Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br
Uma suposta ‘intolerância musical’ quer ser substituída por uma intolerância a gostos e ideias. Não só parece que não se pode mais falar que não se gosta de um gênero musical, é preciso também ‘amar’ todos os gêneros – senão você é uma ‘má pessoa’, e o ‘tolerante’ que está do outro lado, fica se sentindo moralmente superior.
João só gosta de hambúrguer. José só gosta de pizza. João não tem cinco anos de idade, ele sabe que se ninguém mais gostar de hambúrguer no mundo, não altera nada pra ele, pois ele é seguro de seus gostos e ideias, como todo mundo devia ser, e ele sabe que José pode também odiar hambúrguer ao ponto de andar com uma camiseta com isso escrito na frente. Isso seria o normal, não é?
Aparentemente existe um movimento hoje em dia procurando validar toda e qualquer música ‘na marra’ – não existe, segundo algumas pessoas, música ruim, apenas a música que se gosta. E aí todo mundo que tem uma vivência musical maior, um conhecimento de como a música é feita, de sua estrutura, da técnica para tocá-la, não pode mais emitir opinião sobre isso – todo mundo é ‘feito de açúcar’ e está na chuva, ninguém pode ser contradito, não se pode mais apontar erros ou desconhecimentos. Tudo nivela-se por baixo. Quem tem conhecimento, vira esnobe…
No vendaval de abobrinhas que está sendo a validação da baixa qualidade musical – e da baixa qualidade de gravação – estão
dizendo que qualquer faixa de qualquer disco pode ser usada como faixa de teste. Bom, vamos lá, em mais uma simples analogia (eu faço analogias com comida porque todo mundo come e a maioria gosta de comer, não é porque eu sou um glutão…). Digamos que você vá fazer um kibe assado, e você diz que precisa de carne moída de primeira, e vem uma pessoa que não tem conhecimento, estudo e nem educação de seu paladar, e diz que você é um esnobe, que faz ela se sentir mal com a carne moída sebenta de terceira dela, que você não tem esse direito, que ela defende todas as carnes (menos a sua, no fundo, porque ela não a conhece, não a entende, e nem quer entender).
Eu nunca ditei o que ninguém tinha que ouvir. Eu sugiro, apenas. E cada um ouve o que gosta. Mas não pode chegar ao ponto de profissionais da área de áudio dizerem que qualquer música, qualquer faixa que você gostar da música, serve como teste – porque isso está longe da verdade. Quer um kibe assado hi-end? Use carne moída hi-end. Claro que o objetivo de um sistema de áudio top é que ele toque quase qualquer nível de qualidade de gravação, de uma maneira mais do que decente, para que todo mundo possa usufruir de todos os discos que o agradem musicalmente, ainda que muitos com qualidade de gravação sofrível. A busca é por essa ideia – isso é o Santo Graal! Mas daí pra dizer que qualquer coisa, qualquer música, qualquer disco, serve para avaliar um sistema e fazer seu acerto, seu casamento, sua sinergia, é querer distorcer o mundo demais para que ele passe a caber em conceitos tortos.
Não se pode mais dar opiniões que tenham embasamento em conhecimento e vivência – pois isso ‘ofende’ as pessoas que não tem esse embasamento e vivência. Bom, eu fui ensinado pelos meus pais e pelo meio onde cresci a aprender com quem sabe mais, e a entender o ponto de vista de quem tem vivência e conhecimento, e com isso rever os meus! Eu tenho que me adaptar ao mundo, e não o mundo se adaptar a mim!
Existem dois fatos a serem pensados, com intuitos diferentes. Primeiro: sim, existem muitos discos mal gravados, e eu acho que deve-se procurar o melhor equipamento para se fazer o melhor proveito desses discos – para quem os aprecia musicalmente – pois só o equipamento mais sinérgico, mais tolerante e com mais folga técnica, orgânica e musical é que vai tocar melhor esses discos. Mas não se pode fazer esse equipamento, não se pode montá-lo e avaliá-lo com esses discos, pois seria como fazer uma roupa sob medida torta para alguém que anda torto, em vez de ensiná-lo a andar reto.
Segundo: existe, sim, música ruim. Música de má qualidade, com arranjos pobres, com interpretações com técnica no mínimo duvidosa, com instrumentação de mau gosto. E, infelizmente, a maioria dessas músicas ruins, está no âmbito dos gêneros populares – são repetitivas, pobres, barulhentas, desagradáveis e nada adicionam. Não vou julgar a música de ninguém – meu papel na minha coluna Discos do Mês é de sugerir música de qualidade em gravações de qualidade, para pessoas com discernimento, que tenham interesse em expandir sua discoteca e seu conhecimento. O que cada um ouve, é seu, pessoal – cada um na sua! Mas eu tenho conhecimento e vivência o suficiente, na minha área, no meu trabalho e no meu hobby, para fazer julgamentos gerais, como este texto aqui, e julgamentos específicos como minhas sugestões de discos.
Um avaliador de um sistema ou de um componente, que escreve para uma revista ou site de áudio, não pode avaliar essas coisas usando só a música que ele gosta – é um pensamento extremamente simplista e incrivelmente errado o de que você deve avaliar e acertar o sistema com todo e qualquer disco que lhe agrade a música, com aqueles discos que são sua preferência, sem observar critérios qualitativos. Pois a música de avaliação, as faixas e discos de teste de boa qualidade, são a segunda maior ferramenta de avaliação – a primeira são os ouvidos, que ainda não foram substituídos por medição alguma na face deste planeta. As faixas de teste possuem qualidade sonora para deixar claros todos os aspectos pelos quais conheceremos como aquele aparelho se comporta, quais são seus pontos fortes, seus limites, suas fraquezas – é como usar uma lente de aumento ou um microscópio para avaliar como algo é. E uma faixa mal gravada é como uma lente fosca e fraca: não vai te dar todas as informações e não vai te dar todo o entendimento. O resultado? Informações errôneas, compras erradas, upgrades incertos, e ainda menor entendimento do sistema, de áudio e do hobby.
Além disso, certos gêneros musicais são necessários para uma visão total da capacidade de um aparelho – e isso inclui a boa habilidade dos músicos que o tocam, já que tentar entender a intencionalidade de um mau músico, um mau intérprete, é um tipo muito especial de perda de tempo. Um exemplo do que não se deve fazer é usar somente voz feminina para se avaliar ou acertar um sistema, pois é óbvio que isso limita seu conhecimento da qualidade sonora daquele sistema ou componente – simplesmente por não haver informação suficiente e clara sobre os extremos: as frequências mais graves e as mais agudas. Outro tipo que não se deve usar é a música eletrônica moderna, por vários motivos, sendo o principal: os graves de uma batida eletrônica têm pobreza de textura e recorte, além de tamanhos, intensidades e harmônicos irreais – nesse caso fica óbvio que você não tem como saber qual a real qualidade e correção e precisão de seu aparelho. Não estou dizendo que não deve ouvir música eletrônica – eu ouço várias – mas que não dá para avaliar, não dá para afinar, e não vai realizar o potencial de seu sistema.
Outra falácia que eu ouvi recentemente é que a música é que deve fazer o sistema tocar bem, e não o sistema fazer a música tocar bem. Isso foi usado em uma justificativa para o uso de qualquer música para testes, avaliações e afinação do sistema. Primeiro, quem falou isso não se tocou que usou em contradição, já que uma música mais bem gravada, e não qualquer disco ou gênero que se goste ou se tenha em casa, é que obviamente vai fazer o sistema tocar melhor. Ao mesmo tempo que um sistema melhor, todo mundo sabe, todo mundo viu e ouviu, faz o disco tocar melhor (se for sinérgico e bem acertado) – daí a necessidade de uma boa avaliação do mesmo, para se fazer uma boa compra, uma boa escolha.
Qual seria a conclusão séria e não-simplista? Precisa-se de boas gravações para avaliar, montar, conhecer e afinar bons sistemas – a não ser que a busca, de alguns, tenha como cláusula pétrea a necessidade de validar o que se gosta de música a qualquer custo, usando, a título de metodologia, a ideia de que o mundo é que tem que se adaptar à pessoa.
Outra patacoada que me chegou aos ouvidos, é que não existe meritocracia na música, que quem pensa que tem mais bom gosto ou um gosto mais refinado, está errado. Uau! Nada como realmente nivelar as coisas por baixo! Ao transportar esse mesmo tipo de pensamento pequeno, tacanho e tosco para outras áreas, o resultado seria que não tem comida melhor ou pior, carro melhor ou pior, filmes melhores ou piores, roupas mais bem feitas ou mal feitas – no ponto de vista acima citado, tudo é igual, e quem falar que alguma coisa é melhor porque se informou, aprendeu, conheceu, educou-se, lapidou e reviu seus conhecimentos e idéias, seria alguma espécie execrável de ‘elitista’. Ou seja, você melhorar o que você é e o que você sabe, passou a ser algo ruim.
O que é bom virou ruim – o que é ruim virou bom. É uma inversão de valores estúpida, vinda provavelmente de alguém com preguiça de aprender e de melhorar, alguém com grande chance de ter um mau gosto musical. Para que melhorar se essa pessoa pode simplesmente esperar que o mundo se adapte a ela, ou utilizar-se de um expediente de baixo caráter, declarando os valores simplesmente como invertidos?