Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br
Se o mundo do áudio, especialmente o hi-end, a audiofilia, é um grande faroeste – sem lei, sem ordem, e com um tiroteio sem fim –
então o mundo do streaming, da alta-resolução (hi-res) e do lossless seria uma nova filmagem dos Sete Homens e um Destino no espaço sideral – com trilha sonora grandiosa do Elmer Bernstein em multicanal 3D!
Primeiro é preciso entender que o mau uso de certos conceitos de áudio e de streaming, é abraçado por alguns profissionais da área como uma espécie de plano de marketing agressivo – um que faria inveja às facas Ginsu e meias Vivarina, da propaganda ‘sem fim’ que costumava passar na TV, que dava a ideia de que as facas Ginsu cortavam qualquer coisa, até porta-aviões, mas não conseguiriam cortar as meias Vivarina, ‘inquebráveis’, criando um paradoxo espaço-temporal que quase destruiu a humanidade! Só que não…
No outro lado da mesma moeda, os diletantes de áudio tiram a conclusão que querem, abraçando a saída fácil, que é a de que especificações e definições técnicas, medições e gráficos, dizem como algo toca – no caso: a especificação de alta-resolução, o
Hi-Res, com adesivinho amarelo e tudo, seria a solução de todos os problemas de um sistema de áudio com foco no digital e streaming como fonte.
E nosso editor, Fernando “Amigo-Leitor” Andrette, no meio do ringue, magro do jeito que ele é, briga com unhas e dentes para que os audiófilos entendam que nada substitui o uso do ouvido para avaliar e entender um sistema de som, e que nenhum sistema ou equipamento de áudio atinge seu melhor resultado baseado em uma coisa só (como um transformador grande, o uso de capacitor de ‘couro de lobisomem’, especificação de compatibilidade com áudio Hi-Res, ou seja lá o que for).
E dois dos fatores que estão sendo vendidos como ‘definitivos’ para se saber a qualidade sonora de uma fonte digital são: Hi-Res e Lossless. Só que essa é a questão errada, na minha opinião. Há uma inversão de valores.
As perguntas certas seriam:
“Como são implementadas tais tecnologias?”
“Como é o resultado final, a qualidade sonora musical com o uso de tais tecnologias?”
A resposta, descobri depois de todos esses anos e experiências na área de áudio, só pode ser obtida com o uso de alguns expedientes:
1) Usar sistemas e equipamentos que sejam reconhecidamente corretos e equilibrados tonalmente. 2) Ter algum tipo de critério de avaliação de qualidade sonora, vulgarmente chamado de “Metodologia”. 3) Usar para a avaliação definitiva os ouvidos educados por critérios como os definidos acima. É como um restaurante, onde a única maneira na face da Terra de saber se a comida é boa, é provando-a, usando seu paladar.
Bom, voltemos ao começo, com algumas definições e explicações:
Lossless. Algo ser ‘lossless’ em áudio digital significa que o conteúdo originalmente disponibilizado não foi alterado por sistemas de compressão usados para diminuir o tamanho do arquivo para fins de armazenamento, download ou transmissão via algum serviço de streaming. Ou seja, um arquivo comprimido é menor, e portanto vai fazer download mais rápido ou usar menos banda de internet quando transmitido por um serviço de streaming de música. Os formatos de arquivos de música com perdas, ou ‘lossy’ (antônimo de ‘lossless’) mais conhecidos são MP3 (velho conhecido de todos) e o AAC, Advanced Audio Coding, sendo este último amplamente utilizado pela maioria dos serviços de streaming do mercado. Streaming, em sua versão mais simples é, portanto, ‘lossy’, ou seja, não é lossless. Tem perdas.
Existem opções melhores, ou o streaming de música é um caso ‘perdido’ com suas perdas?
Sim, existem opções melhores porque alguns serviços, como o Qobuz (que ainda não está sendo comercializado no Brasil) escolheu trabalhar com arquivos em formato Flac, que é efetivamente, lossless, já que o tipo de compressão que ele usa para diminuir o tamanho do arquivo, o faz mantendo a informação musical do arquivo intacta. Outros serviços, como o Tidal Masters, que é a versão de maior qualidade do Tidal, usa o formato MQA, inventado pela empresa inglesa Meridian Audio, e que anda envolvido em polêmicas técnicas sérias e alegações de que não teria como ser lossless, apesar de ambas empresas dizerem o contrário sem apresentar prova alguma. Um assunto ainda sem grandes conclusões…
Além desses, outros serviços estão começando a oferecer assinaturas de conteúdo de maior qualidade, como o Deezer HiFi e o
Spotify Premium, ambos alegando que o formato que utilizam nessas modalidades é o Flac (aquele que é lossless). E o mais recente participante do mundo do streaming de música de qualidade, a Apple, com o seu serviço Apple Music, que usará o formato ALAC (Apple Lossless) para prover streaming sem perdas. A Apple também promete que, ao passar a prover o streaming em um formato lossless, o fará sem custos adicionais aos assinantes – enquanto que todos os outros serviços cobram um preço maior por seu conteúdo lossless.
Alguns desses serviços que prometem entregar o conteúdo sem perdas, alegam que esse conteúdo também é em alta resolução –
Hi-Res. Aqui acontece uma confusão de marketing, onde ao anunciarem que entregam conteúdo lossless, muitos acham que é conteúdo hi-res. Acontece que sem perdas não significa hi-res – e, infelizmente pode ser que parte do conteúdo oferecido como hi-res por alguns não seja realmente sem perdas (como a discussão e alegações sobre o MQA, cuja celeuma está longe de receber um parecer definitivo).
Veja, só é algo com perdas quando o conteúdo for alterado por algum motivo, na conversão de formato para algum dos citados acima, ou no processo de transmissão, por exemplo. Portanto, CD é lossless, CD não tem perdas, porque seu conteúdo não foi alterado ocasionando perdas. Quando se converte um CD para MP3 ou AAC, parte do conteúdo é judiciosamente descartado, para poder ter o arquivo em tamanho tão pequeno – daí as perdas.
Digo isso porque aqui é importante não confundir algo que é ‘lossless’ com algo que é Hi-Res, que é alta resolução. Explico: um conteúdo em áudio só é considerado de alta resolução se o mesmo for de resolução mais alta que a do CD, que é 16-bit/44 kHz. Portanto, conteúdo que for real 24-bit/88.2 kHz, já é alta resolução – e daí pra cima!
Acontece também que nem todo conteúdo entregue como sendo lossless pelos melhores e mais caros serviços dos melhores provedores de streaming de música é, efetivamente, de alta resolução – alguns deles são apenas resolução padrão CD. E tem gente propagandeando esse streaming lossless como alta resolução, o que é um engano, para dizer o mínimo.
A alta resolução de uma gravação, a real alta resolução, depende exclusivamente de como o dito disco foi gravado. Por exemplo: a famosa gravadora americana Telarc nos brindou, no final da década de 70 e começo de 80, com algumas das melhores gravações de música clássica já feitas. Esses discos foram gravados em 16-bit/50 kHz – uma pequena diferença do padrão do CD, que ainda não havia sido lançado na época, mas que é característica de como era o gravador digital que eles utilizavam, o SoundStream. Você pode pegar esse formato digital e convertê-lo para o que quiser, como foi feito anos depois, pela própria Telarc: foi convertido para DSD para a prensagem dos Super Audio CDs (SACD) do selo. Ele virou ‘alta resolução’ porque foi convertido? Não. O que manda no nível de definição de uma gravação é o formato no qual ela foi gravada, o formato nativo dela. E lembre-se que a maioria esmagadora do que foi gravado de 1980 para cá, o foi em digital, e durante mais de década o que havia disponível em estúdios não passava de 20-bit/
48 kHz, ou seja, pouco mais que o CD, e nada que possa ser chamado realmente de ‘alta resolução’. Se eu pegar um CD e converter para 24-bit/192 kHz, ele passa a ser alta resolução? Não, pois não se pode inventar definição onde ela não existe.
Mas e as gravações originalmente analógicas? Bom, essas, se a gravadora tiver acesso às fitas master de qualidade, e que estejam em bom estado, e tiver em mãos um bom equipamento, ela pode fazer uma transcrição, uma remasterização, direto do analógico para uma alta resolução, como por exemplo 24-bit/192 kHz (se o gravador digital permitir) e então esse remaster será efetivamente de alta resolução ‘real’.
Eu uso a palavra ‘real’ aí com muito cuidado, porque não basta um disco ou faixa de disco ser nominalmente ‘alta resolução’ se a gravação não tiver sido bem microfonada, bem captada, bem armazenada – seja em gravadores analógicos ou digitais. Ser de ‘alta resolução’ não significa ‘ter alta qualidade sonora’. Já ouvi muitas gravações em formato CD tocarem muito melhor do que outras em formato de alta resolução, simplesmente pelo fato de serem mais bem feitas.
Isso tudo é muita informação? Mais confunde do que ajuda? Ou dá variáveis demais, coisas demais para entender e digerir? Como você pode aplicar esse conhecimento? Simples, procure ter equipamentos de som de boa qualidade, que soem equilibrados e corretos, e neles use seus ouvidos de maneira crítica, e assim perceba qual serviço de streaming lhe dá os melhores resultados em qualidade sonora. Mas, como fazê-lo? Tendo paciência e critério (metodologia e referência) na montagem de seu sistema ou escolha de fones de ouvido, e educando seus ouvidos usando a maior de todas as referências: a música acústica tocada ao vivo não amplificada – onde você pode ouvir diretamente os instrumentos e a interação entre eles. Orquestras sinfônicas, pequenos grupos de instrumentistas, algumas apresentações de jazz, de MPB, em locais bem selecionados pelo bom critério de apresentação e de acústica. Já vi até barzinhos com ótimas apresentações, sendo que em um deles eu tomei bons aperitivos, concentrado em uma dupla que estava tocando piano e contrabaixo acústico a menos de 5 metros de distância de mim – perfeito! Se todos os audiófilos ouvissem um baixo acústico a 5 metros de distância, e prestassem atenção em seu corpo harmônico, facilmente poderiam perceber o quão real ou irreal são seus sistemas, especialmente os com fontes digitais.
Existe algum outro fator indicativo de qualidade, além de ser lossless e hi-res?
Sim, existe. Quando eu digitalizei meus discos, ou seja, guardei-os dentro do meu computador para usá-los como minha fonte digital, eu passei um tempo gigantesco procurando qual seria o melhor player, o melhor aplicativo, programa, para reprodução dos meus arquivos – e cada programa soa ligeiramente diferente, alguns piores e alguns melhores. Quando veio o streaming, e passei a usar meu smartphone como fonte (não só para audição com fones de ouvido), tive que fazer a mesma procura, ouvindo dezenas de apps diferentes para reprodução dessa biblioteca de arquivos, para escolher o melhor, mais orgânico, equilibrado e musical.
E logo, então, veio o streaming – que uso paralelamente ao meu acervo digitalizado. O que aconteceu é o previsível: cada serviço de streaming toca de um jeito. Mesmo os que usam o mesmo tipo de arquivo, tocam de maneira diferente. É importante entender que, quando a gravadora ou artista manda os arquivos dos discos de seus artistas para o serviços de streaming, é o mesmo arquivo que vai para todos os serviços – portanto, a razão para as diferentes sonoridades de cada serviço, é culpa de como o sistema e o software desse serviço é feito e operado.
Qual é, então, o melhor serviço de streaming?
O que tem que importar para o audiófilo melômano é a qualidade de som, a qualidade final que cada serviço de streaming provê. Aqui na revista, o melhor que ouvimos até agora é o Qobuz que, infelizmente, ainda não está disponível no Brasil. Em segundo lugar, ainda está o Tidal Masters, que pode ser assinado no Brasil.
Quanto aos serviços Deezer HiFi e Spotify Premium, que prometem streaming com formatos lossless, ainda não temos informações sobre seu nível de qualidade. E a mesma coisa se aplica ao Apple Music lossless, já que não sabemos se seu resultado final ‘peitará’ os concorrentes, como Tidal Masters e Qobuz.
É esperar, para ver – ou melhor, ouvir.