Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Este Opinião é quase que uma extensão do tema também abordado no Espaço Aberto deste mês, então sugiro aos interessados que leiam na sequência ambos, pois podem ampliar ainda mais a nossa compreensão sobre o quanto é complexo e cheio de ‘artimanhas’ avaliar o que ouvimos e interpretamos.
Surgiram no auge da pandemia diversos vídeos de músicos compartilhando ideias, workshops e até alguns como esse da cellista Wendy Law, comparando três instrumentos de preços muito diferentes (5000, 180 mil, e um milhão de dólares!), que tiveram até o momento mais de 50 mil visualizações.
Para que o leitor possa acompanhar meu raciocínio, será preciso assistir o vídeo todo, pelo menos duas vezes, sendo que se o amigo tiver dois bons fones de ouvido, que escute então três vezes (não é tão longo e a obra escolhida para o comparativo é o primeiro movimento da primeira Suite para Cello Solo de Bach, muito popular nos dias de hoje).
Vamos ao trabalho, caro Watson?
Primeiramente, ouça o vídeo todo em seu celular sem nenhum fone, ok?
Fiz esse teste com dez amigos (três músicos, e sete que apreciam música e até possuem um sistema de boa qualidade), e pedi que mandassem sua opinião sobre os três instrumentos, apenas assistindo o vídeo em seu celular sem o uso de nenhum fone de ouvido.
O resultado foi o seguinte: todos acharam o instrumento de 5 mil dólares com o pior timbre (alguns até acharam a sonoridade estridente). E cinco dos participantes preferiram a sonoridade do cello de 180 mil, do que o de 1 milhão de dólares!
Aí pedi para todos os participantes repetirem o teste escutando com o seu melhor fone de ouvido. O cello de 5 mil dólares já não pareceu ‘esganiçado’ para o participante que o tinha detestado, ainda que os dez o tenham achado o de pior sonoridade, e houve uma mudança entre o cello de 180 mil e o de 1 milhão de dólares. Quatro mantiveram a opinião de que a região média do de 180 mil dólares era mais ‘agradável’ aos seus ouvidos, e seis que o de 1 milhão de dólares era em tudo superior!
E para os que tinham ainda uma segunda opção de fone de qualidade superior, pedi que assistissem o vídeo por uma terceira vez (foram apenas 4 participantes), e todos nessa nova rodada preferiram em tudo o cello de 1 milhão de dólares (sendo que dos 4 participantes, dois ainda achavam na segunda rodada o de 180 mil superior).
E aqui começamos a descascar o abacaxi meu amigo leitor. Pois existem muitas conclusões que se pode tirar desse teste, e usarmos em muitas de nossas experiências diárias na busca do acerto de nossos sistemas.
Mas, antes de tudo, preciso que você também faça esse teste, como aqui indicado, e anote suas observações detalhadamente para que possa, depois, seguir nosso raciocínio e ver se concorda ou não com as conclusões que irei explanar.
Por mais que você ache razoável a sonoridade do falante do seu celular, você está ciente de suas limitações, certo? Então, ainda que as diferenças entre os três instrumentos não fiquem tão evidente no áudio de seu celular, se você se concentrar nas duas pontas da sonoridade do instrumento (nos graves e nos agudos), será possível ouvir que a sonoridade como um todo fica comprometida, à medida que a qualidade dos instrumentos se eleva.
Por isso que alguns dos participantes citaram que o timbre do primeiro cello, era feio. Isso é resultante de três fatores: a própria assinatura sônica do instrumento, resultando em um timbre mais brilhante que o normal, a baixa qualidade do áudio do seu celular (por melhor que ele seja) e pela escolha do microfone utilizado para a gravação do vídeo.
E neste caso, não tenho a menor capacidade de identificar que microfone foi usado, mas arrisco dizer que não foi o ‘ideal’ para se gravar um instrumento de timbre tão complexo como um cello, pois na minha opinião os três instrumentos de valores tão diferentes , ficaram com algumas características no invólucro harmônico e no decaimento das notas, com a mesma ’assinatura’, indicando claramente que o microfone utilizado não estava à altura dos dois instrumentos mais caros e muito menos do nível artístico da executante.
Como eu sei isso?
Por gravar o CD Timbre e ter feito esse exercício de aprendizagem na prática com ele!
Ali eu pude constatar o quanto o microfone errado padroniza justamente os elementos que mais precisamos escutar, para entender o nível de qualidade dos instrumentos e da qualidade técnica deles, e da qualidade artística dos músicos.
Imagino até que seja bem provável que esse vídeo tenha sido feito de forma bem caseira (já que estávamos no auge da pandemia), e reunir pessoas em um ambiente doméstico (como o que parece ser, pelo que vemos ao fundo do vídeo), era bem mais difícil. Então, aqui temos o primeiro elemento, meu caro Watson: de que as evidências nos levam a avaliar os resultados com certa ressalva!
Agora, façamos uma pausa com o que estamos trabalhando, e tragamos este exemplo para o nosso dia a dia, quando avaliamos e ouvimos sistemas e produtos. Sabemos que as novas mídias fazem uso de maneira muito efetiva de vídeos para avaliar e compartilhar produtos de áudio. E qualquer pessoa que curta o tema, pode produzir seus próprios vídeos e postar na internet e, se for carismático e persistente, pode em curto espaço de tempo se tornar um ‘formador de opinião’ com centenas ou milhares de seguidores.
A questão que sempre me pergunto, nesses casos, é: qual o grau de conhecimento e referências desses novos revisores midiáticos? Pois vejo coisas estranhas, como o sujeito ficar ao lado do produto, dando tapinhas nas costas do equipamento em teste, as vezes até os colocando no colo, e descrevendo o que observou, muitas vezes sem sair do lugar comum e, por fim, quem está assistindo não tem sequer a chance de ouvir um minuto o produto tocando algo.
Ou, ao contrário, o apresentador dá uma breve descrição do produto e passa a tocar algo que muitas vezes além de mal gravado, utiliza exemplos musicais dúbios e se percebe que o setup e as condições acústicas da sala são incompatíveis para a demonstração do produto.
Uma pausa, e voltemos ao tema central deste opinião.
Se o microfone usado para captar os três cellos fosse mais adequado, as diferenças seriam mais evidentes? Com certeza seriam, amigo leitor.
Mesmo no áudio do celular? Não tanto como em um bom fone de ouvido, mas algumas nuances já seriam perceptíveis.
Quais? Invólucro dos harmônicos, textura e mais detalhes de extensão nas duas pontas. E com o fone, essas diferenças se acentuariam de maneira bem mais audível. O que poderia facilitar para se entender se são grandes ou não as diferenças, para justificar um cello custar 180 mil dólares e outro 1 milhão de dólares!
Mas aí temos a segunda questão, meu caro Watson: Teríamos as mesmas observações se o músico fosse um estudante? Essa é a questão mais delicada e a mais elementar de todas que devemos fazer – e que muitos audiófilos se negam.
Não é por nascermos com um sistema auditivo perfeito, que estamos aptos a ouvir, reconhecer e entender diferenças, das mais
explícitas às mais sutis. É preciso observar, entender, lapidar e educar a nossa Percepção Auditiva, para poder reconhecer!
Assista ao vídeo mais uma vez, amigo leitor, e agora se concentre na execução da cellista. Observe suas mãos esquerda e direita, e perceba que sua digitação e até postura é diferente nos três instrumentos. Veja como ela emprega nitidamente mais força no arco no primeiro cello, para poder extrair o mesmo volume e tensão exigidos na obra. Observe como a mão esquerda parece mais tensa para manter as notas, enquanto desliza o arco.
No segundo cello, essa tensão já não se mostra a mesma. E no terceiro, a postura dela já é outra, mais relaxada, pois sabe e conhece todo o potencial e riqueza do instrumento.
Isso, meu amigo, é o que eu chamo tanto a atenção de vocês mensalmente: a tal da INTENCIONALIDADE, que define a qualidade e virtuosidade do músico, do instrumento e da captação.
E esses ‘detalhes’ é que separam o estudante de música do profissional. E por mais talentoso que seja o estudante, esses macetes só se adquire com o tempo, meu amigo.
Tanto é verdade, que todos os grandes cellistas dos últimos 70 anos possuem mais de um registro dessas Suítes Para Cello, de Bach. Todos, sem exceção! Pois percebem que, quando mais jovens utilizaram de um ímpeto que com a maturidade será substituído pela leveza e segurança, que só a idade nos proporciona.
Então, respondendo à pergunta, meu caro Watson, um estudante se sairia muito melhor com o cello de 5 mil dólares, e nos traria muito mais dúvidas sobre as diferenças entre os três cellos.
E certamente que cabe a mesma comparação com sistemas audiófilos. Um iniciante achará seu primeiro sistema de áudio, comprado com o suor e lágrimas de seu rosto perfeito, por muito tempo. E na falta de experiência e conhecimento, ele pode perfeitamente chegar à conclusão que sistemas muito mais caros são pura enganação e status!
Pois, como diz o velho ditado: “se não ouço, não existe diferença” (o mesmo vale para o objetivista: se não meço, não existe diferença).
E aí, voltando ao tema: como se mede o valor do sutil (no caso da Intencionalidade)? Essa é a questão mais delicada, e que poucos ainda entenderam, que em sistemas bem ajustados e coerentes, passar para um patamar acima não trará muito mais do que já se conseguiu. O que ocorre é o oposto, o que muda é o grau de pequenos detalhes que irão na verdade ampliar nossa atenção na escuta.
É o mesmo que ocorre no vídeo, o que altera entre o cello de 180 mil e o de um milhão, é o grau de apresentação da obra e toda a riqueza e complexidade exigida do músico.
Se deixarmos, no vídeo, de avaliar diferenças sonoras e passarmos a olhar e ouvir atentamente a apresentação nos dois instrumentos, a mais relaxada e que percebemos mais nuances e vemos a dificuldade técnica ser melhor resolvida, qual é? Fiz essa pergunta aos participantes, e os dez disseram ser a terceira.
E aí, na sequência, perguntei: e ouvindo no fone, sem olhar a imagem, qual soou mais harmoniosa e relaxante? Unanimemente, todos responderam: a terceira!
Então, meu caro Watson, se essas conclusões valem para o exemplo do vídeo, também valem para definirmos a qualidade dos equipamentos de áudio? Essa é a pergunta que devemos sempre fazer antes de ficar bravos com os valores dos instrumentos musicais, assim como dos equipamentos de áudio.
O que eles podem nos proporcionar se bem executados? O que podemos extrair dessas audições?
O problema é que fica fácil ouvir os três cellos e perceber as diferenças entre um estudante e um virtuose. Mas, ainda muito mais difícil quando se trata de equipamentos eletrônicos.
Porém com perseverança, paciência e experiência, tudo é possível! O que importa é saber o que se busca e como conseguir resposta para o que queremos.
Este vídeo é um excelente exemplo, de que mais do que ter uma opinião se vale ou não a diferença de preço dos instrumentos, é saber dentro de nossa real capacidade financeira o que podemos escolher que nos atenda plenamente (estamos ainda na condição de estudantes ou já de músicos formados)?
E para isso, é preciso escutar muito antes de sair comprando e lembrar que, à medida que os anos passarem, suas expectativas serão sempre mais elevadas, principalmente se o seu gosto musical for refinado.
E não se esqueça de sempre fazer as perguntas certas, para obter resultados eficientes! Pois do contrário, acharemos que qualquer cello afinado e nas mãos de um bom músico terá sempre a sonoridade suficiente para eu reconhecer que se trata de um cello, e acharemos o suficiente. Mas se esse for o seu caso, amigo leitor, não critique e nem desdenhe daquele que não se contenta com esse resultado!
Pois isso é Elementar, Meu Caro Watson – além de uma questão de respeito à sensibilidade e à opinião do outro!