pessoal; abandonou, porém, a partir dessa obra, a música vocal, por causa das dificuldades intrínsecas da prosódia húngara.

Se o recurso natural de expressão do compositor para novas experiências foi o piano, para as obras definitivas será o quarteto de cordas, novamente como em Beethoven. Bártok escreveu seis Quartetos para Cordas entre 1908 e 1939. Não são as suas obras mais populares, visto que a concentração e economia, criatividade ousada e aspereza de ideias representam severas exigências ao ouvinte. No entanto, encontram-se entre suas criações mais significativas, pois revelam, em essência, a evolução de seu estilo. Os dois primeiros quartetos são do feitio mais ‘expressionista’ de Bártok: o primeiro possui certa influência germânica (de Beethoven, Wagner e Reger) e francesa (de Debussy, que Bártok tinha acabado de conhecer), e o segundo, o mais acessível da série, utiliza técnicas de Debussy, exprimindo lirismos melancólicos e explodindo em ritmos de danças fantásticas; o terceiro e quarto apresentam maior condensação e objetividade, e sua escrita se torna atonal; e os dois últimos retornam à tonalidade e à tendência crescente para atingir maior simplicidade de estrutura e estilo, com um conteúdo emocional mais profundo.

A obra mais madura de Bártok é datada do período de seus últimos dez anos de vida, que foram bastante trágicos. Ele, que estimava a liberdade e os direitos humanos sobre todos os bens, foi vítima da barbárie que já escurecia os céus da Europa ameaçadoramente. Foi obrigado a deixar sua pátria, sendo um entre centenas de milhares coagidos a trilhar a interminável estrada do exílio. Os primeiros tempos foram felizes, favoráveis. Na paz da Suíça, Bártok encontrou uma calorosa acolhida na casa do regente e mecenas Paul Sacher, e para quem três de suas mais importantes obras foram compostas: a Música para Cordas, Percussão e Celesta (1936), a Sonata para Dois Pianos e Percussão (1937), já comentada anteriormente, e o Divertimento para Orquestra de Cordas (1939). Ponto alto da obra orquestral de Bártok e, sem dúvida, também de toda a música do século XX, a Música para Cordas, Percussão e Celesta obedece a uma organização fundamentada nas relações tonais da simetria, como se fosse uma grande obra de arquitetura; apaixonado pela matemática, o compositor húngaro toma como princípio de construção a seção áurea, tanto para a relação entre os movimentos quanto por sua própria ordenação. É o exemplo perfeito de uma pesquisa positiva, e que muito contribuiu para a renovação da linguagem musical contemporânea. O Divertimento para Orquestra de Cordas foi escrito em apenas duas semanas: alegre e solto, lembra em muitos aspectos a tradição do concerto grosso (solistas e conjunto); a obra, que, às vezes, ressuscita o espírito de Haydn, exige todo o brio que possa fazer prova a uma orquestra de solistas. No entanto, as virtuosidades da escrita nunca se impõem no desempenho instrumental, deixando a espontaneidade ‘camponesa’ florescer, aspecto tão caro ao compositor. Depois, Bártok prosseguiu em seu exílio, embarcando para Nova York, no fim de 1940. Aí, ele viria a conhecer os sofrimentos morais e as piores necessidades, como havia previsto. Cinco anos amargos aguardavam-no pela frente. Foi nesse período sombrio, em meio ao ostracismo, à incompreensão, à penúria e saúde em colapso, que o regente Serge Koussevitsky visitou-o no hospital, pedindo-lhe uma obra nova para a Koussevitsky Music Foundation. Esse pedido sacudiu o ânimo de Bártok que, instalado num hotel, passou o verão de 1943 trabalhando no Concerto para Orquestra, obra meio lírica, meio fantástica. Como seu nome indica, essa suíte em cinco movimentos dá a cada instrumentista da orquestra sua oportunidade de brilhar. Suas melodias (do próprio compositor) revelam toda a espontaneidade das canções folclóricas; suas harmonias são exuberantes, e a orquestração rivaliza com a de Sheherazade, de Rimsky-Korsakov, ou a de Os Planetas, de Holst, em riqueza e impacto. Essa obra tornou-se rapidamente popular e contribuiu para tornar mais fácil o acesso do grande público à música de Bártok. Em 1944, ainda escreveu a complexa Sonata para Violino solo, solicitada pelo violinista Yehudi Menuhin. Quando finalmente a ditadura, por ele tão odiada, caiu por terra, e a paz trouxe consigo novas esperanças, Bártok morre de leucemia em Nova York, em 1945. A música de Béla Bártok até hoje parece “selvagem” aos acadêmicos e à maior parte do público. Como Debussy, ele é o músico das intuições profundas e das vastas sínteses. Era fatal que nem sempre fosse compreendido e que se tornasse popular pelo que não era: um cigano. A intransigência de seu caráter, assim como a originalidade de sua música, valeram-lhe a carreira infeliz que conhecemos. No entanto, ele permanecerá uma das personalidades mais admiráveis da história da música, sendo um modelo de rigor moral, de justiça, de independência radical e de resistência a todos os compromissos.

Zoltán Kodály (1882-1967) é, com Bártok, o representante perfeito da escola nacional húngara que consagrou, como esse último, uma parte importante de suas atividades na compilação de cantos populares, que constituem o material da base de sua obra. Foi também um pedagogo eminente, autor do célebre ‘Método Kodály’, muito difundido em seu País. Quantitativamente, é a música vocal, e principalmente a coral, que predomina em sua obra. Influenciado por Brahms e Debussy no início de sua carreira, ele se tornou mundialmente famoso com o patriótico Psalmus Hungaricus (1923), para comemorar o quinquagésimo aniversário da fusão de Buda e Pest. Esta obra é uma exuberante transposição do Salmo 55 (Dá ouvido à minha prece, ó Deus!), em húngaro, para tenor solo, coro e orquestra. A mescla de nacionalismo com fervor religioso raramente dá certo, mas resultou admirável aqui, com uma música de grande intensidade, que empolga qualquer auditório. Ainda mais famosa, e frequentemente executada, é a suíte orquestral Háry János (1930), que se refere à história de um soldado fanfarrão e alcoólatra; os movimentos refletem suas aventuras amorosas, a pretensa vitória contra Napoleão, os devaneios de seus feitos pessoais na libertação de Viena e seu deslumbramento diante das maravilhas da capital do império, em particular, de um relógio mecânico. A utilização de temas folclóricos e de um címbalo ao longo da partitura dão à obra um tom acentuadamente húngaro com espirituosa ironia. As Danças de Marosszék (1930) e as Danças de Galanta (1933), para orquestra, provam o quanto Kodály estava enraizado no folclore, adaptando às suas visões sonoras árias exóticas, até mesmo nostálgicas, sempre indomadas. Em Variações Pavão (1939), peça escrita para o cinquentenário da Orquestra Concertgebouw de Amsterdam, e baseada num canto popular com valor simbólico (o pavão representa a liberdade), ele construiu um de seus mais belos afrescos sinfônicos, constituído de 16 variações e um finale. Ao contrário de Bártok, Kodály limitou a sua inspiração na música folclórica magiar – preferiu, antes, aceitar, ao invés de analisar o material folclórico em sua música, e seu estilo é bem menos contrapontístico, sendo harmonicamente mais sereno.

DISCOGRAFIA SELECIONADA

Stravinsky

  • Stravinsky por Stravinsky (Obra completa): Sony 46290 (22 CDs).
  • Pierre Boulez Conducts Stravinsky (O Pássaro de Fogo, Petrouchka, A Sagração da Primavera, O Canto do Rouxinol, Sinfonias, Ebony Concerto etc.): Cleveland O.; Ensemble Intercontemporain; Chicago SO; Berliner Phil. – DG 4778730 (6 CDs) ou BBC SO; Cleveland O.; New York Phil. etc. – Sony 88697564622 (4 CDs).
  • Balés. Obras Coreográficas. Obras Orquestrais: Ansermet / L’ Orchestre de la Suisse Romande – Decca 467818-2 (8 CDs) ou Ashkenazy / Chailly / Dutoit / Haitink / Bychkov / Deutsches Symphonie-Orchester Berlin; St. Petersburg Philharmonic O.; Orchestre de Paris Amsterdam Royal Concertgebouw O.; Cleveland O. – Decca 4783028 (7 CDs) ou Rattle / Berliner Phil.; City of Birmingham SO e Northern SO – EMI 427542-2 (4 CDs) ou
    Chailly / Concertgbouw O.; Cleveland O. – Decca ‘Double’ 473731-2 (2 CDs).
  • O Pássaro de Fogo: Dorati / London SO – Mercury Living Presence 432012-2 ou Boulez / Chicago SO – DG 437850-2 ou Rattle / City of Birmingham SO – EMI 585538-2 (2 CDs) ou Järvi / Cincinatti SO – Telarc 80587 (suíte, versão 1919) ou Kempe / Staatskapelle Dresden O. / Berlin Classics 10972 (suíte, versão 1919).
  • Petrushka: Boulez / New York Phil. – Sony 64109 (versão original) ou Abbado / London SO – DG 4530852 (versão original, 2 CDs) ou Järvi / Cincinatti SO – Telarc 80587 (versão 1947) ou Kissin – RCA 65389-2 (três movimentos para piano, 1921) ou Matsuev – RCA 78861-2 (piano, 1921).
  • A Sagração da Primavera: Salonen / Los Angeles Phil. – DG 4776198 (SACD) ou Ozawa / Boston SO – RCA ‘High Performance’ 63311-2 ou Muti / Philadelphia O. – EMI 574742-2 ou Boulez / Cleveland O. – Sony 64109 ou Rattle / City of Birmingham SO – EMI 749636-2 ou Gergiev / Kirov O. – Philips 468035-2.
  • A Sagração da Primavera (100th Anniversary Collector`s Edition): Decca 4783729 (20 CDs com as melhores performances desde 1946 até 2010) ou Sony 546174-2 (10 CDs, com performances de referência desde 1929 a 1996).

Orff

  • Carmina Burana: Previn / London SO and Chorus – EMI 6787042 ou Jochum / Chor und Orchester der Deutschen Oper Berlin – DG ‘Originals’ 447437-2 ou Thielemann / Chor und Orchester der Deutschen Oper Berlin – DG 453587-2 ou Ozawa / Berliner Phil. – Philips 464725-2.

Bártok

  • Obras Orquestrais, Concertantes e Vocais Profanas: Solti / Chicago SO; Budapest Festival O.; London Phil. O.; London Phil. Choir – Decca 4783706 (6 CDs) ou Dorati / BBC SO; London SO; Minneapolis SO – Mercury ‘Living Presence’ 4756255 (5 CDs) ou Boulez / Chicago SO; London SO; Berliner Phil. – DG 4778125 (8 CDs) ou Rattle / City of Birmingham SO – EMI 215037-2 (4 CDs).
  • Concerto para Orquestra: Fischer / Budapest Festival O. – Philips 4767255 ou Reiner / Chicago SO (+ Música para Cordas, Percussão e Celesta) – RCA ‘Living Stereo’ 661390-2 ou Leinsdorf / Boston SO – RCA ‘High Peformance’ 63309-2.
  • O Mandarim Maravilhoso: Fischer / Budapest Festival O. / Hungarian Radio Chorus – Philips 454430-2 ou Boulez / Chicago SO – DG 447747-2.
  • Concertos para Piano (Integral): Fischer / Kocsis / Budapest Festival O. – Philips 416831-2 (3 CDs) ou Boulez / Zimerman; Andsnes; Grimaud / Chicago SO; Berliner Phil.; London SO – DG 4775330.
  • Quartetos para Cordas (Integral): Emerson Quartet – DG 423657-2 (2 CDs) ou Takács Quartet – Decca 455297-2 (2 CDs) ou Hagen Quartet – DG 463576-2 (2 CDs).
  • Sonatas para Violino. Rapsódias. Contrastes: Teltzlaff / Andsnes – Virgin Classics 545668-2 ou Pauk / Jandó – Naxos 8.550749.
  • Obras para Piano Solo: Kocsis – Decca 4782364 (8 CDs) ou Sándor – Sony 87949 (4 CDs).
  • Mikrokosmos: Ránki – Teldec 76139-2 (3 CDs).

Kodály

  • Obras Orquestrais: Dorati / Kertész / Philharmonia Hungarica; London SO – Decca 4782303 (4 CDs).
  • Suíte Háry János. Danças de Marosszék. Danças de Galanta: Fischer / Budapest Festival O.; Children’s Choir Magnificat; Children’s Choir Miraculum – Philips 462824-2.

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