Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Muitos leitores nos pedem ajuda ‘prática’ com gravações que possam orientá-los a entender se estão conseguindo ajustar ou não seus sistemas. Na sua grande maioria, são leitores que não têm outros audiófilos por perto para trocar experiências, e muito menos ouvir sistemas para referenciar suas escolhas.
Esse é um velho problema que sempre tivemos, pelo tamanho do mercado e as dimensões continentais deste país. E que, pelo visto, seguirá sendo um grande obstáculo para os que escolhem esse hobby e não moram nos grandes centros urbanos.
Para tornar o desafio mais ‘leve’, eu indico o disco e a faixa, e descrevo o que se deve observar para saber o que está correto ou não no sistema. Usei dez gravações do Tidal, pois imagino que a grande maioria de vocês já entendeu que para streaming de melhor qualidade só se for Tidal ou QoBuz – o resto não pode sequer ser considerado hi-fi.
Para participar desse desafio, também será preciso que o sistema tenha um padrão mínimo de qualidade, como: instalado em uma sala em que as caixas e o ponto de audição façam um triângulo equilátero, o sistema tenha um bom nível de inteligibilidade em níveis de volume baixos (mínimo de 56dB e máximo de 72dB), e que com esse volume se possa escutar todo o espectro audível (grave /médio/agudo) de maneira equilibrada. Se o seu sistema, nesse volume, falhar nos quesitos solicitados, desculpe, mas antes de você participar deste Desafio das Dez Casas, você tem outro trabalho: ajustar o equilíbrio tonal do seu sistema, para que nenhuma frequência se sobreponha ao resto.
Sinto excluir os que não tenham feito ainda a primeira lição de casa, mas é assim que esse hobby funciona: degrau por degrau – não tem como pular etapas ou ‘blefar’ dando o famoso jeitinho de ‘puxar e esticar’ o equilíbrio tonal com cabos, dispositivos para secar o som, caixas de papelão cheia de livros para fazer o papel de armadilha de grave. Pois você pensa estar solucionando o problema e, na verdade, só o mudou de lugar.
A tarefa mais essencial para se curtir esse hobby é um ambiente e um sistema em que se consiga extrair o melhor equilíbrio tonal possível. E isso não significa que seja preciso fazer uma sala dedicada com tratamento acústico rigoroso. E sim que tenha dimensões não próximas entre largura, altura e profundidade, a distância entre as caixas seja de no mínimo 1,80 m a distância entre as caixas e o ponto de audição também 1,80 a 2 m, que as caixas tenham pelo menos 50 cm afastadas das paredes laterais e 80 cm (mínimo), da parede às costas das caixas. E que entre o ouvinte e a parede às suas costas também tenham no mínimo 60 cm.
Em um ambiente com essas questões atendidas, um tapete, cortina, quadros ou estantes com discos, já será possível se preocupar com o próximo passo: a sinergia e coerência do sistema, para se evitar os ‘elos fracos’.
Você atendeu a todos esses requisitos essenciais? Então vamos lá!
Que faixas devemos ouvir para saber se nosso sistema atingiu um bom equilíbrio tonal, a melhor inteligibilidade dentro do meu orçamento, e o menor grau de fadiga auditiva?
Quem respondeu “vozes”, ganhou dois pontos: avance duas casas, sente confortavelmente em sua poltrona, regule o volume para o mínimo 50dB e picos de, no máximo, 74dB – e se divirta. Ouviremos primeiro uma voz masculina, acompanhada apenas de um violão, gravado ao vivo em um local que, pela captação, não é muito grande (pelas palmas ao final, me parece ser um local para umas 100 pessoas).
Primeiro desafio: Live In Chester – John Smith
Adoro esse disco, e reconheço que John Smith estava em uma noite inspirada. A faixa que você irá ouvir é a 1- Hummingbird. Parece tão simples reproduzir essa faixa em qualquer sistema, ou no celular com um fone de ouvido descartável. Ledo engano, meu amigo, pois aqui o desafio não está em sua voz e sim em acompanhar seu violão sem perder uma nota e ouvir, simultaneamente, sua voz e sua bela poesia.
Se o equilíbrio tonal não for correto, sabe o efeito que ocorre? Em determinadas frequências, o violão some e reaparece, ou fica reforçado – se sua sala tiver problema nessas frequências.
Comprometendo a inteligibilidade de ouvirmos a voz e o violão juntos, sem nosso cérebro hora ficar seguindo o canto, hora o violão.
E só sistemas hi-end corretos lhe darão essa possibilidade. E quando isso ocorre, seu cérebro relaxa e para simplesmente de procurar e, então, a música se torna presente em sua totalidade.
Não blefe! Procure ouvir dentro do volume estipulado e escute várias vezes para ter uma ideia clara do tamanho desse desafio.
Se você avançou, ótimo! Vamos para o próximo!
Segundo desafio: Acoustic Covers – John Adams
Aqui também ouviremos a faixa 1 – Bohemian Rhapsody
(Acoustic). Essa faixa é de nos deixar com a respiração suspensa. Ouviremos a voz de John à frente, seu piano e algumas entradas sutis de cordas em determinados trechos. Aqui o desafio é um pouco mais complexo, pois o engenheiro de gravação aplicou duas reverberações digitais distintas para a voz e para o piano. E com extensão completamente distintas de decaimento. O desafio é conseguir ouvir o todo e perceber, nos silêncios entre as notas, as reverberações distintas, assim como as entradas e saídas das cordas.
Se o equilíbrio tonal não for correto, o que se escuta em termos de reverberação é pobre e tendemos a prestar atenção muito mais na voz e sua reverberação de catedral, do que no piano e nas cordas.
Agora, se o seu sistema tiver um excelente equilíbrio tonal, meu amigo, será possível observar detalhes de textura da voz de John Adams cantando em falsete, os martelos das cordas do piano com seu feltro, e a delicadeza das cordas.
Aqui não temos refém: ou seu sistema passa com mérito, ou volta para a primeira casa!
Terceiro desafio: Butterfly – Natalie Merchant
Se você passou pelo segundo desafio, eis que complicamos um pouco mais, com a faixa 4- Frozen Charlotte. Em um arranjo mais complexo, com a voz de Natalie, piano, vocais femininos, bateria, contrabaixo e um quarteto de cordas. O volume terá que continuar o mesmo, seu sistema tem que ter equilíbrio tonal suficiente para reproduzir os desafios em volume moderado, ok?
Aqui tudo é mais difícil, pois a música possui um crescendo que irá exigir folga do sistema. Sem essa folga, a gravação tenderá a endurecer e frontalizar, tornando o som desagradável. Mas se tudo estiver correto, o prazer será enorme em ouvir todos os instrumentos sem atropelo, sem se perder nos detalhes, com aquela sensação da música fluindo e nos levando nela. O arranjo ajuda muito nessa linda viagem sonora.
E o quarteto de cordas tem uma graciosidade inebriante, que vai pontuando até o clímax final.
Meu desejo é que o seu sistema passe nesse desafio com mérito, amigo leitor. Mas, se não conseguir, não desanime e saiba que, ao menos, agora você já sabe que o equilíbrio tonal de seu sistema ainda não chegou lá!
Quarto desafio: Alma – Alma Naidu
Vamos para a faixa 10 – Wondering, com a participação especial do violonista Dominic Miller. Aqui temos a bela voz de Alma Naidu, o violão de Dominic, piano, bateria, baixo e um quarteto de cordas novamente. É uma gravação excelente, que facilita a vida de qualquer sistema decente, ao mesmo tempo que compromete.
Sabe o motivo? O grau de transparência da gravação. Sem um ótimo equilíbrio tonal, os erros (picos ou vales) serão expostos como um objeto à luz do sol a pino! Agora, em um sistema correto, as texturas, intencionalidades e o enorme bom gosto e virtuosidade de todos ficarão tão evidentes, que novamente nosso cérebro se entrega sem resistência.
Aqui preciso fazer um adendo ao nosso Desafio, para dar uma dica importante, que muitas vezes nos esquecemos por nossas inseguranças e incertezas. Quando o sistema está correto, o primeiro a detectar será sempre nosso cérebro. Assim como não precisamos ser músicos para saber que determinado cantor ou músico desafinou, nosso cérebro também reconhece quando um sistema está correto, pois ele sente que não há mais tensão, sobressaltos ou desconforto. E quando, finalmente, utilizamos do raciocínio para checar se tudo está correto, o cérebro já fez toda a avaliação.
Um sistema correto, sempre atingirá primeiramente nosso cérebro e só posteriormente nosso sistema auditivo. Quer uma prova? Se é seu cérebro que se pôs a ouvir, você se calará imediatamente. Enquanto houver ‘falatório’, é seu sistema auditivo escutando, e provavelmente o sistema não está correto!
Quinto Desafio: 20 for 2020 Volume 1 – Inbal Segev
Na segunda parte do desafio entramos com instrumentos acústicos, e a coisa começa a se complicar de verdade, meu amigo. A faixa escolhida foi a 3- Agita for Cello and Piano. Trata-se de uma peça contemporânea, e não espero que você me perdoe e muito menos me poupe de ouvir muitos impropérios. Mas acredite, se o seu sistema avançar, você terá andado no mínimo seis casas, passando para o outro lado da fronteira dos sistemas ‘maduros’.
Aqui suas caixas serão exigidas em demasia, assim como sua eletrônica, pois em alguns momentos esse duo soará como uma orquestra toda. Logo nos primeiros oito compassos iniciais, entender quem é quem tocando é uma tarefa das mais difíceis para quem não tiver familiaridade com esses dois instrumentos. Mas, tente ouvir nota por nota e descobrir quando é o cello e quando é o piano. Se for tarefa fácil para seu sistema e você, parabéns!
Aqui o equilíbrio tonal não precisa ser apenas correto, precisa ser excelente, para dar conta de não embolar ou sobrar em determinadas frequências. E o piano jamais, em momento algum, irá soar com som de ‘vidro’ ou duro na última oitava da mão direita!
Aos que sobreviveram, sigamos em frente!
Sexto desafio: Bass & Mandolin – Edgar Meyer & Chris Thile
Vamos avaliar os extremos de seu equilíbrio tonal? Vamos escutar a faixa 2- Tarnation. Meu amigo, se certifique que suas caixas não corram o risco de sair andando com o contrabaixo de Edgar Meyer tocando com arco, pois ele fará tudo que estiver em um raio de
3 metros, vibrar! Não estou brincando, é sério! Aqui, se sua sala não estiver pronta para graves de verdade, o desafio acabou para você.
Agora, se passar, alegre-se, pois você venceu mais uma etapa do desafio, avançando mais oito casas no mínimo!
Sétimo desafio: Visions – Hans Theesink & Terry Evans
Quem chegou até aqui, tem todo o direito de dar uma descansada e se divertir um pouco, afinal a vida não é feita apenas de desafios, não é verdade? Então espero te ver ao final dessa etapa, com um sorriso no rosto, do outro lado do rio, revigorado para a etapa final.
Vamos ouvir a faixa 5- Got To Keep Moving. Aqui seu sistema precisará apenas reproduzir essa excelente captação sem colorir as vozes de Hans e de Terry, e nem acentuar demais a batida de pés dos dois no tablado de madeira. Assim como não exagerar na apresentação dos solos com cordas de aço.
Parece ‘pêra doce’, mas já vi altas barbeiragens, como por exemplo os solos sibilarem, ou a marcação de tempo parecer que foi feita por mamutes enfurecidos em um tablado de circo!
Oitavo desafio: A Gathering Of Friends – John Williams, Yo-Yo Ma & New York Philharmonic
Pronto, acabou o descanso. Voltamos à estrada, reta final – aqui só os fortes sobreviverão. Quem chegou até aqui sem trapacear, deve se orgulhar do esforço feito para extrair o melhor de seu sistema.
Esse é um disco que merece ser ouvido na íntegra, mas tive que escolher uma faixa que pudesse mostrar o grau de dificuldade que é reproduzir uma orquestra sinfônica em um sistema que não esteja com o equilíbrio tonal em dia. Então, coloque a faixa 3 – Cello
Concerto: III. Scherzo, e se prepare para fortes emoções (e sustos, se seu sistema não tiver como reproduzir a macrodinâmica). Não ouse aumentar o volume para o desafio, ou baixar!
Aqui não haverá sobreviventes se a lição de casa não tiver sido feita integralmente. Pois aí, nos fortíssimos, tudo irá endurecer, e o grau de inteligibilidade será baixo, causando fadiga auditiva e nos fazendo desistir de escutar essa fantástica gravação!
Agora, se o sistema vencer os obstáculos, meu amigo, você se surpreenderá o quanto esse disco foi bem gravado, e que execução é a deste concerto para Cello, uma de minhas gravações preferidas de 2022!
Nono desafio: Trio Elf – Milton Nascimento
Já indiquei esse disco na seção Playlist algum tempo atrás. Gravado em 2010, foi lançado nas plataformas apenas em 2018. Ouça a faixa 1 – Ponta De Areia. Aqui o desafio é que o contrabaixo, nas notas mais graves, não transborde – e as notas mais agudas do piano não soem como vidro. E os pratos de condução tenham o decaimento e velocidade correto.
Parece tarefa fácil, mas não se iluda meu amigo, pois irá exigir muito do equilíbrio tonal do sistema e de sua caixa.
Se o sistema passou pelo oitavo desafio, não há motivo para não vencer este sem uma gota de suor!
Décimo desafio: Journey To The Center of an Egg – Rabih Abou-Khalil
Ouça a faixa 1 – Shrewd Woman, aqui a percussão não pode se sobrepor ao piano e ao instrumento de corda (o Oud), o que facilmente pode ocorrer se o equilíbrio tonal não for perfeito. Assim como a correção de tempo e ritmo, se os transientes não forem exatos, isso deixa a música soando letargicamente.
Espero que você, que está isolado e sem oportunidades de tirar dúvidas, possa com esses dez exemplos ter um ‘norte’ para o ajuste de seu sistema.
Estarei aqui para tirar dúvidas e ajudá-lo a corrigir a ‘rota’, se assim desejar.
O que não quero é que você desista do hobby ou desanime, se os exemplos colocarem em xeque seu sistema. Pois tudo tem correção de rota, mas para não perdermos tempo e nem dinheiro é preciso realizar essa ‘radiografia’ antes de sair gastando e acatando opiniões que não irão consertar o problema.
Achar que troca de caixas ou de eletrônica, ou de cabos, irá ‘driblar’ uma sala acusticamente com problemas, é como queimar dinheiro. Lembre-se: não existirá avanço sem resolver a questão do equilíbrio tonal da sala e do seu sistema antes de tudo. Só depois de vencida essa etapa, pode-se seguir em frente, buscando deixar o sistema ao seu gosto pessoal.
Espero que esse artigo seja de grande valia para muitos de vocês.
O Christian Pruks dedicou seu Opinião deste mês a dar dicas importantes para começar o ajuste fino de seu sistema. Se você tiver disposto a ler com atenção ambos Opiniões, poderá tirar informações interessantes – e todas elas práticas e não teóricas!