Playlists: O PIANISTA QUE SE LANÇAVA EM SUAS IDEIAS SEM HESITAR

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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Morreu aos 92 anos mais um gigante do jazz: o pianista Ahmad Jamal, cujo amigo Miles Davis chamava de “o arquiteto dos espaços musicais”.

Talvez se referindo à maneira com que ele compunha e executava suas ideias musicais, sem nunca hesitar, por mais que a arquitetura sonora de suas composições fosse complexa e de difícil entendimento por grande parte do público.

Mas essa falsa impressão imediatamente se desfaz se o ouvinte também colocar de lado suas abstrações do que seja agradável ou não no jazz, e se propor a ouvir atentamente o que Jamal nos apresenta com suas belas composições.

Vou facilitar a vida do leitor que não conhece esse pianista, e pedir para que ele ouça em seu sistema, confortavelmente, sua obra mais conhecida e executada por dezenas de outros trios, e até por artistas do hip hop: Poinciana, composta quando aos 27 anos ele ouviu um baterista fazendo uma levada interessante e ele resolveu musicar aquela batida.

Começar por essa obra tão leve e tão complexa em sua mudança de andamento, é a melhor maneira de ser apresentado a esse grande pianista.

OUÇA AHMAD JAMAL – DIGITAL WORKS, NO TIDAL.

DIGITAL WORKS (ATLANTIC, 1986)

Então o primeiro disco que indico é o Digital Works, de 1986, lançado pela Atlantic Records, um disco duplo que tenho a primeira prensagem e ouço com enorme regularidade.

Poinciana é a primeira faixa do lado A (no LP, claro). Mas esse disco tem outras pérolas como: But Not for Me, Midnight Sun em que Jamal toca em um Hammond, Footprints em que fica evidente sua admiração por outro grande pianista, o cubano Chucho Valdés, a deliciosa One com levada soul, além de standards como Misty, Time for Love e Wave.
E mesmo tocando clássicos como Misty ou Wave de Tom Jobim, ele nos brinda com uma execução muito pessoal, quase recriando esses temas e os tornando seus.

OUÇA AHMAD JAMAL – ALL OF YOU (AO VIVO), NO TIDAL.

ALL OF YOU (ARGO, 1962) – AO VIVO

Uma vez um amigo me perguntou de onde vinha essa admiração por Ahmad Jamal, e no momento não soube responder, já que esse não foi um músico que ouvi na minha infância na casa dos meus pais. Pois só vim conhecer esse pianista através de um professor de literatura no colegial, que me mostrou uma fita cassete justamente com faixas desse álbum. E ao ouvir All Of You, Star Eyes e a minha preferida pelo impacto de primeira audição – We Live in Two Different Worlds, me chamou a atenção o equilíbrio e a integração do trio, que até então só havia escutado nas gravações do trio do Bill Evans com o baixista Scott La Faro.

Com esse resgate de memória, foi que consegui formular minha resposta ao amigo e dizer que na extensa carreira de Jamal, ele teve uma dezena de bateristas e baixistas, e em todas as formações existe uma consistência tão sólida que parece que sempre tocaram juntos, pois independente do trio, a ‘sonoridade’ que Ahmad Jamal buscava sempre se fez presente.

Isso, meu amigo, é mérito de uma liderança que sabe exatamente o que deseja, sem, no entanto, jamais podar a colaboração do grupo.

Ouça, por exemplo, You’re Blase com sua suavidade e texturas limpas, tanto do baterista como do baixista, em contraste com o vigor e densidade de Jamal, e você entenderá o que estou tentando mostrar, como se consegue esse equilíbrio tão tênue em que se acentua a tensão, e se aquieta com tanta precisão e naturalidade.

Esse era o grande mérito de Ahmad Jamal, tanto na escolha dos músicos como na sua maneira de extrair o melhor de cada um para o melhor resultado coletivo possível.

Outro belo exemplo, ainda nesse disco, é April in Paris em que o crescendo vai sendo tensionado até o final, mas ainda é possível dar ao ouvinte a oportunidade de respirar e não perder nenhum detalhe.

OUÇA AHMAD JAMAL – ROSSITER ROAD, NO TIDAL.

ROSSITER ROAD (ATLANTIC, 1986)

Quando George Duke partiu para carreira solo, em uma de suas primeiras apresentações no festival de Montreux perguntaram para ele quais eram suas principais influências musicais, e ele respondeu que muitos músicos o ajudaram a achar seu caminho, no entanto um havia sido o que lhe chamou a atenção para a importância de se ter uma identidade: Ahmad Jamal.

Cada disco que escutava de George Duke – e indiquei vários nos 27 anos da revista, e mostrei em vários dos nossos cursos faixas desse tecladista pela qualidade artística e técnica – ficava em minha mente fazendo um paralelo com esse trabalho de 1986 do Jamal, em que ele explorou de maneira magistral vários estilos.

E colocou o piano em primeiro plano em todas as faixas, mostrando o quanto ele era um exímio pianista.

É um disco que certamente irá agradar aos mais jovens pelos arranjos modernos e a qualidade e criatividade dos temas.

Abra a audição desse disco não pela faixa 1 – Milan, e sim pela faixa 6 – Autumn Rain. E depois que tiver uma ideia da proposta desse trabalho, escute o disco todo.

OUÇA AHMAD JAMAL – PITTSBURGH, NO TIDAL.

PITTSBURGH (ATLANTIC, 1989)

Jamal, no final dos anos 80, em uma entrevista à revista Jazz italiana, disse que faltava a ele conseguir realizar o sonho de gravar com uma big band, com a qualidade e os recursos existentes, que na década de 60 não existiam.

Seu desejo chegou aos ouvidos do presidente da Atlantic Records, e este lhe deu carta branca para realizar o projeto.
É um dos meus ‘discos de cabeceira’, e quando estou querendo ouvir temas mais bem elaborados e repletos de nuances como textura, variação dinâmica, arranjos primorosos e temas criativos, esse é um dos primeiros discos que me vem à mente, e sempre gosto de iniciar a audição pela faixa 6 – Cycles.

Em que o contrabaixo elétrico conversa o tempo todo com o piano, e ambos conversam sobre uma cama harmônica que hora é feita pelo naipe de cordas, e hora pelo naipe de sopros e madeiras.

Meu amigo, é um deleite ouvir esse disco em um bom sistema, com todas as luzes apagadas, e ser transportado para a sala de gravação junto com o trio de Ahmad Jamal e a orquestra toda.

Espero que você aprecie estas dicas, e faça sua homenagem póstuma ao pianista de belas arquiteturas musicais.
Mês que vem, iria tentar voltar à normalidade, mas infelizmente na segunda-feira dia 25 de abril, recebi a triste notícia da morte de Harry Belafonte, aos 96 anos.

E não dá para não homenagear esse ativista e cantor, que faz parte da vida de milhares de audiófilos em todo o mundo.

Até junho, amigo leitor.

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