Fernando Andrette
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Nunca recebemos tantas mensagens referente a um Playlist como tivemos em relação a edição de setembro. Pelo visto muitos leitores aceitaram o desafio das dez casas, e levaram a sério testar o nível atual de seus sistemas.
Achei que teríamos muitos leitores reclamando dos exemplos escolhidos – pelo contrário, a maioria curtiu bastante a lista proposta.
Aos que chegaram ao final, meus parabéns!
E aos que sucumbiram no caminho, não desanimem. Pois saber onde se encontra o gargalo de um sistema de áudio, é o passo mais seguro para corrigir e seguir em frente.
E quando vencemos mais uma etapa, todos sabemos o quanto é gratificante ouvir aquelas gravações que sucumbiram agora serem reproduzidas com facilidade e prazer auditivo.
Se nos fosse entregue um pacote fechado e pronto, não teria o mesmo ‘sabor’ de ter sido feito por nós mesmos.
Alguns leitores já estão pedindo uma segunda rodada de desafios – e a esses, peço paciência, pois leva tempo ouvir várias gravações em streaming, selecionar as melhores tecnicamente para a avaliação de sistemas, e que sejam gravações artisticamente interessantes. Pois se for para apenas testar grave, médio e agudo, existem centenas de gravações para esse único propósito.
Esse mês quero prestar uma homenagem a uma pianista que infelizmente nos deixou em março deste ano, aos 73 anos de idade.
Uma pianista, compositora e arranjadora, que sempre estranhei ser tão pouco conhecida aqui no Brasil. E sempre que mostrei algum trabalho seu, sempre ficaram surpresos com sua qualidade técnica e artística.
Falo de Jessica Williams, que nasceu em Baltimore nos Estados Unidos em 1948, e que seus pais perceberam seu enorme talento quando ela tinha apenas 4 anos. Seu primeiro professor particular, depois de apenas um ano lhe ensinando o básico do piano, indicou que a menina fosse matriculada no Peabody Preparatory, o melhor conservatório musical da cidade de Baltimore. Ela conseguiu sua bolsa com apenas sete anos, e estudou música clássica e percepção auditiva com o pianista Richard Aitken e, posteriormente, com o maestro e compositor George Bellows, que era um estudioso em sinestesia e percebeu a facilidade que Jessica tinha para decorar as partituras, associando cada nota a uma cor.
Seu professor queria que ela se tornasse uma concertista, mas escondida, aos 12 anos, ela ouvia a coleção de jazz de um tio e descobriu Miles Davis, Mingus e Dave Brubeck. Determinada a seguir carreira como uma pianista de jazz, seu primeiro emprego aos 15 anos foi tocando na banda de Richie Cole, e depois foi convidada para gravar com Buck Hill e Mickey Fields.
O que os críticos de jazz, quando descobriram aquela jovem pianista, perceberam é que ela não compunha para o seu instrumento e sim como se fosse para instrumentos de sopros. Até que finalmente em uma entrevista dada ao programa de rádio Piano Jazz, quando tinha 20 anos, ela confirmou que suas principais influências não eram pianistas e sim Miles Davis e John Coltrane.
Em 1976, ela foi convidada para se apresentar regularmente na banda de Philly Joe Jones em Nova Jersey. No ano seguinte,
Jessica Williams mudou-se para San Francisco onde tocou com os melhores: Eddie Harris, Tony Williams, Stan Getz e Charlie Haden e, paralelamente, montou seu primeiro trio de jazz – sua carreira estava finalmente consolidada.
Jessica desde muito nova sempre quis ter autonomia total sobre sua vida e carreira, então depois de inúmeros contratos mal remunerados com grandes gravadoras, resolveu em 97 montar seu próprio selo, o Red and Blue Recordings, e sua editora JJW Music. E, na virada do século, percebeu o enorme potencial a ser explorado na venda de discos por correspondência pela Internet.
A primeira década do novo século foi muito profícua para ela, com enorme evidência, tocou com seu trio e inúmeras formações nos mais importantes festivais de jazz em todos os continentes.
Infelizmente, em 2012, em um tratamento médico mal sucedido na coluna vertebral, ela perdeu parte dos movimentos dos membros superiores, limitando tanto sua locomoção como tocar. Ainda assim ela continuou a compor e passou a fazer uso de sintetizadores com sampler e permaneceu no cenário musical, ainda que nos bastidores, até sua morte.
Foram mais de 50 discos – e o que sempre admirei foi sua visão aberta e sua capacidade de explorar o universo musical sem nenhum tipo de preconceito.
Escolhi apenas três trabalhos para apresentá-la aos nossos leitores que não conhecem o maravilhoso trabalho de Jessica Williams. Mas no Tidal você encontrará mais de 20 trabalhos seus.
Os três que separei mostram sua facilidade em compor para além do trio de jazz acústico, tentando conquistar um público mais jovem avesso ao cool jazz, ao bebop ou ao tradicional.
1- JAZZ IMPRESSIONS OF SPAIN (RED AND BLUE RECORDINGS, 2007)
Ela, em uma entrevista feita em 2001 à BBC, contou que tinha um desejo enorme de compor temas com base na música espanhola, evitando utilizar as temáticas feitas tanto pelo maestro e arranjador Gil Evans com Miles Davis, como pelo Marcus Miller com Miles Davis para o filme Siesta.
Seu desejo era mostrar a Espanha como um visitante que busca decifrar o fascínio que aquela música possui.
São apenas sete temas que Jessica, no lançamento do trabalho, explica que foram compostas como trilhas de um filme íntimo e pessoal.
É uma viagem sonora incrível, meu amigo, em que ela nos transporta aos locais como Barcelona, Madrid, o céu da Espanha em um verão seco, Oceania e El Salvador e participamos como testemunhas silenciosas dessa aventura.
Adoro esse disco pela capacidade de mostrar o quanto a compositora Jessica Williams era cuidadosa em apresentar temas complexos de maneira tão palatável e harmoniosa. Ela sempre pedia aos seus músicos que buscassem deixar seus solos o mais simples possível, pois acreditava que só assim suas ideias seriam inteiramente compreendidas pelo ouvinte.
Pois ela mesmo dava o exemplo, em seus solos ao piano com enorme bom gosto e criatividade.
2- VIRTUAL MILES VOLUMES 1 & 2 (RED AND BLUE RECORDINGS, 2006 / 2007)
Como escrevi no texto de apresentação, suas duas maiores ‘expressões musicais’ foram Miles e John Coltrane. Então era óbvio que em algum momento de sua longa carreira ela fizesse um tributo a ambos.
Ao lançar o Volume 1 em 2006, ela disse que levou muito tempo compondo e reescrevendo os temas, pois ela tinha em mente a princípio fazer uma homenagem, buscando mostrar a genialidade de Miles em sua longa trajetória artística, mas que a fase do fusion jazz havia o tempo todo lhe vindo à mente. E que, a princípio, ela não entendeu o motivo, mas só depois de visto o disco todo pronto, que se deu conta que para ela ao compor temas inspirados nessa fase de transição de Miles, é que ela se libertou completamente dos ‘preconceitos’ que todo compositor de alguma forma carrega, ainda que seja de maneira inconsciente ou velada.
E fica nítida essa ‘abertura criativa’ que Jessica consegue em todos os seus trabalhos posteriores aos Volume 1 & 2 do
Virtual Miles.
O título também é uma brincadeira, a que ela se propôs quando se livrou do preconceito, ao compor os temas imaginando que seria o próprio Miles que executaria cada uma das músicas – por isso sua presença ‘virtual’ tanto na composição, quanto nos temas e
arranjos. Realmente todo fã de Miles e que ouviu e admira todas suas fases, sentirá a presença de Miles em todos os detalhes.
Pessoalmente gosto mais dos temas do segundo disco, acho que Jessica conseguiu um equilíbrio maior e tudo soa mais leve, solto e relaxante. Posso estar errado, claro. O amigo ao ouvir ambos pode ser que prefira o Volume 1, por parecer mais ‘titubeante’ entre as ideias pessoais de Jessica misturadas às do próprio Miles, que sabemos não fazia nenhum tipo de concessão ao que desejava como resultado.
Essa capacidade quase camaleônica de Jessica em seus discos parecer múltiplas artistas, é que me encanta tanto e me deixa indignado de tão poucos conhecerem sua extensa e admirável discografia.
Espero que muito mais que uma homenagem póstuma, eu esteja contribuindo para que mais e mais amantes da música conheçam este grande talento!