Omar Castellan
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O tango, ainda hoje, apresenta alguma verdadeira relevância? Seguramente, sim. No que há de melhor em sua criatividade e emoção, o tango é mais do que seus próprios clichês perpetuados em arranjos ‘melosos’. Em um grau considerável, foi Astor Piazzolla o responsável por garantir o crescimento contínuo e também a atualização do tango. Para ele, o tango foi mais que puras notas musicais e a projeção de qualidades específicas do gênero, tais como a liberdade, a paixão e o êxtase. Para um portenho como Piazzolla, o tango representou o ‘telão de fundo’ de Buenos Aires: o baile, a música, a poesia, a canção e o gestual, como também ‘ethos’ e a filosofia de vida. É como disse o famoso violoncelista Yo Yo Ma: ‘O tango não se reduz ao baile. É uma música de profundas implicações; ele reflete a história cultural e social de um País, o tango é a alma da Argentina. E os tangos de Piazzolla apresentam a força vital da voz verdadeira. Diferente dos tangos tradicionais, os dele são para escutar e não para dançar. Evocam imagens de Buenos Aires: uma pista de baile à meia luz, a fumaça de um cigarro fazendo piruetas no ar, uma bela mulher nos braços de um homem entregando-se ao ritmo do amor e sonho, da dor e realidade’. A maior herança de Piazzolla foi mostrar que a música urbana contemporânea de uma cidade é e pode ser a base permanente de uma música revolucionária, e que por isso mesmo não deve e nem precisa ser imutável.
O tango argentino foi o primeiro e o mais marcante de uma série de estilos de danças exóticas que se originaram na América do Sul e nas ilhas caribenhas e que, depois, varreram a Europa, América do Norte e outras partes do mundo. A rumba, o samba, a conga, o merengue, a charanga e o chá-chá-chá apresentaram modas passageiras, mas nenhuma dessas danças competiu com o tango em sua permanência e influência sobre a imaginação popular. A data exata de seu nascimento é desconhecida, mas ele surgiu na Argentina no fim do século XIX, atingindo os 100 anos em torno da década de 1990. Os dois mais proeminentes artistas do tango foram o compositor e cantor Carlos Gardel (1887-1935) e o compositor e condutor Astor Piazzolla (1921-1992). O seu ritmo dançante inconfundível – lento, lento, rápido, rápido, lento – em compasso 2/4 é, provavelmente, de origem africana: escravos negros o levaram da África Central, via Cuba e México, para a Argentina; ele está mais relacionado à habanera cubana, música de compasso binário, com o primeiro tempo fortemente acentuado, e com uma curta introdução, seguida de duas partes de oito compassos cada uma, com modulação de tom crescente. O tango desenvolveu-se nos bairros operários de Buenos Aires e subúrbios em torno de seu porto. Ele era a música dos oprimidos das baixas classes sociais urbanas e, desde o começo, foi associado ao crime, drogas e prostituição em bares e bordéis sórdidos. Os marinheiros franceses que trabalhavam com tráfico de escravas brancas aprenderam o tango nos bordéis argentinos e o introduziram na França. Um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o tango tornou-se rapidamente moda em Paris, Londres e outras capitais europeias, onde foi aceito como música romântica, sensual ou erótica, mas não sórdida. O sucesso no exterior deu ao tango respeitabilidade em seu País de origem, a Argentina, e na década de 1920 mudou-se dos bares baratos e casas de prostituição para os cabarés e teatros. Nesse momento, Carlos Gardel surgiu como expoente do mundo do tango. Nascido em Toulouse, na França, mas criado na Argentina, ele apresentava uma voz de barítono instantaneamente reconhecível e o aspecto do amante latino clássico. Gardel gravou cerca de mil músicas, muitas vezes acompanhadas por ele próprio no violão. Através de gravações, concertos e filmes, se tornou um mito, tal como o foram, na época, Rudolph Valentino e Greta Garbo. A morte de Gardel em um acidente de avião, em 1935, foi considerada como uma tragédia cultural, especialmente nos Países de cultura espanhola. Com suas composições e performances, levou o tango clássico ao seu pico mais elevado. Muitas de suas canções tematizavam a amargura na vida das favelas, impregnada pela pobreza e decepção causada por falsos valores e desilusões amorosas. Ele conseguiu expressar esse tipo de melancolia, bem característico da nação argentina, dentro da estrutura rígida e ritmo do chamado tango da ‘Velha Guarda’. Esse cenário mudaria em meados dos anos 1950, quando uma revolução ocorreu na música popular argentina, lançada por Astor Piazzolla, que chamou sua obra de ‘Tango Novo’. Porém, os tradicionalistas nunca o perdoaram. A guerra absurda travada na Argentina entre os piazzollistas e os antipiazzollistas durou décadas. Piazzolla promoveu uma profunda renovação da música de tango, evoluindo constantemente, e sua obra foi um reflexo de Buenos Aires; ele foi o melhor intérprete da alma de uma cidade vital, enérgica e melancólica, que recusava qualquer imagem sonora diferente da corriqueira, congelada. Sua música foi capaz de cativar o mundo e de transformá-lo em um dos dois ou três compositores mais venerados do continente latino-americano do século XX. Músicos de todo o mundo colocaram-no naquele nicho destinado aos pouquíssimos merecedores de idolatria, mas em Buenos Aires nem sempre foi assim. As resistências continuam até hoje, e só as novas gerações souberam romper barreiras e, enfim, entendê-lo. Isso foi o que Piazzolla buscou a vida inteira, mas pouco conseguiu.
Duas declarações à imprensa, uma do próprio Piazzolla, e outra, de sua segunda esposa, Laura Escalada, mostram precisamente como era o seu caráter e personalidade: ‘Quem você gostaria de ter sido? Bach ou Mozart. No entanto, sofreram tanto! Qual o principal traço de sua personalidade? O nervosismo. Sempre estou mexendo os dedos. Seu defeito principal? Jamais penso no que falo. Por isso, faço muitas bobagens e cometo fiascos. Qual seria a sua maior desgraça? Perder a minha mulher. O que mais lhe aborrece? Que me ofereçam uma péssima comida. Nome favorito? Windy, Sonny, Zum. São os meus três cães. O que sente em relação a um policial? Antipatia. Sinto repulsa por todo aquele que é portador de armas. Que dom natural gostaria de possuir? Voar, como os pássaros. Como você gostaria de morrer? Violentamente. Sua ideologia? Creio na vanguarda, na liberdade, na revolução’. (Astor Piazzolla em La Semana, 1983). “Astor é um homem muito complexo e, também, muito sensível. Diria que é uma síntese entre a simplicidade e a controvérsia. Possui uma vida interior absolutamente sua e na qual ninguém penetra. Tampouco eu. Somente ele vive, desfruta e resolve esse mundo interior, e o transmite através de sua música. Ao mesmo tempo, é um ser extremamente vulnerável, de uma ingenuidade infantil. Sempre foi muito tímido, desde a sua infância. Somente na intimidade e em momentos muito especiais, ele se expõe, o que tem muito a ver com o que sempre foram as famílias italianas e espanholas, algo atávico. Não é muito afável, ao contrário, bem seco. Fazer uma carícia espontânea é um pouco estranho para ele. Dizer ‘te amo’ ou ‘abraça-me’ não é usual. O curioso em tudo isso é que Astor é imensamente afetuoso. No cotidiano é singelo, simples e nada pretensioso. No princípio, seus silêncios me incomodavam, porém logo descobri o porquê: são os momentos que tem para pensar. É uma máquina de pensar” (Laura Escalada Piazzolla em La Semana, 1983).
Piazzolla tinha paixão por seu instrumento: o bandoneón. As qualidades desse instrumento têm sido reconhecidas bem antes da tradição do tango. ‘No bandoneón pode-se tocar qualquer coisa’, disse uma vez Pablo Casals. É um instrumento formidavelmente difícil. A variedade diatônica de 71 botões, preferida por todos os bandoneonistas de tango, apresenta 38 botões para a mão direita e 33 para a esquerda, e cada um produz duas notas distintas conforme o instrumento estiver com o fole aberto ou fechado. A disposição dos botões parece incompreensivel à primeira vista. Na Europa se adotou, em meados da década de 20, um sistema mais racional (o cromático), porém os músicos argentinos se aferraram tenazmente à disposição diatônica, muito mais difícil de tocar. Piazzolla não deixou nenhum tratado teórico sobre a execução do instrumento, e não conseguiu concretizar o seu projeto de fazer para o bandoneón o que Bártok havia realizado para o piano com seu Mikrokosmos. Em várias ocasiões fez declarações sobre as características essenciais do instrumento, geralmente para a imprensa estrangeira, comparando-o com o acordeão: ‘O acordeão apresenta um som ácido, cortante. É um instrumento muito zombeteiro. O bandoneón possui uma sonoridade aveludada, religiosa. Foi feito para tocar música triste’. Isso o tornou ideal para o tango, com seus fortes elementos de nostalgia e melancolia. Em outras palavras, o acordeão é extrovertido, o bandoneón, introvertido.
Natural de Mar del Plata, Piazzolla nasceu em março de 1921, mas amava Buenos Aires. Quando ele tinha três anos de idade, seus pais se mudaram com a família para os Estados Unidos, onde viveu em um bairro da classe operária de Nova York, no Bronx, então chamado de Lower East Side (atualmente o valorizado East Village), que, naquele tempo, era o local menos recomendável para se viver nessa cidade. O primeiro bandoneón chegou à sua vida pelas mãos do pai, Vicente – filho de imigrantes italianos, barbeiro, violonista e amante do tango; sua mãe, Asunta, trabalhava como costureira e cabeleireira. Astor tinha seis anos. Daí em diante, ele e o bandoneón jamais se largariam. Preferia compor ao piano, mas através do bandoneón se dirigiu ao seu tempo, a Buenos Aires e ao mundo. Mais tarde, ele comentaria que as brigas com os garotos em gangues de bairro, em Nova York, o prepararam para as suas lutas posteriores no mundo musical. Embora alguns de seus companheiros dessa época tenham ficado famosos quando adultos (como o campeão mundial de boxe de peso pesado, Rocky Marciano), Piazzolla expressou, posteriormente, que metade deles acabou na prisão de Alcatraz, na Califórnia, e a outra metade na prisão de Sing Sing, em Nova York. Apesar de suas finanças limitadas, os pais de Piazzolla investiram em sua educação musical. Na década de 1930, começou a estudar bandoneón com um músico argentino que morava na cidade, Andrés D’Acquila, e piano com o húngaro Bela Wilda, que tinha sido um dos alunos de Rachmaninov. Logo após, teve alguns poucos momentos de fama quando foi convidado para tocar bandoneón no filme El Dia Que Me Quieras, estrelado pelo maior ícone da cultura argentina do século XX, Carlos Gardel; Piazzolla, também, protagonizou uma pequena cena no filme como vendedor de jornais.
Em 1937, a família de Piazzolla retornou à Argentina, e o jovem Astor, com 16 anos, conseguiu aquilo que, para a carreira de um jovem músico, era o emprego dos sonhos: tocar na famosa orquestra do regente e compositor Aníbal Troilo como solista de bandoneón; junto com esse gigante da música argentina, passou a fazer arranjos, em parte graças ao que aprendera nas aulas com Alberto Ginastera, um dos maiores compositores eruditos da primeira metade do século XX na América Latina. Nessa época, o tango ainda ensaiava tímidos passos de inovação, e a chegada de Piazzolla como o jovem arranjador da orquestra de Troilo começou a abalar os alicerces, não sendo muito bem recebido. Era apenas o sinal do que viria depois. Ficou nessa orquestra até 1942. Depois de ter passado por outras orquestras e de ter formado o seu primeiro grupo, Piazzolla resolveu dedicar-se essencialmente a compor música de câmara, mergulhando no mundo da música erudita. Logo após, em 1953, ganhou uma bolsa do governo francês para estudar em Paris, com a famosa pedagoga Nadia Boulanger que, impressionada com a sua música, encorajou-o a concentrar-se sobre o que ele fazia melhor, o tango. ‘Um dia, Nadia me pediu que tocasse um tango no piano’, contou Piazzolla, 20 anos depois. “Sentei-me, toquei um tango qualquer e, depois, um que eu mesmo havia escrito. Quando acabei, ela sentenciou: ‘Enfim ouvi Piazzolla, depois de um ano. Chega de aulas, você já tem o seu caminho. Vá compor, crie um grupo, faça seus arranjos e nunca mais deixe de ser esse Piazzolla’. Acho que ali começou tudo.” Permaneceu em Paris durante um ano e, aí, gravou dois discos com outro músico argentino, o pianista Lallo Schifrin, amigo íntimo até o fim de sua vida, que faria carreira nos EUA.
De volta a Buenos Aires, em 1955, Piazzolla trouxe uma série de composições na bagagem, ideias atrevidas na cabeça e a lição de Boulanger na alma. Criou dois conjuntos revolucionários, a Orquestra de Cordas e, logo depois, o Octeto Buenos Aires, reunindo os
melhores instrumentristas da época. Compôs e interpretou música que combinava alguns elementos do tango da ‘Velha Guarda’, com influências do jazz e música clássica. Estas novidades atraíram novos ouvintes, mas enfureceram os puristas do tango, abandonando o ritmo do tango tradicional. Na década de 1960, o governo militar argentino condenou o seu trabalho por ser de vanguarda. No entanto, os críticos que o vilipendiaram, chamando-o de palhaço ou paranóico, trouxeram-lhe publicidade e novos públicos, e o tiro saiu pela culatra. Em 1974, ele deixou a Argentina e se mudou para a Europa, onde trabalhou até a década seguinte, introduzindo sua música a uma vasta audiência internacional. A partir daí, e até o fim, sua vida girou entre Roma e Paris, tendo sempre Buenos Aires como eixo, tocando e gravando em cidades como Viena, Amsterdã, Nova York e Tóquio. Essas cidades se deixaram cativar pela sua música, e souberam amá-lo de um jeito que Buenos Aires jamais conseguiu. É claro que Piazzolla carregava essa mágoa com ele, mas evitava demonstrá-la. Contra a sua força e talento, nada podiam os ventos e as marés. Era altivo, e conseguiu permanecer em evidência por muito tempo, e, para isso, possuía a mais sólida das saídas: a música. Na realidade, desde meados da década de 1970, ele nunca mais deixou de ocupar um espaço fixo no Olimpo dedicado aos mestres. Conseguiu aquilo que seus amigos achavam que ele havia procurado a vida inteira: sua estabilidade financeira e consagração. A partir de 1980, dedicou seus melhores esforços à composição de temas cada vez mais inovadores e elaborados do que nunca. Passou a receber enxurradas de encomendas de trilhas sonoras, de peças sinfônicas e de câmara. Parecia possuir uma mina própria de acordes e linhas melódicas, conseguindo manter uma identidade inalterada sem se repetir um só instante. Essa ‘máquina’ só pararia em julho de 1992, quando em um quarto, em Paris, Piazzolla sofreu um agudo derrame cerebral. Durante dois anos lutou contra a morte. Em uma entrevista, disse: ‘Nunca tirem a música de mim. Enquanto estiver vivo, estarei fazendo música, e viverei sempre para ela’. Ele tentou. Na noite de 4 de agosto de 1992, Piazzolla morreu em um hospital de Buenos Aires, a cidade que tanto amava e lhe inspirava, apesar dos contratempos.
A intenção artística fundamental de Piazzolla foi combinar a sua determinação em renovar o tango com o prazer da experimentação, cruzando fronteiras e explorando diversas culturas e gêneros musicais. Representou a encarnação viva da integração e o ‘crossover’. Isso não significa que tenha negado alguma vez suas raízes argentinas; no entanto, ele foi, também, um transgressor no verdadeiro sentido do termo, sempre aberto a novas influências. Sem deixar de ser ‘tanguero’, resolveu criar algo mais universal. Tolstói o inspirou com o seu lema: ‘Pinta tua aldeia e pintarás o mundo’. Piazzolla pintou sua grande aldeia com um talento tão consumado que tanto os músicos quanto o público logo afluíram a ele nos quatro continentes, foi um músico universal que necessitava concentrar-se na linguagem de Buenos Aires. Quanto mais local era, mais universal se tornava. Foi um compositor completo. Não somente o conteúdo era importante para ele, mas também a estrutura e a forma. O estilo de sua música pôde ser reconhecido rapidamente. Suas características principais encontram-se na forma como realizou a fusão da música clássica (com influências marcantes de Stravinsky e Bartók, seus heróis) e do jazz norte-americano com a música de tango que escrevia e tocava. A partir dessas influências primordiais, e da formação que recebeu de Ginastera e Boulanger, destilou algo completamente único e diferente. Nas décadas de 1940 e 1950, estudou detalhadamente partituras como as Quatro Estações, de Vivaldi, O Amor das Três Laranjas, de Prokofiev, Primavera nos Apalaches, de Copland, e Scheherazade, de Rimsky-Korsakov. Nesse período, lhe interessava muito Debussy. Em 1964, expressou que seus compositores favoritos eram Bach, Brahms, Ravel, Stravinsky e Alban Berg, e, em outras ocasiões, agregou ao seu panteão de grandes mestres, Hindemith. Bartók sempre foi um de seus favoritos, em especial, o Bartók de Mikrokosmos. Também lhe atraíam os músicos ocidentais nacionalistas, como Copland, Gershwin e Villa-Lobos. Não mostrou muito entusiasmo pela música dodecafônica ou dos compositores experimentais posteriores à Segunda Guerra Mundial. Respeitava figuras como Pierre Boulez, Stockhausen, Luigi Nono ou Iannis Xenakis, porém não o inspiravam. Em 1989, comparou a música contemporânea com a busca da vacina para a Aids: ‘Está aí, mas ainda não está aí… não saiu à venda’.
Como todo artista, Piazzolla possuía particularidades e recursos favoritos semelhantes a qualquer outro compositor que encontra a sua voz. A repetição de motivos e a recorrente apelação a técnicas de fuga se encontram entre as suas características mais conhecidas. Tomou isso emprestado de outras tradições musicais diferentes do tango: as progressões harmônicas do jazz ou da técnica do baixo-contínuo, que aprendeu de seu ídolo Bach (seu uso mais célebre se encontra na ‘falsa passacaglia’ do adágio de Adiós Nonino). A habi-
lidade contrapontística de Piazzolla e a confiança em empregá-la em texturas musicais mostram a sua plena formação acadêmica. Seu toque pessoal está, também, presente na orquestração, impulso rítmico e exploração dos timbres instrumentais. Ele manteve os timbres básicos do tango clássico (bandoneón, piano, cordas), mas experimentou constantemente novas modalidades instrumentais: orquestra de cordas com bandoneón solista, quintetos, sextetos, octetos, um noneto e orquestras mais numerosas. Com os anos, em sua ansiedade para expandir a gama instrumental, incluiu a guitarra elétrica, percussão, harpa, flauta transversa, vibrafono, piccolo, celesta e sintetizador, sem esquecer, de vez em quando, dos cantores e coros. No entanto, ele se sentia mais cômodo com seus conjuntos menores, sobretudo os quintetos (1960-1974 e 1978-1988) e seu noneto, em que se pode apreciar melhor a sua genialidade para evidenciar os instrumentos (na partitura).
Em sua evolução musical, Piazzolla utilizou um vasto repertório de técnicas de composição: cânones, polirritmia, politonalidade, fugas, dissonâncias e, ocasionalmente, efeitos atonais e impressionistas que lembram Ravel. Também, apanhou elementos do jazz ‘progressivo’ e o cool das décadas de 1940 e 1950, que tanto admirava. Na década de 1950, artistas como Stan Getz, Chet Baker, Gil Evans, Gerry Mulligan, Lennie Tristano e George Shearing, e grupos como o Modern Jazz Quartet, deixaram a sua marca nele e em sua obra, em especial em sua obra para o Octeto, que foi, talvez, de todos os seus conjuntos, o mais influenciado pelo jazz. O mais importante que Piazzolla extraiu do jazz foi, provavelmente, o swing. Na realidade, Piazzolla criou um conceito próprio do swing: ‘um swing de quatro compassos baseado na unidade rítmica estabelecida nos graves do piano pela mão esquerda’, e que era compensado mediante diversas figuras rítmicas fora do tempo, sendo muitas delas de sua criação. Quanto à livre improvisação, deixou bem claro que o tango apresentava uma forma demasiado estrita em relação ao jazz; assim, em troca, deu uma considerável liberdade expressiva aos instrumentistas dos diversos grupos. Em grande parte, o estilo de composição de Piazzolla derivava da sua necessidade de escrever para seus músicos, aos quais concebeu, desde a época do Octeto em diante, como solistas dentro do marco do conjunto, estimulando-os para que improvisassem frases de tango (não de jazz) e adornassem as partes escritas por ele. Piazzolla sempre necessitou estar rodeado de músicos que o estimulassem a escrever para eles e que fossem capazes de exibir o seu talento. Tanto o pianista Osvaldo Tarantino quanto os violinistas Antonio Agri e Fernando Suárez, e o percussionista Enrique Roizner eram mestres na improvisação ‘tanguera’.
Os acentos característicos da estrutura rítmica de grande parte da música piazzollana correspondem ao 3-3-2, isto é, ocorre a ênfase na 1ª, 4ª e 7ª notas dos octetos em um compasso 4/4. Deriva, em última instância, da habanera cubana que influenciou a milonga argentina. Esse ritmo, posteriormente, foi incorporado ao acompanhamento do violão nas milongas e orquestras de tango das décadas de 1930 e 1940. Outra influência foi a música Klezmer que Piazzolla escutava nos casamentos dos judeus de Manhattan em sua infância, e cujo ritmo ficou impregnado em sua memória para sempre. O ritmo dessa música (proveniente das regiões da Europa Central, principalmente na Bulgária) havia sido, também, incorporado por Bartók; quando Astor estudou com Ginastera, este lhe mostrou muitas
partituras do grande compositor húngaro, e esses ensinamentos o influenciariam de uma maneira marcante. Entretanto, seja qual for a origem do ritmo 3-3-2, é certo que Astor o tornou seu de um modo particular. Sua sensibilidade rítmica era extraordinária. Considerado por seus companheiros como uma verdadeira ‘enciclopédia ambulante’ de ritmos, ele possuía um ouvido particularmente agudo para as raízes africanas das formas de dança no Rio de la Plata, as quais confluíram historicamente no tango.
As obras de Piazzolla mostram-se muito bem estruturadas na forma, nas seções, repetições, orquestração, variedade, intensidade e pontos culminantes dos temas. Esse excelente sentido estrutural iniciou-se no fim dos anos 50 e começo dos 60, em obras como Tres Minutos con la Realidad e Buenos Aires Hora Cero. A partir de então, muitas de suas obras breves apresentam como traço característico comum uma divisão bipartida: uma parte que expressa grande ênfase rítmica ou impetuosa, e outra em que predomina a linha melódica. Nas seções rítmicas, a melodia soa fragmentada, irregular, entrecortada, enquanto que nas seções melódicas encontram-se meditativas, românticas ou apaixonadas. Em sua peça Cité Tango (1977), essa dualidade se apresenta bem evidente, e nela há, na linha melódica, uma das passagens de bandoneón mais elegíacas de Piazzolla. Em outras obras, o ritmo predomina totalmente, do começo ao fim, como em Escualo (1979), ou, ao contrário, a melodia é predominante, como em Llueve sobre Santiago (1975), dando apenas um pequeno espaço à parte rítmica como contrapeso. Piazzolla cresceu junto com a cidade portenha em um momento em que nela estavam ocorrendo grandes mudanças. Sua música representa para Buenos Aires o que Gershwin significa para Nova York. Escutar uma partitura dele com seu bandoneón é ter um postal musical de Buenos Aires, que pinta a paisagem sonora da cidade de dia e de noite. A sonoridade do bandoneón é indispensável e singular; é o som da Argentina, o som de Piazzola. Vários artistas argentinos expressaram muito bem o que é a música dele. A pianista Mónica Cosachov assinala: ‘Sua música é muito passional, cambiante, com partes muito sentimentais… de repente, toda a força rítmica, todo esmagamento, todas as rusgas do temperamento expostas, e, depois, a melodia que comove a alma, que o leva a outro lugar, a locais melancólicos de Buenos Aires, ao rio. Em sua música tudo se mescla’. Segundo Rodolfo Achourron, destacado músico compositor argentino, o som de Piazzolla abarca ‘toda a gama de pathos, muito alegre, histriônico, sarcástico… dramático, sentimental, romântico, muito romântico’. O grande bailarino Maxiliano Guerra afirma: ‘A música de Piazzolla possui duas características: por um lado, a celestialidade e o angelical, e, por outro, a sensualidade e o mundano… Possui tudo… É uma magia’.
Adiós Nonino é a obra mais célebre de Piazzolla. Era assim, ‘Nonino’, em italiano, que Diana e Daniel, seus filhos, chamavam o avô. Em 1959, na República Dominicana, faltando alguns minutos para começar o seu recital, Piazzolla ficou sabendo da morte de seu pai na Argentina. Subiu ao palco em silêncio, tocou com a agonia de sempre, e, quando tudo terminou, voltou para casa, pediu para ficar sozinho e compôs o famoso tango. Esse fato significou o colapso de uma estrutura, a remoção de uma firme mão dominadora da qual Astor tinha plena consciência. Sua conduta pessoal tornou-se imprevisível: o matrimônio esfacelou-se, a relação com os filhos deteriorou-se e nunca mais foi reconstruída totalmente (uma ferida que Piazzolla levou consigo até a tumba). Sua vida só se estabilizaria em meados dos anos 70, com sua segunda esposa, Laura Escalada. O interessante é que os anos que transcorreram entre a morte de Nonino e seu ataque de coração, os de maiores dificuldades, foram precisamente o seu período mais produtivo. Liberado do mandato paterno pôde, então, combinar seu velho amor pela música clássica e jazz com o tango, e, finalmente, fazer a sua música. Buscando inspiração nos célebres concertos de Vivaldi, Piazzolla compôs As Quatro Estações Portenhas, entre os anos de 1964 e 1970, colocando nelas uma atmosfera latina, melancólica e vigorosa, assim como o próprio tango. Ele descreve através dessa música a forma de vida e as sensações dos portenhos nas quatro estações do ano: Primavera, Verão, Outono e Inverno.
Em 1968, Piazzolla estreou sua primeira parceria com o poeta uruguaio Horácio Ferrer e com aquela que seria a sua companheira durante sete anos, a cantora Amelita Baltar, na opereta Maria de Buenos Aires, que narra o nascimento e morte de Maria, figura feminina simbólica, cujo espírito dá à luz, rapidamente, uma segunda Maria; Ferrer explora no libreto cativantes estereótipos portenhos de todas as épocas. Piazzolla sempre recordava com orgulho uma ocasião, em que vários artistas brasileiros que se apresentavam em Buenos Aires (Vinícius de Moraes, Baden Powell, Elis Regina, Quarteto em Cy, Oscar Castro-Neves e outros) foram vê-lo na apresentação da opereta, e, ao término, o aplaudiram em pé, enquanto o restante do público permanecia sentado. Vinícius de Moraes lançou, então, sua expressão habitual de aprovação, bastante comum entre os músicos: ‘Filho da puta!’. Depois, Piazzolla lhe confidenciou: ‘É a coisa mais linda que já me disseram em minha vida’. Logo após, compôs Tangazo para Ignacio Calderon, interpretado pelo Ensemble Musical de Buenos Aires, Tango Seis para o Melos Ensemble, e Milonga em Ré para o famoso violinista italiano Salvatore Accardo. Dentre elas, a mais famosa é Tangazo, uma obra notável. Com densa partitura e sem bandoneón, ela se inicia com um lento fugato dos contrabaixos; as cordas vão surgindo pouco a pouco como um leque se abrindo e, logo após, as madeiras invertem o tema principal e o desenvolvem; um oboé introduz uma nova melodia nostálgica, reforçada pelo tutti da orquestra, e o contrapõem algumas passagens de flauta; a peça parece encaminhar a um final de bacanal, porém termina em um surpreso pianíssimo. Essa obra foi um dos maiores intentos de Piazzolla para transformar o tango em música sinfônica.
Ao lado de Ferrer, Piazzolla compôs, também, canções com letras que tiveram algum êxito na argentina e um sucesso estrondoso em outros Países. É o caso de Balada para un Loco, que significou para ele a estreia na lista dos discos mais vendidos e das canções mais tocadas nas rádios. Essa canção representou para sempre uma linha divisória entre o tango anterior e o posterior a Piazzolla – representa, provavelmente, uma resposta latino-americana ao desafio dos Beatles, uma espécie de A Day in the Life argentino. Nela, Astor e Ferrer recordaram o ritmo de valsa cada vez mais acelerado que haviam escutado no filme Le Roi de Coeur; bastaram uns poucos ajustes no tempo de valsa para criar esse famoso clássico. Juntos, compuseram, ainda, um oratório encomendado especialmente pela televisão alemã: El Pueblo Joven (1971). O magnífico Concerto de Nácar (1972) foi composto no apogeu da criatividade de Piazzolla, com a participação do Noneto e o Ensemble Musical de Buenos Aires. Elogiada pelo público e crítica argentinos, essa obra apresenta uma magnífica construção em que o Noneto se funde com perfeição à orquestra – hábeis e delicados toques da percussão matizam o movimento lento, e um ostinato rítmico reforça o desenvolvimento do allegro final. Com o Noneto, passou a apresentar-se com certa frequência no Brasil, onde foi bem acolhido por músicos jovens, como Edu Lobo, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e Milton Nascimento.
Nesse mesmo ano, foi morar em Roma, e inspirado pelos ares da cidade, dedicou-se totalmente à composição. O resultado foi uma série de obras instrumentais breves: Libertango, Meditango (com fortes influências de Vivaldi), Tristango, Violentango, Amelitango etc., todas elas incluídas em seu primeiro disco italiano, com o título Libertango. Essas obras, em sua maioria, de grande vigor e ritmo espetacular, soavam diferente de tudo o que Piazzolla já tinha escrito, em grande parte por sua instrumentação. Parecia estar buscando uma nova sonoridade para captar seu novo público europeu, como havia sucedido com o jazz-tango para o público norte-americano. Foi, também, em Roma que gravou com Gerry Mulligan (1974) um disco que se transformaria em um ícone disputado, até hoje, em todo o mundo: Summit, que incluiu outro dos grandes clássicos do compositor argentino, Years of Solitude. Depois, trabalhou com os mais famosos artistas italianos como Mina, Milva, Modugno, entre outros, e, também, alguns dos mais prestigiados instrumentistas de jazz pediram a ele que compusesse obras especiais, tais como Keith Jarret e Chick Corea.
A partir de 1980, Piazzolla se enveredou para as orquestras sinfônicas e conjuntos de câmara, como também passou a compor trilhas sonoras para Marco Bellochio em Henrique IV, para Jeanne Moreau em Lumière, e para Fernando Solanas em Sur e Tangos: el Exilio de Gardel. Com Oblivion (de Henrique IV) chegou ao Prêmio Grammy. Os críticos comentaram que esse tango apresentava um de seus mais belos temas; Piazzolla chegou a concordar, algo raríssimo de acontecer, pois ele dificilmente admitia destacar algumas de suas peças. A música de Piazzolla para Lumière foi uma de suas grandes realizações para o cinema, e seus quatro movimentos (Soledad, Muerte, Lumière e La Evasión) constituem uma primorosa combinação de delicadeza e profundidade. Tangos: el Exilio de Gardel, com sua música mágica, pulsátil e energizante, constitui um afresco de histórias entrelaçadas de argentinos exilados em Paris; foi um dos grandes êxitos do Novo Cinema Argentino da década de 1980. Este movimento, lamentavelmente efêmero, fazia parte da efervescência cultural que acompanhou o retorno da Argentina à democracia.
Piazzolla, em 1988, gravou com Lalo Schifrin e a St. Luke’s Orchestra o Concerto para Bandoneón, Três Tangos para Bandoneón e Orquestra e a Suíte Punta del Leste. O primeiro movimento do Concerto para Bandoneón é um allegro bem marcado, com uma pulsação rítmica plena de acentos e inflexões, lembrando o compositor tcheco Martinu, pela sua palpitante riqueza percussiva. O segundo movimento é o mais intenso e pessoal: ele desenvolve em seu bandoneón um de seus típicos temas, em um clima harmônico que recorda um coral. O último movimento, semelhante a um rondó, surpreende pela repetida utilização do guiro (instrumento semelhante ao reco-reco) e o abuso do glissando nos harmônicos. Para a maioria dos aficionados, a música da Suíte Punta del Leste
é, provavelmente, mais satisfatória e inspirada na parte melódica que a do Concerto para Bandoneón. No movimento intermediário, que evoca o som de um harmônio dentro da linha luminosamente esboçada do coral, Piazzolla se aproxima do ápice de seu estilo mais meditativo. ‘Às vezes, fico imaginando como Bach o tocaria’, comentou mais tarde, e acrescentou que tal movimento sintetiza a evolução da música eclesiástica ‘desde a Idade Média até o século XIX, com um pouco de Canto Gregoriano, e alguns momentos hindemithianos…’ Também, os outros movimentos apresentam o seu encanto, em especial a fuga final, com suas justaposições intermitentes de bandoneón e sopros. Em Três Tangos para Bandoneón e Orquestra, o segundo movimento corresponde a uma reminiscência da Milonga Triste (1936) de Sebastián Piana, e o terceiro apresenta uma impressionante exibição de imaginação e poderio rítmico, semelhante à Sinfonia em Três Movimentos, de Stravinsky. Em 1989, com o Kronos Quartet, ele interpretou a suíte intitulada Five Tangos Sensations, sua última gravação em estúdio. A obra é uma derivação de Sette Sequenze, uma música para bandoneón e cordas, que havia escrito em 1983 e gravado nesse mesmo ano, em Munique, com um quarteto com membros da grande orquestra. O tango da ‘Velha Guarda’ ainda sobrevive em exibição nos suntuosos salões de dança, como uma espécie de souvenir exagerado das primeiras décadas do século XX. Gardel sempre é lembrado carinhosamente, e, em 1995, cerimônias repletas de lágrimas em seu túmulo, no cemitério Chacarita, em Buenos Aires, marcaram o 60o aniversário da sua morte. Em Nova York, os edifícios de apartamentos da Nona Avenida Leste e da Praça São Marcos, local onde Astor Piazzolla passou a sua infância, ainda se encontram intactos, mas sem placas de bronze para lembrar o mais famoso solista de bandoneón conhecido e o criador do ‘Tango Novo’. Entretanto, deixou sua marca em um mundo musical muito mais amplo, em que ele representa, cada vez mais, uma figura respeitada e amada.