Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Os nossos leitores com pouca idade, devem achar que somos aquele bando de velhos e chatos audiófilos que insistem em ditar regras em um mundo em total transformação.
É ingênuo aquele que acredita que o seu conhecimento e experiência de vida, não serão superados pelos seus filhos e netos. E intransigente o que não reconhece que a dinâmica do mundo estará sempre refazendo conceitos e revendo ideias.
Quando propomos que o audiófilo, para o seu aprimoramento auditivo, necessita ter referências sólidas, não pense você, jovem leitor, que estamos criando algo nunca antes discutido. Nos anos setenta, três engenheiros australianos (John Burnett, Richard Priddle e Michael Dixon) propuseram formas de padronizar a reprodução musical para a indústria de áudio. O artigo escrito em uma publicação técnica de Sydney, em seu primeiro parágrafo defendia que a missão dos três era: “Salvar o mundo do som ruim”.
Acho que se tivesse utilizado esse ‘slogan’ ao lançarmos nossa Metodologia, teríamos sido esquartejados em praça pública, rs! O que sabemos é que essa meta de padronizar e aprimorar o áudio de qualidade, jamais foi alcançada.
Muitos outros, a partir desse primeiro passo, chamaram para si esse desafio e escreveram excelentes artigos, como o do Dr Floyd E. Toole (Vice Presidente de Engenharia Acústica da Harman International Industries) que disse com todas as letras: “Os alto-falantes são o elemento mais importante. Eles influenciam a arte à medida que ela é criada, e nesse processo os alto-falantes precisam ser neutros. Se não forem neutros, eles se tornam parte da arte”.
Outros excelentes profissionais escreveram centenas de artigos em diversas revistas especializadas, alertando a responsabilidade dos engenheiros/produtores de gravação, que a escolha ou não de modificar o sinal gravado por compressão ou pela equalização – muitas vezes utilizado não para engrandecer a intencionalidade artística, mas para apenas compensar anomalias de um sistema de monitor de estúdio – essa escolha fará com que o trabalho final nunca soe igual em sistemas com alto-falantes diferentes. E essa falta de padrão sobre como os monitores de estúdio devem ser definidos para gravação, masterização e reprodução da música, afeta outras áreas da indústria de áudio, fazendo que não haja referência nem no começo do processo (no momento da gravação) e muito menos na reprodução na casa do ouvinte.
Se juntarmos a essa equação outras anomalias presentes nas escolhas feitas pelos responsáveis pelas gravações – como a compressão de dados para MP3, que é uma das maiores causas de degradação da inteligibilidade e aumento exponencial da fadiga auditiva, ainda quando é usada junto com a compressão da faixa dinâmica – temos o que eu chamo de ‘tempestade perfeita’. O problema é que o uso indiscriminado da compressão de faixa dinâmica torna a música próxima ao que seria ouvirmos por alguns minutos uma britadeira a 1 metro de nós, sem nenhuma proteção auditiva.
A questão é que o uso de ambas compressões combinadas se tornou comum na pós-produção de tudo que assistimos e ouvimos em transmissão de rádio e TV.
Agora, ouça toda essa compressão em um sistema hi-end e você perceberá instantaneamente o quanto a música se torna enfadonha e cansativa. E, no entanto, os revisores críticos de áudio ‘moderninhos’ fazem uma verdadeira campanha para que, nos eventos de hi-end, as músicas para apresentar os sistemas sejam o que o consumidor (também ‘moderninho’, claro), consome.
Diria que essa proposta é a mais sem nexo que alguém pode sugerir. Pois se colocarmos esses ‘exemplos’ musicais em um sistema hi-end, o que irá ocorrer? Toda a compressão exagerada será exposta de uma maneira ‘visceral’, fazendo com que o tiro saia pela culatra, já que não irá realçar nenhuma virtude do sistema e, ainda por cima, irá escancarar os erros grotescos feitos do momento da captação a masterização.
Quer exemplos? Tenho aos montes para apresentar, pois essa ideia está ganhando corpo nos Hi-End Shows pós-pandemia, em todos os continentes.
E mais ainda nos vídeos dos revisores ‘moderninhos’.
Cada vez que escuto todos esses exemplos, fico imaginando o que o expositor deseja estar demonstrando de qualidades do sistema com o exemplo escolhido. E, dos ouvintes, o que eles estão observando para avaliar a performance do sistema.
Mas não pense que olho apenas para um lado dessa realidade, amigo leitor, pois os expositores no mundo todo também têm sua parcela de culpa, quando insistem em apresentar gravações ‘audiófilas’ pobres artisticamente, fazendo com que os Hi-End Shows com esse repertório ‘surrado’, soem como piada repetida e comida requentada.
Existem milhões de gravações recentes e relançadas, artisticamente maravilhosas, e que estão prontas para serem descobertas e apreciadas em bons sistemas hi-end.
Então, voltemos à questão central desse tema: o que nos impede de criar referências consistentes em que todos possam observar o mesmo resultado?
Preguiça? A ilusão de que nascemos com nossa audição já refinada, então não temos nada que aprimorar, ou a desculpa da vez de que ‘cada um escuta de uma maneira’, então não há como se criar referências coletivas que estabeleçam critérios confiáveis de avaliação?
Ou, como os objetivistas defendem, que tudo é apenas uma questão de interpretar as medições e tudo estará resolvido?
Acho que temos um pouco de cada uma dessas razões, para estarmos sempre justificando nossas escolhas e critérios ao julgar se determinado setup está certo ou errado.
O interessante é que, quando um audiófilo julga ter chegado ao topo do que acha correto, e um outro audiófilo aponta alguma limitação ou problema, toda sua segurança se dissolve como um castelo de areia. E se, mais de um audiófilo reforça aquele mesmo ponto, o que existia de certeza, vai por ralo abaixo.
Quando assistimos a um debate entre dois estudiosos e conhecedores do assunto debatido, por mais que tenhamos uma opinião formada, aquele debate sempre será enriquecedor a quem assistiu.
No entanto, quando só um dos debatedores tem o que chamamos de ‘conhecimento de causa’, o debate tende a ser um nocaute técnico – e muitas vezes até constrangedor de ver alguém que se apresentava como especialista de algo, ser ‘desmascarado’ publicamente.
O audiófilo, por natureza, é inseguro – dizia meu pai. E o fato dele achar que sabe sem, no entanto, ter certeza de que realmente sabe, é o seu tormento diário. Pois ele sabe que a qualquer momento suas crenças podem evaporar, e ao se expor mostrando seu setup, esse risco aumenta exponencialmente.
Diria que nos meus 65 anos, vi poucos audiófilos realmente seguros de sua trajetória e escolhas. E esses poucos sempre tiveram uma postura muito segura, tanto em apresentar seus sistemas como de explicar como chegaram àquele resultado.
E nunca vi nenhum audiófilo ‘seguro’ ter aberto mão de buscar referências musicais ao vivo, de música não amplificada, para ir lapidando suas escolhas e colocando em prática esse conhecimento. Dá gosto conversar com esses audiófilos, que a maioria esmagadora joga esse termo fora, resgatando o termo melômano, que ele um dia foi quando iniciou sua longa jornada.
Ninguém nasce audiófilo, lembre-se disso, nascemos apaixonados por música, e essa paixão é tão arrebatadora que cada pequeno elemento que nos faça ficar mais próximo da música que amamos irá ser desejado. Aí quando vemos, já estamos ‘picados’ pela audiofilia. Mas essa não é nossa razão de viver, e usaremos esses meios somente até chegarmos ao nosso primordial objetivo.
O que ocorre é que muitos nessa jornada, perdem o objetivo inicial e tornam-se audiófilos em tempo integral. Eu diria que quando chegamos a esse ponto de radicalização, o termo certo deveria ser ‘aparelhófilo’, pois o que passa a ser o objetivo central, muda de patamar, pois deixamos de buscar o setup ideal dentro de nosso orçamento, para ficar compulsivamente trocando de equipamento sem saber ao certo o que realmente desejamos.
Esse ‘efeito colateral’ é muito triste, pois leva muitos a diminuírem dramaticamente sua coleção de discos a apenas uma dezena de faixas, que serão usadas como uma bússola para a escolha de novos equipamentos.
Conheci dezenas de casos, nos 28 anos da revista, e todos sem exceção em um momento acabam abandonando o hobby, não sem antes ter se distanciado da família e dos amigos, tornando-se pessoas tristes e solitárias.
Como diria o poeta Vinicius de Moraes: “São demais os perigos dessa vida”.
Para você que chegou até aqui, e começou agora sua paixão pelo hobby, lembre-se: não se sai à busca de algo se não sabemos o que estamos almejando e onde temos mais chance de encontrar o que queremos.
Mesmo o audiófilo mais experiente errou muito antes de acertar, e o que separa o que ‘chegou lá’ do que se frustrou ao final da caminhada, é uma única coisa: Referência.
Como escrevi acima, o audiófilo seguro é aquele que soube exatamente onde ele tinha que basear todas as suas escolhas, e jamais deixou de afinar sua audição toda vez que se sentiu inseguro ou perdido.
Ir pelo caminho proposto pelos revisores ‘moderninhos’, os quais não têm a mínima ideia por onde iniciar essa trajetória e se acham capazes de ditar regras, diria que esse será o início do fim do Hi-End.
O que acho mais lamentável é que justamente nesse momento o mercado conseguiu achar seu ponto de equilíbrio, e nunca tivemos tantos produtos excelentes a preços com os quais muitos podem se aventurar a ter um setup Hi-End.
Se queremos desfrutar desse momento auspicioso, devemos começar fazendo o que está ao nosso alcance: termos Referências seguras para saber se o que estamos ouvindo está correto ou não.
Você está disposto a dar esse passo?