Omar Castellan
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O novo nacionalismo musical que despontou nas Américas a partir do século XX foi mais rico na América Latina do que nos Estados Unidos, devido à sua fonte folclórica inesgotável. Destacou-se, nesse panorama musical, o brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959), pela espontaneidade, complexidade e vigor de suas criações. Sua obra, de grande originalidade, representa, essencialmente, um retrato musical do Brasil; entretanto, a marca registrada de Villa-Lobos fica evidenciada na fusão entre a música popular brasileira e a música erudita ocidental, ‘apimentada’ por um temperamento vulcânico. No estilo, ela apresenta influências de Debussy e Stravinsky. Villa-Lobos nutria, também, a mais profunda admiração por Bach, de quem ele herdaria o contraponto. São dele estas esclarecedoras palavras acerca de seu quadro estético: ‘Considero a música uma arte que se deve venerar como uma religião. Os seus criadores e intérpretes são os servidores do templo. Admiro Tomás Luís de Victoria e Beethoven, porque ambos foram mais além que seus antecessores. Em contrapartida, Schumann e Brahms deixam-me indiferente porque continuaram a utilizar métodos conhecidos antes de seu tempo. Ao homem que escreve uma composição musical peço apenas originalidade. Não suporto a rotina. Por isso, não me interessam os compositores que só são modernos porque fazem parte de nossa época’.
É bem verdade que Villa-Lobos não era exatamente um perfeccionista. Escrevia caudalosamente, todos os dias, em qualquer situação. Os amigos deixavam suas crianças para Villa tomar conta, e em meio a elas, com o rádio ligado, ele escrevia música, com as partituras espalhadas pelo chão. Um amigo seu conta que foi visitá-lo em seu apartamento no centro do Rio de Janeiro, no dia em que a construção do prédio vizinho estava em sua fase mais ruidosa. Britadeiras e bate-estacas soavam em uma percussão infernal. Ficou surpreso de ver Villa-Lobos absorto e escrevendo música naquelas condições. Ficou mais surpreso ainda quando o barulho cessou de repente (era hora do almoço dos trabalhadores) e Villa subitamente parou, e visivelmente chateado, exclamou: ‘Pronto, me escapou a inspiração…’. Nessa ânsia de registrar velozmente suas ideias, Villa-Lobos, às vezes, cometia enganos, principalmente quando se tratava de transpor um trecho para outra tonalidade. Muitos desses enganos, que são comumente atribuídos ao seu ‘exotismo’ harmônico, não passam de simples acidente de escrita.
A educação musical de Villa-Lobos foi tudo, menos acadêmica. Desde tenra idade aprendeu clarinete e violoncelo (instrumento que sempre lhe foi querido) com o pai, Raul Villa-Lobos, homem culto, com especial predileção pela música. Também adquiriu um domínio virtuosístico do violão, no qual improvisava com músicos na sua cidade natal, o Rio de Janeiro. Em uma entrevista de 1957, quando estava completando 70 anos, Villa-Lobos referiu-se ao pai com entusiasmo: ‘Era um músico prático, técnico e perfeito. Com ele, eu assistia a ensaios, concertos e óperas, para habituar-me ao gênero do conjunto musical. Aprendi, também, a tocar clarinete, e era obrigado a discernir o gênero, o estilo, o caráter e a origem das obras, além de declarar com presteza o nome das notas, dos sons ou ruídos que surgiam incidentalmente naquele momento. Por exemplo: o guincho da roda de um bonde, o pio de um pássaro, a queda de um objeto de metal. Ai de mim se não acertasse’.
As dificuldades de Villa-Lobos surgiram na juventude, com a morte do pai, mas foi a música que esteou o seu sustento. Foi nos cafés, nos teatros, e, principalmente, no cinema mudo da época que encontrou seus locais de trabalho, frequentou a boemia do seu tempo e aprendeu muito. Sua obra é marcada por essa música popular urbana, sobretudo pelos Chorões. Entre os 18 e 25 anos de idade, Villa-Lobos viajou por todo o Brasil, recolhendo e absorvendo o seu folclore e, sobretudo, escrevendo muita música. Anos mais tarde, toda essa experiência resultou em um trabalho didático, o ‘Guia Prático’, contendo ambientações de melodias recolhidas em diversas partes do Brasil. Ao regressar ao Rio, os seus esforços para obter uma formação em composição revelaram-se incompatíveis com o seu temperamento fogoso e impaciente, mas estudou as obras dos grandes mestres. O casamento com a pianista Lucília Guimarães (1913) foi-lhe útil tanto material (a família da esposa deu-lhe bastante apoio financeiro) quanto musicalmente, pois Lucília possuía a sólida formação teórica, a qual Villa-Lobos nunca chegou a adquirir. Sua carreira de compositor iniciou-se em 1915, começando uma longa luta para buscar a sua linguagem própria, enfrentando os críticos e aqueles que não aceitavam a sua obra. Villa-Lobos foi o compositor da Semana da Arte Moderna que tanto agitou São Paulo, em 1922. Vaiado e insultado (ainda mais porque, estando com o pé machucado, entrou no palco de casaca e chinelo), não se deixou abater. São desse período inicial os poemas sinfônicos Amazonas e Uirapuru, Primeiro Choro para Violão e Primeiro Concerto para Violoncelo e Orquestra.
Com a ajuda e encorajamento do pianista Arthur Rubinstein, Villa-Lobos pôde ir para Paris na década de 1920, onde encontrou não só uma crítica musical mais compreensiva, como artistas de vanguarda (Satie, Milhaud, Prokofiev, Stravinsky, Picasso). Sua produtividade nessa época é assombrosa, incluindo a série dos 14 Choros para diversas combinações musicais, as Serestas (para voz e piano), as Cirandas (para piano), o Nonetto e o Rudepoema (para piano). O seu regresso ao Brasil, em 1930, coincidiu com a subida ao poder do novo regime nacionalista de Getúlio Vargas, que o encarregou de organizar a vida musical do País: realizou importantes trabalhos como educador ao assumir a direção do Serviço de Educação Musical no Rio de Janeiro, em 1932, instituindo nas escolas o ensino obrigatório de música e canto orfeônico; criou o Orfeão de Professores e promoveu espetáculos corais ao ar livre; foi o primeiro diretor do Conservatório Nacional do Canto Orfeônico (1942), e fundou a Academia Brasileira de Música (1945), da qual se tornou presidente vitalício. As obras que melhor resumem o seu pensamento durante esses anos são as Bachianas Brasileiras, que abandonam a rudeza de sua música anterior em favor de uma serenidade clássica. Após 1945, casado agora com Arminda Neves de Almeida, Villa-Lobos retoma uma intensa movimentação internacional sediada, principalmente, em duas cidades: Paris e Nova York, que lhe deram ampla aceitação e acolhimento. Desenvolve uma importante série de Quartetos de Cordas, escreve o Ciclo Brasileiro (para piano) e os Prelúdios para Violão. Acometido por um câncer, em 1947, sua criatividade diminui. Entretanto, encontra energias para escrever as obras do período final – os últimos quartetos para cordas, os belos concertos virtuosísticos para violão e para gaita de boca, obras corais e até partituras para cinema. Faleceu em 1959 e teve as honras de um funeral de Estado. Ele deixou, além de uma obra monumental, uma longa série de histórias que se confundiram com a realidade e fermentaram a sua imagem. Existem frases definitivas que lhe foram atribuídas, como aquela que teria dito ao jovem Tom Jobim: ‘Compor, meu filho, é 90% de transpiração e 10% de inspiração’; ou, então, aquela quando era flagrado escrevendo partituras na infinita confusão doméstica: ‘Escrevo sempre com o ouvido de dentro. Nessas horas, o ouvido de fora fica desligado’. Em resumo, sua obra, enfim, é isso: o resultado de um ouvido de dentro que soube escutar, melhor do que ninguém, a alma do Brasil.
A principal contribuição de Villa-Lobos à música brasileira e universal são os Choros, que correspondem à espinha dorsal de sua obra. Escritos entre 1920 e 1929, durante suas estadas parisienses, os Choros revelam gêneros musicais bem diferentes: instrumental, camerístico, orquestral ou vocal. A distribuição varia de um só instrumento (nº 1 para guitarra, e nº 5 para piano), até o monumental 14º Choros para coro e orquestra (Villa-Lobos sempre empregava o termo ‘Choro’ ou ‘Bachiana’ no plural). Essas obras dão prova de uma invenção sonora abundante com sua virtuosidade instrumental (a forma é organicamente ligada às instrumentações), duas diversidades de timbre e sua polirritmia erudita. Trata-se, como disse Villa-Lobos, de ‘uma forma de composição que sintetiza as diferentes modalidades da música brasileira, indígena e popular’. O nº 1 é uma simplíssima peça para violão solo em homenagem ao estilo carioca de Ernesto Nazareth. O nº 2, obra de câmara para flauta e clarinete, apresenta um intenso lirismo. Para vozes e conjunto de câmara, o empolgante Choros nº 3 (Pica-Pau) utiliza temas indígenas. Também camerístico, para três trompas e um trombone, o Choros nº 4 recria com notável poesia o clima dos subúrbios do Rio de Janeiro. Retorna ao piano com o nº 5 (Alma Brasileira), e o nº 6, um dos mais bem realizados, é construído a partir de temas tipicamente populares em uma ampla estrutura orquestral, oferecendo a paisagem multissonora brasileira. Com fúria stravinskyana, o Choros nº 8 (Choros da Dança), para dois pianos e orquestra, sacudiu Paris na década de 1920 – utiliza uma grande orquestra virtuose, reforçada por percussões brasileiras, que mostra todo o furor e a alegria do Carnaval do Rio. A obra revela-se uma das mais brilhantes, vivas e expressivas de toda a série. Também é monumental o Choros nº 11, para piano e orquestra, cuja escrita, complexa e clara, introduz momentos de languidez e de confidências instrumentais, em meio a passagens de força telúrica. O mais famoso da série é o Choros nº 10 (Rasga o Coração), para orquestra e coro misto, uma síntese notável da arte e psicologia brasileiras. Corresponde a uma das mais perfeitas realizações de Villa-Lobos e, sem dúvida, a peça sinfônica mais célebre do repertório brasileiro. Comentou ele sobre a obra: ‘É a reação de um civilizado ante a natureza totalmente nua. O céu, a água, as florestas, os pássaros o fascinam. Mas há pessoas que vivem lá, mesmo que sejam apenas simples selvagens. Sua música é plena de nostalgia e amor, suas danças cheias de ritmos. O coração do Brasil bate em uníssono com a terra brasileira’.
Ainda que não seja a série musical mais importante de Villa-Lobos, as Bachianas Brasileiras correspondem às suas escritas mais famosas. Elas constituem um conjunto de obras singularmente variadas, quer pelo aspecto formal, quer pela disposição instrumental. Como o título sugere, a fonte de inspiração é Bach, compositor que Villa-Lobos considerava ‘o manancial folclórico universal, o intermediário de todos os povos’. As Nove Bachianas, escritas entre 1930 e 1945, constituem uma experiência harmônica e contrapontística singular, e refletem a curiosa simbiose produzida entre dois campos musicais muito diferentes. A série inscreve-se no movimento neobarroco, que deixou marcas na música do século XX. Também corresponde a um momento em que a imaginação criadora de Villa-Lobos encontra-se mais distendida, depois da tensão ‘modernista’ da década de 1920. A Bachianas nº 1 , para oito violoncelos, e dedicada a Pablo Casals, é uma obra-prima impecável em seu ímpeto e com uma sofisticada escrita; o seu famoso movimento lento, o Prelúdio (Modinha), apresenta como pretexto uma melodia ampla em lamentoso, concluída por um violoncelo solo em pianíssimo. Para orquestra de câmara, a Bachianas nº 2 é um dos mais coloridos painéis sinfônicos de Villa-Lobos, com temas curtos e efetivos. Sua Toccata concludente, O Trenzinho do Caipira, é uma encantadora peça descritiva em que se evocam as impressões de uma viagem nos pequenos trens que trafegavam do Rio ao interior do Estado. Apesar de ser uma obra de ritmos vivos e de melodias encantadoras, a Bachianas nº 3, para piano e orquestra, não é uma obra de primeira grandeza. A Bachianas nº 4, para grande orquestra, foi concebida originalmente para piano. Os seus andamentos mais notáveis são o segundo, um coral de aspecto religioso (Canto do Sertão), pontuado pelo agudo grito da araponga, e o último, o Miudinho (Dança), de específico sabor popular e caráter dançante; próximo de seu final, a intervenção de um grave, à maneira de um órgão, evoca a sombra de Bach. A Bachianas nº 5 é, certamente, a mais conhecida. Composta para soprano e orquestra de violoncelos, foi popularizada, sobretudo, pela lendária interpretação que Victoria de Los Angeles realizou da sua Cantilena. A primeira intérprete fora a não menos famosa soprano brasileira Bidu Sayão. O segundo andamento (O Martelo) foi inspirado em alguns cantos de pássaros do nordeste brasileiro. Para flauta e fagote, a Bachianas nº 6 enquadra-se perfeitamente dentro dos limites da música de câmara. O final é especialmente feliz, com uma modulação conclusiva de efeito sugestivo. A inspiração cai um pouco nas Bachianas nºˢ 7 e 8, mas retorna na Bachianas no 9, de estilo polifônico, para orquestra, originalmente escrita para ‘orquestra de vozes’. Ela apresenta apenas duas partes: um Prelúdio, vagoroso e místico, de escrita extremamente despojada, e uma Fuga, de grande unidade temática e textura contrapontística refinada e rigorosa. As dificuldades de execução, particularmente rítmicas, são inúmeras. Esta obra, prodigiosamente rica em timbres, constitui um admirável epílogo para essa série de obras-primas que, por si só, bastariam para garantir a imortalidade de Villa-Lobos.
Em 1917, Villa-Lobos escreveu dois poemas sinfônicos (para bailado) – Uirapuru, uma das primeiras manifestações do gênio completo do compositor, que descreve a poesia misteriosa e imensa das selvas virgens do Brasil, revelando proximidade com os impressionistas franceses no estilo; e Amazonas, de inspiração menos cristalina que o anterior, sobre o qual Mario de Andrade comentou: ‘É a obra mais integralmente violenta da música americana: o espírito de um mundo selvagem, em que a orquestra avança penosamente, derrubando árvores, tonalidades e tratados de composição’. Obra importante, de 1937, são as quatro suítes de O Descobrimento do Brasil, escritas para o filme do mesmo nome, de Humberto Mauro. O fio condutor é a carta de Pero Vaz de Caminha, membro da frota portuguesa que aportou no Brasil em 1500, relatando os acontecimentos da travessia do Atlântico e da descoberta de uma terra que os portugueses chamariam de ‘Vera Cruz’. A mais famosa é a Quarta (Procissão da Cruz e Primeira Missa do Brasil), a única que utiliza coro, e na qual Villa-Lobos consegue efeitos de grande eficácia, contrapondo textos em latim e em tupi-guarani, que mostram a choque de culturas no País recém-descoberto. Entre as obras sinfônicas mais tardias, encontram-se Erosão (1950), poema sinfônico que tenta representar a lenda da formação do vale do Amazonas (à custa do cataclismo sísmico dos Andes) até a criação do grande ‘rio-mar’; Gênesis (1954), poema sinfônico e balé, em que a ‘Criação’ inicia-se como uma prolongada sombra profunda, com sonoridades indecisas, confusas e elementares, terminando em um crescendo final, no último resplandecer do sol; e Floresta do Amazonas (1958), suíte para orquestra, soprano e coro masculino, que se destaca pela qualidade de algumas canções, como a Modinha, uma das mais poéticas do compositor.
Villa-Lobos escreveu 12 Sinfonias que, segundo Shostakovich, representam o legado mais vasto do que qualquer outro mestre contemporâneo possa ter produzido. As primeiras pertencem ao período em que ele ainda estava em busca de um estilo pessoal. O tema da luta armada, com as suas vicissitudes, é encontrado nas 3ª, 4ª e 5ª Sinfonias (A Guerra, A Vitória e A Paz). Importante já é a nº 6 (Montanhas do Brasil), em que ele se inspirou na cadeia de montanhas da Serra dos Órgãos, o que, na época, foi apontado como exemplo da sua ‘falta de seriedade’. Admirada e considerada como obra definitiva é a 10ª Sinfonia (Sumé Pater Patrium), escrita para o IV Centenário da Cidade de São Paulo, sobre um texto de José de Anchieta. Com significação histórico-religiosa, ela é uma imensa obra coral sinfônica que amplia e aprofunda os painéis de O Descobrimento do Brasil. Em seu texto, são mescladas palavras em tupi, latim e português. ‘Sumé’ significa Deus em tupi. Assim, a tradução do título seria: ‘Deus, Pai dos Pais’. Entre as obras concertantes, a mais conhecida é o Concerto para Violão (1951), que deve a sua singular cadência (formando a transição entre o segundo e terceiro movimentos) a uma amável reclamação de Andrés Segovia: ‘Se a harpa’, cujo concerto havia sido dedicado a Nicanor Zabaneta, ‘mereceu uma cadenza, por que a não terá, também, o violão?’. Na realidade, o solista está maravilhosamente servido de virtuosismo em toda a obra, sem, em momento algum, perder de vista a lógica funcional. Villa-Lobos esmerou-se neste concerto para conseguir o mais perfeito equilíbrio das sonoridades da orquestra, com o objetivo de não ofuscar o timbre peculiar do violão. Nele, conseguiu realçar a singular beleza e o atraente ritmo do folclore. Impõem-se, também, à atenção do ouvinte: o Concerto para Piano nº 5 (1954), dedicado à pianista Felicia Blumenthal, e que corresponde ao mais popular dos cinco concertos escritos, com ecos de Rachmaninov; e o Momo Precoce (1929), fantasia para piano e orquestra, dedicado à pianista Magda Tagliaferro. O título faz alusão ao ‘Momo’, rei do Carnaval; nessa obra, uma série de pequenos quadros evoca jogos e brinquedos de crianças fantasiadas, sob a forma de melodias populares e ingênuas, apresentadas sucessivamente pelo piano.
O conjunto impressionante dos 17 Quartetos de Cordas de Villa-Lobos (um 18º estava sendo esboçado pouco antes de sua morte) representa, em sua somatória de experimentações e, por sua extensão no tempo, a parte dominante de sua obra de câmara. Não conhecê-los seria o mesmo que ignorar, em importância, as séries produzidas por Bártok e Shostakovich. Depois do Quarteto nº 1, de 1915, Villa-Lobos cultivou essa forma durante toda a sua vida, com alguns períodos de interrupção. Apesar de ser um admirador de Haydn, liberou-se, no entanto, das formas tradicionais utilizando a justaposição, as reprises variadas, os contrastes de tonalidades e de timbres. A linguagem dessas obras tornou-se ainda mais rica pela dissonância e diversidade polifônica que apresentam, colaborando com o desejo, enunciado pelo compositor, de ‘simbolizar o sincretismo de todas as raças do Brasil’. Essa concepção multiforme se alimenta de elementos perfeitamente naturais, e Villa-Lobos nunca se deixou levar, só para parecer moderno, por qualquer tipo de estetismo destrutivo. Nem todos os quartetos apresentam o mesmo valor, mas, em todos eles, o mestre brasileiro tem muito a dizer, até culminar nos três últimos, que, sem dúvida, se encontram à altura do melhor que se escreveu, nesse gênero, no século XX. Aquele nacionalismo ‘um tanto suspeito’ no campo do quarteto transformou-se em autêntica ‘música pura’ e, talvez, das mais belas que o Ocidente conheceu.
As mais célebres obras de câmara de Villa-Lobos fazem parte das coleções dos Choros e das Bachianas. Também, o Trio para Oboé, Clarinete e Fagote (1921) e o Nonetto (1923) são bem famosos. O Trio é uma das obras mais ‘modernistas’ e brasileiras do compositor – com extraordinária economia de meios, ele se desenvolve em motivos antes rítmicos do que melódicos; a graça e a beleza dos timbres de cada instrumento em nada subtraem a gravidade da atmosfera da música, nem triste, nem alegre, mas de comovedora profundeza telúrica. A verdadeira síntese do universo musical brasileiro, marcado por um estonteante virtuosismo, encontra-se no Nonetto (para um variado grupo instrumental e vocal), que é considerado uma das joias da produção musical de Villa-Lobos. O ritmo dessa obra se afirma no seu desenvolvimento elástico, livre e impetuoso, e na sutileza e agilidade do primitivismo dos acentos, até o momento em que as vozes, cantando sílabas e palavras indígenas, se unem aos instrumentos, em um extraordinário trecho conclusivo, de espontaneidade e dinamismo irresistíveis.
Toda a evolução da obra de Villa-Lobos foi acompanhada pelo piano. Para este instrumento escreveu grande quantidade de obras, inconfundíveis nos ritmos, harmonias, timbres, técnicas e efeitos sonoros. Ele tinha em sua primeira esposa, Lucília, uma excelente instrumentista, que podia dar vida ao que acabava de escrever. O interessante é que, sem ser ele mesmo um pianista competente, tenha produzido obras geniais para o instrumento. O compositor descobre-se a si mesmo, no que se refere ao piano, com as duas coleções de A Prole do Bebê (1918 e 1921). A popularidade da primeira coleção, que ainda revela algum parentesco com o universo do impressionismo, deve-se muito a Arthur Rubinstein. O grande virtuose polonês utilizou, durante muitos anos, a última destas oito peças, a Polichinelo, como ponto final dos seus recitais. A segunda série, mais autêntica, apresenta uma originalidade que não se esgota – nela há trechos, como o Boizinho de Chumbo, que já antecipam Piazolla. Em 1925 e 1926, escreveu, respectivamente, as Cirandinhas (12 peças) e as Cirandas (16 peças), que apresentam como tema a infância e seus brinquedos, um importante retrato da psicologia do compositor. A primeira composição pianística de transcendental envergadura foi o complexo Rudepoema, escrito entre 1921 e 1926, em que Villa-Lobos pretendeu fazer um retrato musical de Arthur Rubinstein, mas, na realidade, o retrato é muito mais do próprio autor. Trata-se de uma peça rica em colorações, com audácias de grandiosa sonoridade e virtuosismo. A música atmosférica de Saudades das Selvas Brasileiras (1927) mostra-se contrastante tanto pelo acentuado lirismo quanto pelos típicos ostinatos que Villa-Lobos costumava aplicar com um verdadeiro sentido de oportunidade. O Guia Prático (1932), uma coleção com nada menos que 60 peças, dividida em 11 volumes, e o subtítulo ‘Estudo Folclórico Musical’, representa, na verdade, um magnífico mostruário do cancioneiro brasileiro, embora, apareçam, esporadicamente, alusões a cantos cubanos, mexicanos, franceses e espanhóis. Villa-Lobos alcança a depuração completa de sua linguagem pianística nas quatro peças do Ciclo Brasileiro (1936), que mostram, como preocupação principal, a busca da nacionalidade: o Plantio do Caboclo expressa o símbolo de nossa miscigenação; Impressões Seresteiras, a apoteose da valsa brasileira; Festa no Sertão (peça com influência de Stravinsky), a descrição perfeita de um São João no Nordeste; e a Dança do Índio Branco, o retrato do autor, um louco abençoado que, junto com Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Pelé, tornou-se um símbolo de brasilidade, um de nosso gênios do século XX.
Embora o violão não tenha sido o primeiro instrumento que Villa-Lobos estudou (precederam-no o violoncelo, o clarinete e o piano), ele era o seu preferido, por ser tipicamente brasileiro. Foi um grande improvisador e possuía uma técnica própria capaz de impressionar mesmo um virtuose como Segovia. Talvez, muito dos efeitos e grandes novidades que constituíram a sua grande contribuição para esse instrumento, no âmbito harmônico e rítmico, tenham nascido dessas improvisações poéticas. As obras-primas dessa produção são os 12 Estudos e os 5 Prelúdios. Sem paralelo na literatura violonística, os Estudos, escritos a pedido de Segovia, examinam os diferentes aspectos técnicos do instrumento, na sua maioria, de um alto grau de dificuldade, mas conservando sempre um potencial de musicalidade. Esboçados entre 1924 e 1929, em Paris, neles Villa-Lobos aspirava a realizar um trabalho equivalente ao que Paganini fez para o violino e Chopin ou Scarlatti para o piano. As fórmulas de execução em que se baseiam são bem perceptíveis para os seus intérpretes mais dotados, que as transformam em emocionantes, expressivas e penetrantes mensagens do mundo interior do compositor. Os Prelúdios (1940) correspondem a uma das mais transcendentes contribuições que foram incorporadas no repertório do violão, e se encontram mais próximos ao folclore, já perfeitamente sintetizado e não simplesmente adaptado. Representam o resumo do estilo de Villa-Lobos no gênero e, também, um compêndio de sensibilidade brasileira. Nessas pequenas peças, ele soube acumular, com genial sentido de equilíbrio, a emoção intensa, a originalidade conceitual e a exploração dos recursos técnicos e possibilidades sonoras do violão. No gênero vocal encontram-se algumas das inspirações mais puras de Villa-Lobos. A série mais completa e importante da canção brasileira é a das 14 Serestas (1925), em que aparecem tanto melodias singelas (em Modinha) quanto de espírito modernista, nas quais o compositor trabalha textos de Manuel Bandeira e outros grandes poetas. Nessas peças, em alguns momentos, o acompanhamento do piano torna-se mais interessante que a linha do canto. Entre outras de suas canções mais inspiradas, encontram-se a Canção do Poeta do Século XVIII, a Modinha (de Floresta do Amazonas), o Lundu da Marquesa dos Santos e a série Canções Típicas Brasileiras.