Opinião: POSSO USAR QUALQUER MÚSICA PARA AJUSTAR MEU SISTEMA?

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setembro 5, 2023
PLAYLIST DE SETEMBRO
setembro 5, 2023

Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Essa é uma das falácias mais divulgadas por inúmeros novos revisores críticos de áudio, que costumam confundir gosto pessoal com gravações que possam ajudar os audiófilos iniciantes na escolha de produtos e ajuste fino de setups.

Nos ‘Falácia 1’ e ‘2’, mostrei algumas das aberrações indicadas, e o número é tão impressionante de gravações tecnicamente inaudíveis, que achei melhor escrever esse artigo de uma vez por todas.

Faria uma única pergunta a todos esses revisores, que acham que qualquer música é indicada para sistemas hi-end: “me explique, por favor, o que o audiófilo deve observar nessas gravações indicadas?”. Pois a maioria do que escuto dessas indicações, são desprovidas até de um equilíbrio tonal correto – por intenso uso de equalização, compressão e inúmeros efeitos simultâneos de plugins, para fase, reverb, distorção, etc.

O que é preciso entender definitivamente, é que você pode ouvir gêneros musicais que façam uso de todos esses recursos de manipulação do áudio original, em um sistema hi-end. Mas se você não tiver esse setup primeiramente bem ajustado, o resultado será pífio!

Então, primeiro ajuste corretamente o sistema, para depois ouvir o que você desejar.

E, para isso, será preciso escolher gravações primorosas que possam identificar erros e acertos do sistema.

E, por favor ,não me venha com a desculpa de que como você não estava no momento da gravação, não pode dizer o que está soando certo ou errado. Ouvi essa ladainha por 50 anos, e com tantas gravações primorosas no mercado, essa desculpa não se sustenta mais.

Claro que o audiófilo, para fazer uso dessas gravações, precisa ter o mínimo de conhecimento sobre os instrumentos que estão presentes nelas e, se possível, já os tenha escutado pelo menos uma vez ao vivo!

E se tiver em dúvida, busque gravações com instrumentos como: violão, baixo, bateria, piano, flauta e vozes, muitas vozes masculinas e femininas.

Mas, lembre-se: terão que ser gravações com o mínimo de uso de plugins como compressores, equalizadores e reverberação digital.

Eu indico a todos que desejam ampliar sua percepção auditiva, instrumentos acústicos, pois eles, quando bem gravados, estão livres de todas as manipulações eletrônicas de mixagem tão em uso em gêneros musicais como rock, hip-hop, funk, etc.

E não precisa fazer uso de música clássica se você não tiver o hábito de ouvir esse gênero – busque gravações com pequenos grupos como duo, trios, quartetos e quintetos.

Eu sempre assinei inúmeras revistas internacionais de pro-áudio como a Sound on Sound, que traz excelentes entrevistas mensalmente com os melhores engenheiros de gravação, e me permite acompanhar o que está ocorrendo nesse segmento, e as principais tendências de mercado.

Há poucos meses saiu uma excelente entrevista com o engenheiro de gravação Richard King, falando de técnicas para gravar conjuntos acústicos. Acompanho e admiro o trabalho desse engenheiro de gravação desde os anos 90, quando ele gravou discos do Chick Corea, Yo-yo Ma, Joshua Bell, Renée Fleming, Hilary Hahn, Itzhak Perlman e, mais recentemente, o disco da dupla Chris Thile & Edgar Meyer que lhe rendeu mais um Grammy de Melhor Engenharia, totalizando até o momento, em sua impressionante carreira, 12 estatuetas.

Outro feito histórico seu, foi que fazia 40 anos que um engenheiro de gravação não ganhava no mesmo ano em ambas categorias: Melhor Engenharia Clássica e não-Clássica.

Ou seja, o homem é realmente uma fera, e entende como poucos como captar corretamente e extrair o máximo dos músicos e orquestras que ele grava.

Então, meu amigo, se deseja fazer a lição de casa corretamente e ter gravações primorosas que possam auxiliar na escolha de um produto, ou no ajuste de seu setup, as gravações de Richard King são uma escolha segura e prazerosa.
Ele é um cara bastante avesso à entrevistas, portanto conhecer e compartilhar de suas dicas é o mesmo que ganhar um bilhete premiado!

Você, que acompanha religiosamente nossa Playlist, irá lembrar quando indiquei o disco do Chris Thile & Edgar Meyer, que ganhou o Grammy de Melhor Gravação não-Clássica de 2022.

OUÇA EDGAR MEYER & CHRIS THILE – BASS & MANDOLIN, NO TIDAL.

E o indiquei justamente pela qualidade de captação e seu grau de materialização física (organicidade) em um sistema bem ajustado! E tinha guardado esse disco para ser o primeiro exemplo de Corpo Harmônico, quando eu apresentar esse quesito em outubro, na seção Opinião.

Para você que não tem a menor familiaridade com gravações, pode achar estranho quando eu afirmo que: a escolha dos microfones pelo engenheiro de gravação, definirão o ‘teto de qualidade’ final do disco!

E acredite, meu amigo, a escolha errada será, logo de início, o ‘elo fraco’ do projeto.

Richard King, pelo fato de trabalhar com música acústica, prefere normalmente na captação dos instrumentos usar microfones omnidirecionais. “Se estou em uma sala que é agradável acusticamente, minha escolha sempre será por omnis, pela sua capacidade de captar o timbre e o som da sala à volta do instrumento. Para mim, os omnis são uma ferramenta rápida e fácil para traduzir o que está acontecendo na sala”.

Ele, na entrevista, diz entender outros engenheiros de gravação que evitam usar microfones omnis, pelo fato destes captarem ruídos dos instrumentos – já para ele esses ‘ruídos’ fazem parte da fonte e não podem ser extraídos da gravação. E completa: “Cliques de tecla em um fagote, por exemplo, é apenas parte do que está acontecendo, igualmente quanto à mecânica de um piano. Eu nunca tento remover esses artefatos”.

Aqui voltamos à questão de termos gravações seguras para avaliações de sistemas, meu amigo. As melhores sempre serão as que não foram manipuladas posteriormente, mantendo a captação original do que foi captado e gravado!
Outro ponto de vista que a esmagadora maioria dos engenheiros de gravação abominam, são os vazamentos entre os microfones – e Richard King, ao contrário, procura apenas minimizar esses vazamentos, sugerindo que os músicos gravando em tempo real não utilizem fones de ouvido. “Eles devem ouvir acusticamente a sala, para que ouçam o equilíbrio natural que você está executando na gravação, e possam ir ajustando a dinâmica em tempo real”.

Esse é um dos pontos mais interessantes de seus conceitos, que podemos comprovar o quanto estão corretos ao ouvirmos suas gravações finalizadas!

“Para convencer os músicos a abrirem mão dos seus fones, eu costumo manter os músicos juntos para que eles possam equilibrar a dinâmica do conjunto para a gravação ter melhor definição de tempo e clareza”. Richard afirma que muitos engenheiros tentam chamar essa responsabilidade para si mesmos, achando que podem ‘reconstituir’ essa ‘unidade’ na mixagem e, segundo ele prova em suas gravações, isso não pode ser reconstituído se não foi devidamente gravado.

Aqui, meu amigo, eu posso dar inúmeros exemplos com gravações de quarteto de cordas em que a sensação muitas vezes é que cada instrumento estava em um ambiente diferente, e não juntos. E os volumes não parecem soar naturais, e nem tão pouco estarem seguindo a escrita da obra na partitura.

E Richard vai ainda mais longe em suas tomadas de gravação, fazendo os músicos gravarem, depois irem à sala de gravação escutar cada nova tomada, até garantirem que entenderam qual é o melhor equilíbrio do microfone. “Às vezes, depois de ouvir, e com muito pouca discussão, eles saem e fazem outra tomada e se ajustam naturalmente ao que acabaram de ouvir na sala de monitoração”.

Outro aspecto que, em diversos testes e artigos, já comentei: toda gravação será sempre a perspectiva do microfone mais a soma da acústica da sala com a qualidade do músico e do instrumento. É preciso que o audiófilo entenda claramente isso, quando for escolher as melhores gravações para o ajuste do seu sistema!

Richard também alerta que, para se extrair o melhor dos microfones omnidirecionais, é que os músicos precisam estar abertos para ajustar suas posições na sala de gravação em relação ao microfone. “Muitas vezes eles vêm e ouvem na técnica, e dizem algo como: ‘Tem viola demais!’ e eu sugiro duas opções, ou ele tocar mais baixo, ou permitir que mudemos a posição de sua cadeira, para que o instrumento soe um pouco mais suave o tempo todo”.

Meu amigo, se o senhor lê meus testes ou artigos técnicos, sempre falo sobre a questão de saber posicionar corretamente o microfone, para que os volumes sejam corretos, principalmente em gravações em tempo real, que sempre haverá vazamentos entre os microfones.

Outra dica importante de Richard King, é quanto ao arranjo dos microfones omni, que sempre dependerá do tamanho do grupo a ser gravado. “A quantidade dependerá exclusivamente do tamanho do conjunto. Muitas vezes eu faço apenas um par estéreo, esquerdo e direito, às vezes faço um de centro, esquerda e direita, e chego o mais próximo que der, para obter melhor uniformidade”.

Uma de suas mais recentes produções foi do grupo The Goat Rodeo Sessions (que também já indiquei no Playlist). “Nessa gravação, eu usei a ‘Árvore’ – esquerda-centro-direita, três omnis bem baixos, com cerca de um metro e oitenta de altura, e o grupo estava sentado e em outras faixas em pé. Apesar disso, não era uma ‘Árvore Decca’ real, pois o microfone central era um pouco mais próximo do baixo, e mantive essa posição no momento da mixagem, deixando-o cerca de 10dB abaixo dos outros dois microfones”.

OUÇA THE GOAT RODEO SESSIONS, NO TIDAL.

Eu indico, no final deste texto, os dois discos aqui citados, para que o amigo possa ouvir como soam em seu sistema. O importante é que cada um de vocês, se concentre em ouvir como o Equilíbrio Tonal se comporta. Algum instrumento soa agressivo ou mais frontal, ou ainda passa a sensação de estar com o volume à frente dos outros instrumentos?
O importante é que são duas gravações primorosas, e que podem ser uma ferramenta segura para o ajuste de qualquer sistema hi-end.

E, no encerramento de sua longa entrevista, King dá excelentes dicas aos futuros engenheiros de gravação, que também servem de alerta para todos os audiófilos e revisores em início de carreira: “Uma lenda urbana que deveria ser desfeita é que uma sala de gravação deveria ser o mais morta possível, para remover todo o som reflexivo. O que acontece é que você remove os reflexos de alta frequência, mas ainda tem toneladas de médios graves, e que irão soar pior do que você tivesse deixado a sala com toda sua reflexão”. (Será que tem alguma semelhança com tantos ‘pseudo-gurus’ acústicos do mercado?).

“Eu encorajo os novos engenheiros a simplesmente irem para a sala de gravação, e colocarem o instrumento em algum ponto onde pareça extrair o melhor som dele, e aí colocar um microfone para ouvir, até achar o melhor ponto de balanço entre a sala e o instrumento”.

Incrível que seja tão óbvio, e inúmeros engenheiros de gravação ainda acreditem que tudo pode depois ser ‘corrigido’ na mesa de mixagem, com múltiplas tentativas de equalização!

Outra dica dele: “Microfones baratos sempre soam baratos. Digo aos meus alunos, quando forem gravar, aluguem um microfone decente, se você ainda não puder ter um. Uma boa gravação começa com um microfone decente e um par de monitores decentes. Essa são os dois elos principais da corrente”.

No nosso caso também: substitua acima ‘microfone’ por ‘a melhor fonte possível’, e ‘monitores’ pela ‘melhor caixa possível’!

Espero que nas futuras gerações de engenheiros, tenhamos mais ‘Richards Kings’.

É importante que você entenda, meu amigo, que só haverá avanços em seu sistema se você investir primeiramente em sua Formação e Percepção Auditiva, e em possuir gravações corretas para chegar lá. Do contrário, você só perderá tempo e muito dinheiro!

Deixo aqui as duas mais recentes gravações feitas por Richard King, para você ouvir o quanto elas soam primorosamente em bons sistemas!

Façam excelente uso delas!

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