Fernando Andrette
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Esta é uma discussão antiga que, para aqueles que defendem que nenhum indivíduo escuta igual ao outro, buscar o sistema de áudio correto e de maior fidelidade é pura perda de tempo! Alguns chegam a propor a compensação dos desvios auditivos individuais equalizando o sistema para compensar esses desvios.
Para esses defensores do ajuste pessoal, a possibilidade de se compartilhar audições em grupos só seriam possíveis se o sistema tiver a possibilidade de mais de um ajuste para cada participante da audição coletiva. Caso contrário, os que não tiverem a ‘sorte’ de ter sua curva de resposta adequada, ficarão a ver navios! Ou escutarão com a curva de resposta do amigo ao lado. Parece absurdo, mas acreditem, existem defensores para tal ideia.
Precisamos separar o joio do trigo, amigo leitor, pois gosto é algo subjetivo, mas defender ideias – como se tivessem embasamento científico – para gosto pessoal, aí já se trata de desconhecimento do tema ou total má-fé.
O articulista Jimmy Hughes, muitos anos atrás, quando era colaborador da Hi-Fi Choice, escreveu um artigo em que ele descrevia como solucionou um dilema em sua sala, com sua caixa acústica de referência, que segundo ele tinha os agudos muito projetados. Ele gostava do resto todo se sua caixa, menos os seus agudos. Em vez de trocar de caixa, o que ele fez? Virou as caixas para a parede, deixando-as de costa para o ouvinte. E ficou ouvindo a reflexão da caixa na parede e não mais o som direto.
Meu pai tinha um cliente um advogado criminalista que adorava ópera, e gostava de ouvir bem alto suas óperas preferidas. Mas as cantoras (somente elas), agrediam emasiadamente seus ouvidos. Sua solução: fazer as audições da sala ao lado.
Estes dois exemplos eu coloco no pacote de soluções bizarras, e todo audiófilo deve conhecer alguma dessas histórias para contar nas rodas de amigos.
Duas áreas que avançaram muito nos últimos anos, no campo da neurociência, foram a neuroplasticidade do sistema nervoso e a neuropsicologia que estuda as habilidades cognitivas. A primeira estuda a forma com que o nosso cérebro se adapta ao meio ambiente, sendo que a Plasticidade Auditiva possui hoje mais de 100 estudos publicados nos principais meios de comunicação científicos, e a segunda (a que mais me atrai) estuda a percepção auditiva e a capacidade de discernir entre escutar e ouvir.
Não é à toa que nossos cursos tem o nome de Percepção Auditiva, e toda base da metodologia foi baseada nos seguinte tópicos: recepção da informação, transmissão da informação, manipulação da informação e características acústicas em um ambiente tratado para audição musical.
Antes de falar sobre essas duas áreas de estudo, quero deixar claro que não discuto que cada indivíduo nasça com sua percepção auditiva distinta de outro indivíduo. Mas que, assim como todas os sentidos, a audição pode e deve ser aprimorada. E tocar um instrumento ou ouvir música (não apenas escutar), aumentam exponencialmente sua percepção auditiva e sua memória auditiva. E os resultados benéficos vão muito além do que aqui será discutido.
É a capacidade do sistema nervoso se adaptar a diferentes estímulos. O termo Neuroplasticidade foi derivado do grego ‘Plastikos’, que significa moldado. O primeiro a utilizar este termo foi o professor William James para definir a plasticidade cerebral, e explicar a capacidade do sistema nervoso central se adaptar, tendo habilidade para modificar sua estruturação e funcionalidade.
No caso específico da Plasticidade do Sistema Auditivo, trata-se de modificações por meio do aprimoramento de células nervosas pela influência do meio ambiente, sendo mais desenvolvidos com estímulos mais complexos como a música!
Hora, o que estou tentando descrever, meu amigo leitor, com puro embasamento científico e não achismos ou testes audiométricos, é: que todos que não tiverem deficiências auditivas sérias, podem ampliar sua percepção auditiva a tal ponto de reconhecerem se um instrumento está desafinado, ou um sistema de áudio desequilibrado tonalmente.
E esta observação pode perfeitamente ser ampliada para todo um grupo de indivíduos, desde que eles tenham aprendido a ouvir e não apenas escutar (chegarei lá na diferença entre ambos).
E a Neuroplasticidade no sistema auditivo descobriu recentemente (em 2016), que este desenvolvimento auditivo se expande além do córtex, atingindo também o tronco encefálico. Esses estudos estão revolucionando a forma de tratar a surdez, com o desenvolvimento de novas técnicas cirúrgicas (nos casos em que este procedimento é possível) e no desenvolvimento de novos aparelhos para surdez.
E como se trata de um mercado em que mais de 1 bilhão de indivíduos necessitam de tratamento médico por perda de audição, o investimento em pesquisa e desenvolvimento é um dos que mais recebe verba pública e privada.
No segmento da Neuropsicologia, os avanços além de consistentes também foram significativos nas duas últimas décadas.
É a capacidade do indivíduo interpretar informações que os sentidos recebem do ambiente. E esta interpretação é um processo ativo que depende dos nossos processos cognitivos e conhecimentos prévios.
A percepção auditiva pode ser definida como a capacidade para receber e interpretar informações que chegam aos ouvidos através das ondas de frequência transmitidas pelo ar. No caso específico da música, a capacidade que o indivíduo tem de manter uma percepção que a neurociência chama de estado de vigília, é essencial para se ouvir o acontecimento musical e não apenas escutar.
Os seja, sem este estado de vigília em que o sistema auditivo e o cérebro estão ‘presentes’, você não está ouvindo e sim apenas escutando. A percepção auditiva treinada irá fazê-lo reconhecer e entender os sons!
Então, para a neuropsicologia do estudo da Percepção Auditiva, não é possível mais separar o sistema auditivo do cérebro auditivo. E quando alguns defendem teses absurdas, como uma curva ideal de audição para cada indivíduo, ele ainda está a raciocinar como se a audição fosse apenas nosso sistema auditivo (orelhas, tímpanos, etc).
É o cérebro auditivo que recebe as informações enviadas da cóclea, e ele que fica encarregado de interpretar e elaborar respostas àqueles estímulos conscientemente, depois fazendo a memorização daquela informação sonora para futuras percepções.
Portanto, a nossa percepção auditiva depende essencialmente do nosso estado de vigília. As fibras do nervo auditivo transmitem ao cérebro as mensagens codificadas pela cóclea. No cérebro, vários núcleos (grupos de neurônios) recebem esta mensagem e a decodificam (sons fortes, fracos, agudos, graves, localização espacial, etc) e finalmente nos criam uma sensação do que foi codificado.
O mais incrível da anatomia do cérebro auditivo é sua capacidade de controlar o funcionamento da cóclea, utilizando canais “paralelos ou vias de retorno”. Um exemplo desta capacidade é conseguirmos focar em uma conversa individual mesmo em um ambiente com múltiplos estímulos mais fortes. Ou reconhecer em um parque os diversos cantos de pássaros distintos, ou uma nota de um triângulo no meio da orquestra!
Quando nos focamos no quesito Percepção Musical, a neurociência também está a fazer inúmeras descobertas que certamente mudarão a forma de ouvirmos música.
No livro Alucinações Musicais: Relatos Sobre a Música e o Cérebro, de Oliver Sacks (Editora Companhia das Letras), o autor fala do ouvido absoluto e nos narra diversos episódios como do entomologista finlandês Olavi Sotavalta, especialista em sons de vôo de insetos, que utilizava seu ouvido absoluto em seus estudos para descobrir os insetos pelo tom do som produzido pelo mesmo na frequência de batidas de suas asas. Ele chegava ao requinte de falar aos seus alunos que a Mariposa Plussia Gama tinha a frequência das asas próxima a um Fá Sustenido grave, e que sua frequência era de 46 ciclos por segundo!
Apenas uma em cada 10 mil pessoas possuem ouvido absoluto, e este certamente não é o caso da maioria dos nossos leitores, mas o que podemos perceber claramente é que nossa audição pode ser treinada ao ponto de ouvirmos com eficiência as diferenças de frequência, ritmo, tempo, etc. Basta entendermos e estimularmos o nosso sistema auditivo e termos referências seguras do que precisamos buscar naquilo que ouvimos.
E todos que tenham interesse e nenhuma deficiência auditiva grave, estão aptos a desenvolver sua capacidade auditiva plena (chamo de auditiva plena o conjunto do sistema auditivo e o cérebro auditivo).
O que os defensores dos ajustes individuais dos sistemas para cada ouvinte esquecem é que, para tal argumentação ser plausível, as diferenças teriam que ser estratosféricas, e não são.
As diferenças de curvas de resposta (em indivíduos sem deficiência grave) são ridículas e não podem se basear em teste audiométrico para se determinar essa diferença entre dois indivíduos. Pois se o cérebro auditivo possui a plasticidade para se adaptar e aprimorar, ambos podem ser preparados para ouvirem e interpretarem o mesmo acontecimento musical.
Certamente você já ouviu ou leu à respeito da frequência 440 Hz certo? O que é exatamente? Em 1953 a Internacional Standards Organization (ISO) tornou os 440 Hz a afinação padrão para os instrumentos musicais do ocidente. Os 440 Hz correspondem ao número de ‘vibrações a cada segundo’ da nota Lá.
Mas como vivemos desde os tempos da Guerra Fria um clima de conspiração mundial, em algum momento, no auge da New Age (lembram?), surgiu a teoria (sempre uma teoria) de que a frequência de 440 Hz foi instituída em 1953 por uma organização secreta que impôs ao mundo esta afinação com o objetivo subliminar de alimentar o caos, a desordem e o desequilíbrio dos chakras, transformando as pessoas em violentas e cegas para a evolução. E que deveríamos voltar a compor todas as músicas e tocar todas as obras já feitas pelo homem em qualquer era, em 432 Hz, que segundo os esotéricos é a “frequência do planeta Terra”, blá,blá,blá…
Os defensores afirmam que, na Idade Média, os músicos usavam essa frequência para afinarem seus instrumentos, que estimulavam o desenvolvimento espiritual humano (como se a Idade Média não tivesse sido uma era de trevas).
Pois bem, os defensores (que são muitos) da afinação na frequência 432 Hz, resolveram tentar provar sua teoria e pegaram uma série de canções populares de diversas nacionalidades e refizeram a afinação de 440 Hz para 432 Hz. Alguns devem estar se perguntando: mas não desafinou? Não, o 432 Hz também é um Lá. E este Lá possui uma faixa bem ampla e vai de 415 Hz a 460 Hz, ou seja, qualquer som produzido dentro desta frequência será um Lá.
O fenômeno sonoro que ocorre ao substituir o ‘Lá 440’ pelo ‘Lá 432’ é bem interessante. Mas, antes, deixe eu explicar como percebemos as notas musicais. Todas as notas possuem uma frequência. Essa frequência é o número de vezes que as moléculas do ar ao redor do instrumento vibram em um segundo. Assim, um Lá em 432 Hz de um violão faz as moléculas pularem para cima e para baixo, para frente e para trás, quatrocentas e trinta e duas vezes em um segundo de música. Esses pulos dados pelas moléculas do ar chegam aos nossos ouvidos e são transformados em som no nosso cérebro.
Assim, pasmem senhores, Yesterday – do Paul McCartney – com a afinação em 432Hz foi percebida por todos os participantes do ensaio como se estivesse sido tocada mais relaxada, devagar, sem pressa, sem tensão, etc. Como não havia nenhum músico presente e somente pessoas leigas, ninguém se ateve à afinação, apenas à sensação de como seu cérebro notou que, em vez de 440 moléculas saltitando no ar por segundo, haviam apenas 432 moléculas.
Experiências como essa já foram feitas em inúmeros centros de estudos de psicoacústica, e existe até um site chamado “432 Hz” que fala dos benefícios da música afinada nesta frequência. Como acompanho os avanços da musicoterapia desde os anos 1970, não duvido que os benefícios para uma humanidade cada vez mais estressada sejam vitais, mas querer impor que se produza música afinada nessa frequência, aí já é radicalismo demais para o meu gosto!
Para nós, e para o objetivo deste artigo, usei este tema para mostrar que a capacidade humana de ampliar sua percepção auditiva foi ainda muito pouco estudada. E que, independente das sutis variações auditivas de cada indivíduo, todos podem reconhecer uma afinação, ou um equilíbrio tonal correto ou não.
Sou defensor de que cada um tem o direito pleno de ouvir seu sistema plantando bananeira, de cueca, do banheiro, da forma que desejar! Pois neste caso estamos falando de gosto pessoal, aí cada um tem o seu jeito de querer escutar seu sistema. Mas querer defender sua opinião pessoal com argumentos pseudamente científicos aí, me desculpe, não dá amigo leitor. Defender que uma equalização pessoal vai lhe fazer escutar música como você nunca ouviu, cai na mesma vala dos que diziam lá atrás que gravações tecnicamente ruins não podem ser escutadas em sistemas hi-end, ou que se corrige problemas acústicos ‘domando’ o setup com cabos.
O que sempre escrevo serve muito bem para este tema: não existe ‘almoço grátis’ na audiofilia. Ou você sabe exatamente o que está fazendo ou você vai acabar, depois de muito esforço, se frustrando plenamente.
E para saber onde você deseja e almeja chegar, você precisa estar muito bem informado. Quando alguém defende esses ajustes pessoais através de equalização, sempre me pergunto se este indivíduo em algum momento se perguntou se a reprodução de música através de um sistema decente se resume apenas ao equilíbrio tonal. E se ele sabe que, por mais sofisticado que seja o seu equalizador paramétrico, ele também irá alterar as frequências em outras regiões que não precisavam ser alteradas. E se ele alguma vez observou as correlações entre equilíbrio tonal, textura, corpo harmônico e transientes.
Só para quem escuta música, o equilíbrio tonal é a única preocupação. Para quem ouve música, equilíbrio tonal é o alicerce sobre o qual todos os outros quesitos se sustentam. E quando você tem uma base frágil (equilíbrio tonal modificado por uma equalização), nada em cima desta base se sustenta.
Depois dos Terraplanistas, em breve veremos os audiófilos saudosistas defendendo a volta dos amplificadores com o botão de ‘Loudness’, não duvide amigo leitor, pois estamos realmente vivendo tempos muito estranhos e sombrios.
Viagem ao Mundo da Audição:
http://www.cochlea.org/po/ouco/cerebro
Cognift:
https://www.cognifit.com/br/habilidade-cognitiva/percepcao-auditiva
O Mito da Frequência de 432 Hz:
https://platinorum.com/2016/05/20/o-mito-da-frequencia-de-432hz/
4 Comments
Boa noite, segundo alguns dicionários o significado de ouvir remete ao sentido da audição, é aquilo que o ouvido capta. Já o verbo escutar corresponde ao ato de ouvir com atenção, ou seja, escutar é entender o que está sendo captado pela audição, mas além disso, compreender e processar informação internamente. Será que eu entendi errado ou o articulista inverteu os sentidos?
Caro Pedro, boa noite! Não foi invertido. A neurociência estabelece que só ouvimos realmente quando estamos em estado de vigília.
E tanto o nosso sistema auditivo quando o cérebro auditivo que realiza a interpretação do que ouvimos estão interligados. Para a neurociência, reconhecer sons em que já estamos familiarizados (como uma buzina, ou o canto de um pássaro), não aciona nosso estado de vigília ou cérebro auditivo, então apenas escutamos. Ouvir para a neurociência consiste em reconhecer, interpretar e desenvolver o estado de vigília, que aciona diversas partes do nosso cérebro e guarda no hipocampo aquela informação musical para o uso em nossa memoria auditiva. E nossa memoria auditiva ampliada, nos permite até mesmo comparar interpretações ou acentuações de uma frase musical em tempo real, mesmo que não sejamos músicos ou tenhamos ouvido absoluto.
Para ouvir com Atenção uma palestra ou um dialogo entre duas ou mais pessoas, não precisamos usar nosso cérebro auditivo. Porém para compreendermos uma melodia mais complexa com enormes variações de tempo, ritmo e dinâmica com diversos instrumentos tocando simultaneamente, se desejamos ir além do escutar e nos entretermos por algum tempo, será preciso aprendermos a ouvir corretamente. Esta é a ciência que estuda a ampliação da percepção auditiva / musical.Esse foi o escopo da matéria aprender a ouvir música vai muito além de escutar a música
Espero ter respondido a sua duvida. E obrigado por participar!
Pedro, boa tarde. De acordo com as definições dos dicionários, o articulista inverteu os sentidos, sim. De acordo com o Houaiss, “ficar atento para ouvir; dar atenção a”
“Ex.: escutava com paciência aquelas queixas”.
Portanto, o inverso do que o articulista escreveu.
Com toda essa bela discussão sobre o assunto, que é fantástico, seria uma salvação para humanidade, em especial nós brasileiros que há algumas décadas deixamos de produzir músicas e passamos a produzir ritmos e estilos, “não consigo falar sobre as letras” que seria um ótimo teste “descer” a frequência dessas produções para 432hz e acompanhar o comportamento das pessoas, em especial os jovens que passam horas com fones de ouvido, de boa ou má qualidade. Uma canção executada a 432hz soa diferente aos meus ouvidos. Para mim é perceptível, nítido e cristalino.