Opinião: OS SINTÉTICOS, OS ANALÍTICOS, EU E VOCÊ

Discos do mês: DOIS CLÁSSICOS ERUDITOS & UM CLÁSSICO DO ROCK
setembro 16, 2019
HI-END PELO MUNDO
setembro 16, 2019


Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Todos temos nossas crenças e centenas de perguntas sem respostas. E, no fundo, se não nos policiarmos, sempre desejaremos que o mundo todo caiba em nossas teorias e desejos. Tenho que voltar ao tema do Opinião do mês passado, em que falamos da ‘teoria’ da curva de audição individual, mas agora avaliando uma outra vertente do mesmo tema: o ouvido dos sintéticos e analíticos.

O físico e matemático alemão, Hermann Von Helmholtz (1821 – 1849), descreveu em seu livro Sobre As Sensações do Tom como uma Base Psicológica da Teoria da Música, que as diferenças da percepção humana com relação a audição são que existiriam dois grandes grupos, que seriam os Sintéticos e os Analíticos.

Os Sintéticos teriam a tendência de ouvir mais as fundamentais e os Analíticos mais os harmônicos. Essa teoria caiu em ostracismo até que o Dr. Peter Schneider, responsável pelo Departamento de Biomagnetismo da Universidade de Heidelberg, resolveu realizar diversos estudos para comprovar que a percepção auditiva do homem pode ser extremamente distinta de um indivíduo para o outro.

Até aí, nada absolutamente de novo em relação à centenas de estudos sobre a percepção auditiva humana, de que cada indivíduo percebe distintamente tons e sons. O que o Dr. Peter Schneider quis mostrar com seus estudos é que suas conclusões deveriam servir como fonte de orientação para a produção de produtos desenvolvidos para cada um desses dois grupos, e disponibilizou até exames para cada um descobrir se tem uma percepção sintética ou analítica.

Foi a deixa para que muitos saíssem utilizando esta teoria como parâmetro para defender que, como cada um escuta diferentemente, não é possível haver consenso entre um distinto grupo de ouvintes em relação a um produto ou sistema. E um dos autores que defendem esses estudos (talvez empolgado com as avaliações do Dr. Schneider), ‘ufanisticamente’ defende em seu artigo que, com tamanha descoberta revolucionária, foi “realizada uma pesquisa entre os dois grupos, quanto à preferência de marcas de equipamentos como: receivers, caixas acústicas, toca-discos, CD-Players, integrados, e que se chegou a resultados surpreendentes”. Assim, uma certa marca de caixas acústicas atende ao grupo dos Sintéticos e atualmente existem produtos para todas as faixas de gradação de Sintéticos como de Analíticos!

UAU!

E para fechar com chave de ouro, ele nos informa que revistas especializadas em áudio também aplicam o teste para os candidatos a Revisores Críticos de Áudio, para saber se eles estão aptos ou não para o cargo. E termina sua conclusão com a seguinte frase: “O alcance destas descobertas trará uma grande mudança no marketing (ué, já não está ocorrendo, segundo sua constatação acima?) e no projeto de equipamentos de áudio, cuja extensão ainda não dá para visualizar totalmente hoje”.

Antes de iniciar minha explanação, volto a lembrar que cada um pode acreditar, defender e se expressar como desejar. E ninguém tem nada com isto. Mas apresentar como uma ‘descoberta revolucionária’ me parece algo bastante prematuro.

Então vamos às perguntas que não querem se calar: por que o autor da matéria não apresenta que o próprio Dr. Schneider disse acreditar que ambos os grupos podem aprender a ouvir as fundamentais (no caso dos Analíticos) e os harmônicos (no caso dos Sintéticos)? Minha resposta é óbvia: se fosse citado este ‘pequeno detalhe’, todo o peso da ‘descoberta revolucionária’ viria ao chão!

Outra questão: se realmente foi realizada essa pesquisa pela indústria de áudio, com ambos os grupos, por que não foi publicado em nenhuma revista especializada, de economia ou de neurociência, afinal seria uma pauta e tanto de interesse em vários segmentos, e com inúmeros desdobramentos em diversas áreas!

E, por fim, mas tão relevante quanto: que revistas de áudio aplicam o teste para a escolha de seus futuros RCA (Revisores Críticos de Áudio)?

Certamente tamanha descoberta deveria vir recheada de argumentos e fatos, e a possibilidade de entrevistas com os projetistas que estão aplicando todo este novo conhecimento no desenvolvimento de seus produtos.

Senhores, vivemos realmente tempos muito sombrios, pois a humanidade nunca avançou tanto em diversas áreas essenciais para o desenvolvimento humano e, no entanto, vivemos ainda consumindo uma série de conclusões apressadas, e pseudocientíficas.

A resposta às minhas três indagações é que o estudo do Dr. Schneider é apenas um estudo com seu interesse limitado ao círculo acadêmico, pois o próprio autor descobriu que a capacidade do ser humano de aprender e ampliar sua percepção auditiva permite que um indivíduo que nasceu em um determinado grupo, se desejar, possa fazer em qualquer momento a transição para o outro grupo.

Então não há nenhuma descoberta bombástica na forma como eu, você e todos que não possuem deficiência auditiva grave e degenerativa, podem desenvolver sua percepção auditiva e aprender a reconhecer o certo do errado!

Mas, buscando sempre apresentar em nossas opiniões, materiais que possam ser utilizados por todos que desejam ampliar sua percepção auditiva, este mês proponho um desafio bem interessante: descobrir a sonoridade de todos os instrumentos que solam na obra Bolero, de Ravel.

Acredito que muitos (entre os mais velhos), saibam em detalhes todos os instrumentos solistas nesta obra, mas ainda assim descobrir o timbre de cada instrumento e perceber como Ravel trabalhou tão brilhantemente a sequência de solos é um desafio sonoro extremamente prazeroso!

Para ajudar aos que nunca ouviram com tamanha atenção esta obra, que leiam e acompanhem o áudio da matéria publicada por Antonio Cueto Jr, postado em 17 de julho de 2012, em que o autor nos mostra com absoluta precisão o histórico de cada um dos instrumentos solistas. Bolero foi escrito por Maurice Ravel (1875 – 1937) para a dançarina Ida Rubinstein, e sua estreia ocorreu em 1928. Era uma obra com menos de 20 minutos, que se passava em uma taberna na Espanha e que a dançarina animada com o crescendo dinâmico, mostrava todas as suas habilidades sobre uma mesa. Ravel decidiu que a obra teria uma melodia em duas partes, que ele chamou de A e B, e ambas repetem várias vezes. Em um crescendo que começa no pianíssimo e vai até o gran finale em um fortíssimo. E a cada repetição da melodia, um novo instrumento solo (ou vários) apresenta os temas A e B. A parte rítmica não se altera enquanto os instrumentos vão sendo apresentados, o que coloca o público em total catarse com a obra, do começo ao fim.

John Singer Sargent: El Jaleo

Então vamos iniciar esta jornada até conhecer todos os instrumentos solistas.

O primeiro instrumento solo é a flauta, seguida pelo clarinete em Si Bemol, fagote que toca pela primeira vez a segunda parte da melodia (a parte B). O que é interessante é que a escolha de Ravel por todos os primeiros 5 instrumentos solistas foi por instrumentos da família das madeiras, mudando somente no sexto instrumento solo (já, já chegamos lá).

O quarto solista é o clarinete em Mi Bemol, que repete a segunda parte da melodia (parte B). Aqui, o leitor atento já deve ter notado as diferenças entre o clarinete em Si Bemol e o em Mi Bemol. É que a orquestra emprega 4 tipos de clarinete (Lá, Si bemol, Dó e Mi bemol), fora o clarone (o com som mais grave de todos da família do clarinete).

O quinto solista é o Oboé D’Amore, que na verdade é um parente do oboé, afinado em Lá. O D’Amore possui um timbre um pouco mais grave do que o oboé tradicional, e é muito utilizado em obras musicais do período Barroco. Nesta obra, Ravel utilizou os três oboés e também o corne inglês, mas não nos solos individuais.

E, finalmente, repetindo pela segunda vez o tema A, ouvimos um instrumento da família dos metais junto com um da família das madeiras: trompete com surdina e flauta.

O sétimo solista, voltando ao tema A, é o saxofone tenor. Ravel utilizou nesta obra três tipos de saxofone: sopranino (o menor de todos dos saxofones), o soprano e o tenor. E ambos (sopranino e soprano) solam o tema B na sequência do sax tenor.

O leitor que possua um sistema com excelente equilíbrio tonal, textura e dinâmica, irá se maravilhar com as nuances e diferenças no timbre dos três saxofones, assim como a precisão (se o sistema permitir) no foco e recorte na apresentação do trompete com surdina e da flauta.

A partir da volta ao tema A, na nona entrada do solista, Ravel complica a vida de todos nós, pois aqui não será um solista, mas quatro! Trompa, 2 flautins e celesta (instrumento que está entre o piano e o cravo). Aqui Ravel brinca com os nossos ouvidos e mostra toda sua genialidade em arregimentação e conhecimento dos timbres dos instrumentos. Imaginamos que a trompa fatalmente iria dominar o solo com seu timbre e isto não ocorre, pois Ravel brilhantemente aplica as frequências harmônicas dos quatro instrumentos soando juntos, para não deixar a trompa se sobressair! O segredo foi colocar instrumentos agudos (2 flautins) justamente por cima dos harmônicos da trompa, alterando seu timbre!

A trompa toca a melodia em solo em Dó Maior, a celesta toca as mesmas notas uma oitava acima (1 harmônico) e duas oitavas acima o (3 harmônicos). O primeiro flautim toca as mesmas notas uma oitava e meia, e o segundo flautim duas oitavas e meia, acima da trompa.

O detalhe é que, se os instrumentos mais agudos que a trompa (flautins) não tocarem suavemente, o efeito será catastrófico (aí, o leitor pode ter uma ideia exata de como o maestro é essencial, para fazer soar corretamente essas ‘pontuações’ feitas pelos compositores em suas obras).

Querendo desafiar quem realmente conhece todos os instrumentos de uma orquestra, Ravel vai ainda mais longe. Na décima entrada dos solistas a repetir a melodia A, misturando: oboé, Oboé D’Amore, corne inglês e dois clarinetes.

Quantos sistemas ditos hi-end conseguem reproduzir com precisão, foco, recorte e arejamento esta décima entrada? E quantos de vocês leitores reconhecem esses quatro instrumentos tocando em uníssono e conseguem memorizar esta composição de timbres?

Sabendo que inúmeros ouvintes ficaram desconcertados com suas ‘pegadinhas’, Ravel alivia e coloca um único instrumento solo na décima primeira entrada novamente no tema B. O trombone, produzindo glissandos que enchem a sala de audição (e nas melhores gravações desta obra) permitindo ouvirmos até o rebatimento nas paredes se a gravação captou corretamente este solo.

Aí Ravel muda o crescendo e, na décima segunda entrada, ainda no tema B, coloca grande parte da família de madeiras: duas flautas, dois flautins, dois oboés, um corne inglês dois clarinetes e um saxofone tenor. Neste crescendo, percebemos no final deste décimo segundo solo, a entrada pela primeira vez do tímpano, reforçando a parte rítmica.

Voltando ao tema A, eis que surge pela primeira vez os primeiros violinos em conjunto com duas flautas, um flautim, dois oboés e dois clarinetes. Como o seu sistema está se comportando? E sua atenção? Você consegue ouvir o todo do tema A e, ao mesmo tempo, reconhecer cada um dos instrumentos solo?

Na décima quarta entrada, repetindo o tema A, temos: primeiros e segundos violinos (o que faz o corpo sonoro da orquestra crescer vertiginosamente), com os seguintes instrumentos de sopros: duas flautas, dois clarinetes e dois fagotes.

Seu sistema comporta este crescimento da massa sonora?

Ou você já teve que começar a baixar o volume?

Na mudança do tema para B na décima quinta entrada, temos: violinos (primeiros e segundos) e duas flautas, um flautim, dois oboés, um corne inglês e um trompete. Preste bem atenção, amigo leitor: quando o tema B caminha para as notas mais graves, o flautim (por não alcançar essa oitava mais baixo) é substituído pelo clarone, o trompete pela trompa e os segundos violinos pelas violas!

Seu sistema te apresenta com total inteligibilidade estas passagens?

E, finalmente, na repetição do tema B pela décima sexta vez, temos a entrada dos cellos acompanhados dos violinos (primeiros e segundos) e violas mais os sopros: duas flautas, flautim, dois oboés, corne inglês, dois clarinetes, trombone e saxofone soprano. Aqui, pelo o salto na dinâmica, se o seu sistema não tiver folga, você já terá ajustado o volume para baixo uma ou duas vezes (só os que possuem enorme folga, não terão que ser reajustados o volume para baixo).

Na última apresentação da seção A , na décima sétima entrada, temos como solistas os primeiros violinos, duas flautas, um flautim, três trompetes, um trompete pícolo, saxofone soprano e saxofone tenor. Aqui Ravel nos prepara para o gran finale, não repetindo pela última vez o tema completo A e nem o B. No tema B, pela última vez, temos: primeiros violinos, duas flautas, um flautim, três trompetes, um trompete pícolo, um saxofone soprano, um saxofone tenor e um trombone.

E o tema B é interrompido quando chega na parte dos graves, deslocando o tema para um Mi Maior. E quando retorna a Dó Maior, os instrumentos de percussão entram: bumbo, pratos e tam-tam. E chegamos ao apoteótico finale! Claro que falamos da parte melódica A e B do tema, mas não podemos esquecer das cordas em pizzicato e da caixa do começo ao fim marcando o ritmo para a melodia fluir. Toda essa descrição minuciosa, solo a solo, meu amigo, foi para descrever que a nossa capacidade em aprimorar nossa percepção auditiva/musical, depende exclusivamente de nosso interesse.

E aprender a reconhecer todos os instrumentos de uma orquestra, e ouvir como esses instrumentos soam em nosso sistema, não dependem de avaliação de curva de resposta de nossa audição ou descobrirmos se pertencemos ao grupo de Sintéticos ou Analíticos, ou a qualquer teoria que venham a apresentar a vocês.

Nossa capacidade de aprender a ouvir é infinita, acreditem! E se tivermos referências de instrumentos acústicos armazenados em nossa memória auditiva, seremos capazes de reconhecer imediatamente todas as virtudes e limitações de qualquer sistema de áudio. E podemos fazer este reconhecimento solitariamente ou coletivamente (desde que todos estejam aptos a reconhecer o que está se propondo a escutar).

Todas essas teorias só querem confundir você, e geralmente são formuladas por indivíduos que não conseguiram ajustar adequadamente seus sistemas, esta é a verdade nua e crua!

Mas um exemplo, como sentar para ouvir Bolero de Ravel e reconhecer cada um dos instrumentos solos, coloca por água abaixo essas teorias, pois mostra que todos podem saber e reconhecer a diferença de timbre entre violinos e violas, corne inglês e oboé, flauta e flautim.

E que diferença irá fazer se você escuta mais decaimento em uma nota de um determinado instrumento, ou se escuta mais a fundamental do que os harmônicos dos instrumentos, desde que você os conheça? Nenhuma diferença. Mas se você conhece a sonoridade dos instrumentos e percebe que algo soa ‘artificial’ em uma reprodução eletrônica, você está no caminho certo. Pois você criou um ‘norte’, você possui uma Referência Segura, e ninguém pode retirar este conhecimento de você.

Uma obra como a Bolero de Ravel, sozinha, é capaz de lhe dar inúmeros parâmetros de qualquer sistema de áudio. Você poderá avaliar dinâmica (micro e macro), transientes (precisão rítmica da reprodução), texturas (no uníssono de vários instrumentos na repetição do tema A e B), corpo harmônico (na entrada das famílias de instrumentos), palco (foco, recorte e arejamento), e essencialmente o equilíbrio tonal (pela inteligibilidade do timbre de cada um dos instrumentos solos).

E, felizmente, a quantidade de boas gravações desta obra é grande. Evite apenas aquelas muito arrastadas (as versões variam de 13 a 19 minutos). Mas indicarei apenas uma: da gravadora Telarc, em SACD, com o maestro Paavo Järvi e Orquestra Sinfônica de Cincinnati. Se o seu sistema não tocar esta versão, seu sistema, meu amigo, não ‘chegou lá’. Pois é uma reprodução ‘pêra doce’, sem nenhuma dificuldade para um sistema com os oito quesitos da metodologia bem corretos. Pode espernear, e criar todas as teorias possíveis para justificar seu sistema não reproduzir corretamente esta gravação, que não vai colar!

Agora, se você realmente deseja dar um salto em seus conhecimentos e em sua percepção auditiva, comece por fazer o certo: reconhecer como os instrumentos soam e ouvir obras que coloquem seu sistema à prova. Se seguir esta regra óbvia, o tempo perdido com teorias e baboseiras terá chegado ao fim. E todo seu esforço terá valido cada suor, tempo e dinheiro colocado neste hobby!

Conheça os dois sites utilizados como fonte de pesquisa e tenha a experiência de ouvir, separadamente, cada instrumento utilizado em bolero de Ravel:

https://espacoartemonica.wordpress.com/2015/08/02/o-bolero-de-ravel-na-sala-de-aula/

Ouça a faixa do CD Ravel: Daphnis et Chloé – Suite No. 2 / Pavane pour une infante défunte / La Valse / Ma Mère l’Oye / Boléro, no Spotify:

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