Fernando Andrette
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Relendo todos os textos escritos para a formatação final da nossa Metodologia, e os debates acalorados que houveram com todos os nossos colaboradores na época, ficou claro que, ao definir cada quesito, a preocupação central de todos era como passar de maneira precisa o que estávamos avaliando na prática, para os nossos leitores.
E o quesito Corpo Harmônico foi um dos temas que mais discussões causou, pois muitos achavam que ele não era ‘relevante’ o suficiente para ter o mesmo peso que quesitos como: equilíbrio tonal, dinâmica ou transientes.
Em uma das reuniões coletivas, ao ver o impasse criado, voltei para casa com a convicção que nossos colaboradores também precisavam ser convencidos de sua importância, para evoluirmos na arquitetura final da Metodologia.
Passei o final de semana buscando uma maneira de apresentar, na prática, o conceito – e como não achei respostas, fui espairecer ouvindo música.
Acredito que muitas vezes, quando martelamos muito uma ideia e não evoluímos em conseguir respostas, o melhor é deixar de lado o problema para que sua mente descanse, para depois voltarmos ao tema.
Porém, muitas vezes, lá no nosso inconsciente silenciosamente continuamos a esmiuçar soluções.
E foi assim que me veio a ideia de mostrar a todos os envolvidos nas discussões, como soa o Corpo Harmônico de uma mesma gravação em uma mídia analógica e em uma digital.
E foi aí que selecionei 5 exemplos em que possuía a gravação em LP e CD, e mostrei em nosso Sistema de Referência da época, a diferença impressionante do corpo de cada instrumento nas duas mídias.
E como era impossível para o nosso cérebro ser enganado de que aquela reprodução digital estava ‘materializando’ os músicos a nossa frente, e como essa sensação era muito mais fácil na versão analógica.
E, finalmente, aquele nó foi desatado e todos compreenderam a importância deste quesito, para que nosso cérebro aceite que o acontecimento musical está ali a metros de nós ou não.
Esse foi o mote também para apresentar esse quesito em nossos Cursos de Percepção Auditiva – e teve um efeito ‘secundário’ muito interessante: o de dar a oportunidade de muitos dos participantes resgatarem sua memória auditiva de LPs, e a muitos jovens de ouvirem pela primeira vez vinil e perceberem a enorme diferença entre as duas mídias, no quesito Corpo Harmônico.
O problema, a partir do lançamento da Metodologia em maio de 1999, foi de convencer os formadores de opinião do que se tratava o quesito Corpo Harmônico, e sua importância para avaliações seguras de produtos hi-end.
Lembro em detalhes do Hi-End Show de 2001, em que um expositor pegou pelo braço do meu filho que estava me acompanhando, e na minha frente deselegantemente disse a ele: ”Fale para o seu pai que esse tal de Corpo Harmônico é uma enorme bobagem”. Meu filho não entendeu nada daquele gesto indelicado.
Existem pessoas que não conseguem expressar sua insatisfação ou diferença com quem de fato o incomoda, preferindo atitudes menos civilizadas para dar o recado.
Nossos leitores da primeira fase da revista irão lembrar do uso contínuo da famosa frase ‘pizza brotinho’, que utilizava para mostrar o quanto o Corpo Harmônico do CD era pobre. E fazia uso também nos Cursos, para apresentar de maneira didática e audível a grande ‘pedra no sapato’ do digital.
Esse ainda é um problema, meu amigo, não se iluda, pois quando pensamos que o digital chegou lá e venceu essa barreira, temos que lembrar que a reprodução analógica também avançou, e continua nesse quesito sendo a referência absoluta.
E agora, com a predominância do streamer, em vez do digital avançar nesse quesito, voltou algumas casas atrás.
E muitos sequer se dão conta desse retrocesso, e continuam a abandonar a mídia física pelo streamer. É uma escolha: comodidade versus qualidade.
Fizemos isso com o CD, e estamos a repetir novamente com o streamer.
Por que isso ocorre repetidamente? Essa é uma excelente pergunta.
E minha conclusão é simples: tudo que temos são nossas referências auditivas para tirarmos conclusões e fazer escolhas.
Se abrirmos mão de referências ao vivo de instrumentos acústicos não amplificados, jamais teremos critério para avaliar nenhum quesito importante na escolha de nosso sistema.
Por isso que, para muitos audiófilos, não foi nenhum problema substituir os LPs pelo disco prateado, e agora novamente trocar o CD pelo streamer. Afinal, é ainda mais prático, não ocupa espaço e temos à mão uma biblioteca musical incrível ao controle de nosso celular!
E o que posso dizer é: o streamer é ainda mais pobre no quesito Corpo Harmônico que o CD.
E aí muitos de vocês devem estar pensando: não dou a mínima para esse tal de Corpo Harmônico!
OK!
Só não se esqueçam de dizer a si mesmo que seu investimento de anos e mais anos em um setup hi-end, a partir de sua nova escolha tem um ‘gargalo’, certo? Pois esse será um ‘elo fraco’ bastante evidente, e não só nesse quesito de nossa Metodologia, como também nos quesitos soundstage, textura e macrodinâmica.
E cada vez que você tiver a oportunidade de visitar um amigo que tenha um setup bem ajustado, e que não abriu mão da mídia física, você vai se lembrar de como aquele disco que você tanto ama, soa mais ‘verídico’ nesse setup que sua cópia streamer.
Infelizmente a maioria dos nossos leitores não terão os exemplos em mídia física para ouvirem as diferenças do Corpo Harmônico entre um piano, viola e violão, que indico como um excelente exemplo de Corpo Harmônico no disco Genuinamente Brasileiro vol. 2 – faixa 12 – Saudades do Brasil.
Mas antes de falar dos exemplos, deixa eu explicar o que é o Corpo Harmônico. Todo instrumento, além de seu timbre característico, possui um formato físico e o som que ouvimos desse instrumento tem uma relação direta com o seu tamanho.
Quando ouvimos um contrabaixo e um cello, lado a lado ao vivo, imediatamente nosso cérebro reconhece o corpo desses dois instrumentos e consegue fazer a distinção do tamanho real de ambos.
O que é mais difícil é ouvir esses dois instrumentos gravados, pois manter o tamanho real de cada um, dependerá de inúmeros fatores como: acústica da sala, escolha dos microfones e o mais importante: o melhor posicionamento do microfone para captar o som direto do instrumento com um pouco do ambiente, sem descaracterizar o instrumento.
Essa captação é uma arte, meu amigo, e muito poucos engenheiros se preocupam com esse grau de perfeccionismo.
O que ocorre para você que é leigo, é o seguinte: se o engenheiro colocar o microfone muito próximo ao instrumento, o corpo será muito menor do que realmente soa ao vivo, como se estivéssemos a dois ou três metros do músico.
Se colocar mais distante, o que ouviremos será a soma do som do instrumento com a sala de gravação. E nesse caso teremos um corpo maior que do microfone mais próximo, porém o resultado dependerá da qualidade acústica da sala. Se for mais viva, mais corpo, se for muito seca, menos corpo.
Ou seja, a captação fiel do Corpo Harmônico possui inúmeras variantes, e que apenas um engenheiro altamente qualificado com a gravação de instrumentos acústicos, saberá tirar fidedignamente.
Para a reprodução eletrônica, o que importa ao nosso cérebro é que a mensagem musical (para os que possuem a referência da apresentação ao vivo não amplificada), não soe menor do que o real, ou grandiosa demais – exagerada.
Lembro de uma gravação ‘audiófila’ de um contrabaixo de um músico ‘amador’, tocando o Adagio de Albinoni, em que o instrumento soava do tamanho de um hipopótamo! O truque foi colocar o microfone a uma distância do contrabaixo em que o que ouvimos é a soma da sala de gravação, com enorme reverberação aumentando o corpo do instrumento de maneira desproporcional à realidade.
Aí os expositores usavam essa gravação horrorosa para demonstrar caixas book e enganar os visitantes que suas caixas reproduziam um grave incrível.
Felizmente as books de hoje não precisam dessas gravações anabolizadas medíocres, para mostrar o quanto evoluíram na reprodução de graves e na melhor reprodução de Corpo Harmônico.
Então, meu amigo, temos inúmeras gravações excelentes tanto artisticamente (que é sempre o quesito mais essencial) e corretas tecnicamente, para avaliação desse quesito.
O que precisamos sempre levar em consideração, ao buscar bons exemplos para o ajuste de nosso sistema nesse quesito é: nosso cérebro consegue ser enganado que o instrumento ali à nossa frente tem um tamanho próximo ao real?
Pois de nada irá valer todo seu esforço em tempo e dinheiro, ajustando todos os outros quesitos, se na hora de avaliar o Corpo Harmônico e organicidade, seu cérebro ficar o tempo todo lhe dizendo que a mágica não funcionou.
Pois Corpo Harmônico e organicidade, andam de mãos dadas, meu amigo, sempre!
Um vai aonde o outro está.
Darei um outro exemplo de equívocos feitos por audiófilos ‘experientes’, que buscam o melhor equilíbrio tonal, texturas, transientes, soundstage e dinâmica. E, no entanto, na busca pela macrodinâmica, cometem o erro de extrapolar no tamanho do Corpo Harmônico nas vozes.
Deixando-as enormes!
Aí nosso cérebro irá rejeitar todo esse esforço hercúleo na primeira frase do(a) cantor(a). Cansei de ouvir isso ocorrer em sistemas caríssimos, com caixas com mais de 1.80m de altura, woofers de 12 ou 15 polegadas, amplificadores com mais de 500 Watts em 8 ohms, fontes digitais e analógicas de referência.
E o tamanho das vozes explicitando o erro de não se medir as escolhas de maneira criteriosa.
Minha dica número um, para quem deseja o melhor Corpo Harmônico possível dentro de seu orçamento: se você ainda utilizar mídia física, faça suas escolhas por gravações que tenham tamanhos próximos ao real. Jamais use gravações turbinadas. E se você ainda tiver fonte analógica, defina seu setup sempre pelo LP e não CD.
Jamais streamer!
Pois este ainda se encontra no período neolítico em que tudo soa do tamanho de ‘pizza brotinho’.
Bem, já falei da faixa 12 do Genuinamente Brasileiro volume 2, em que o piano está no canal esquerdo até quase o meio das duas caixas, com o Corpo Harmônico bem condizente com um piano Steinway modelo D, e no centro entre as duas caixas uma viola bem recuada em relação ao violão no canal direito, um pouco mais próximo do piano.
O que essa faixa apresenta é a diferença audível do tamanho dos instrumentos de maneira muito convincente, o que permite ao nosso cérebro relaxar imediatamente e apreciar a obra.
O ouvinte percebe que os instrumentos estão ali ‘à sua frente’, mostrando o quanto organicidade e Corpo Harmônico não se separam nunca!
E o segundo exemplo, depois de vasculhar muito no streamer, de novo escolhi o excepcional Bass & Mandolin de Edgar Meyer e Chris Thile. Gravação soberba, e artisticamente são dois virtuoses da mais alta grandeza!
O disco todo é lindo, mas gosto muito de mostrar o Corpo Harmônico da faixa 2 – Tarnation. Com o mandolin no canal esquerdo, e o contrabaixo ocupando todo o lado direito.
Com instrumentos de corpo físico tão distintos, o engenheiro de gravação precisa ter enorme conhecimento de como fazer ambos soarem sem que o menor seja engolido pelo maior (mesmo nos fortíssimos).
Claro que, como eu disse, o streamer é um exemplo ‘pálido’ do que realmente é o tamanho dos instrumentos. Mas aqui, ao menos, é possível ter uma ideia do ‘quase real’. Se você já abandonou as mídias físicas, e deseja um exemplo seguro para escolha desse quesito, essa é a gravação, meu amigo!
Principalmente para se definir a melhor caixa book para sua sala e seu orçamento!
E para os que, como eu, ainda amam o vinil, deixo dois excelentes discos para se ouvir Corpo Harmônico como soam ao vivo – só como aperitivo!
Duke Ellington – Blues In Orbit, gravação da Columbia de dezembro de 1959.
E o Belafonte – Sings The Blues, de 1958.
Todos os participantes dos Cursos de Percepção Auditiva Nível 3 – Analógico versus Digital – podem dar seu testemunho de como a sala vinha abaixo ao ouvirem primeiro faixas desses dois discos em CD e depois em LP.
Meu amigo, era uma hecatombe a reação dos que fizeram a besteira de vender seus LPs e embarcar no digital.
Lembro de participantes virem me confessar ter sido, depois do comparativo, o maior erro cometido em sua trajetória audiófila!
E quais foram os quesitos que mais os impressionaram? Corpo Harmônico / Organicidade!
Espero que os exemplos os ajudem a entender como nosso cérebro codifica os detalhes mais sutis, e como estes são importantes para que possamos extrair o melhor realismo possível de nossos sistemas hi-end!
Mês que vem falaremos da materialização física do acontecimento musical à nossa frente.
Até lá, se divirtam e façam o dever de casa.