Omar Castellan
revista@clubedoaudio.com.br
A Rússia do século XX criou uma geração de músicos ecléticos que rejeitaram o ‘modernismo’, ou, então, que foram obrigados a rejeitá-lo, como é o caso de Sergei Prokofiev (1891-1953). Ele foi, simultaneamente, classificado de revolucionário e neoclássico, soube fundir as formas tradicionais, os acentos românticos e alguns empréstimos da linguagem contemporânea no seio de um estilo perfeitamente pessoal. Glorificador do regime comunista, Prokofiev é o descendente direto dos músicos da antiga Rússia. Segundo a data e a circunstância da composição, as suas obras serão geniais ou decadentes, e cada um dos seus gestos será interpretado como sinal indubitável da filiação em uma doutrina. Apesar da evolução inerente a todo artista, a sua obra apresenta, no plano estético, uma unidade admirável, e embora esta seja mascarada por tomadas de posição política, as mudanças de regime nunca eclipsaram a sua inspiração – a ‘grande mãe’ chamada Rússia. Para compreender a música de Prokofiev, é preciso não esquecer esse dado crucial.
Depois da Revolução de 1918, Prokofiev se afastou da Rússia durante quinze anos, acreditando que a vida musical soviética não podia ser propícia ao reconhecimento dos seus talentos, tanto de pianista quanto de compositor. Viveu, então, entre a França, os EUA e a Alemanha; além das óperas O Amor das Três Laranjas e O Anjo de Fogo, esse período foi o de muitos balés escritos para os espetáculos de Diaghiev (Chout, Pas d’Acier, O Filho Pródigo), das Segunda, Terceira e Quarta Sinfonias e dos três últimos Concertos para Piano. Porém, a partir de 1927 começa a renovar seus contatos com a URSS, para onde fez várias viagens, antes de voltar definitivamente para lá, em 1936 (durante os mais terríveis expurgos stalinistas). De 1938 em diante, não teve mais autorização para sair da União Soviética, e se tornou compositor oficial, sob as ordens do regime. A partir de então, seu estilo musical se aplaina, e é marcado por um retorno cada vez mais claro em direção à tonalidade e emprego do folclore; torna-se um músico progressivamente clássico na forma e profundamente imaginativo no plano harmônico, capaz de arrebatamentos implacáveis ou de um lirismo inefável e ‘inocente’, que fará a gloria dos seus bailados ‘soviéticos’, Romeu e Julieta e Cinderela. A sua causticidade juvenil e a verve iconoclasta cederam terreno perante um sopro épico que marca o valor das suas partituras ‘de guerra’ – a Quinta Sinfonia e as Sonatas para Piano nos 6, 7 e 8. Em 1948, no contexto da campanha ‘antiformalista’, Prokofiev e vários músicos soviéticos (Shostakovitch, Khachaturian) enfrentaram ataques violentos e injustificáveis, de modo que os pouquíssimos espaços que tinham sobrevivido às duras exigências de uma burocracia obtusa secaram de vez, apagando os seus fulgores musicais anteriores. Até mesmo a morte de Prokofiev, em 1953, foi eclipsada pela de Stalin, no mesmo dia.
Algumas das obras-primas de Prokofiev fizeram dele um dos grandes músicos do século XX, e sua música corresponde, de todo o grande repertório moderno, à mais próxima da sensibilidade popular. A análise de suas composições concertantes constitui um começo apropriado, pois ilustram claramente as mudanças de ponto de vista criador causadas pelo impacto dos seus anos fora da URSS e do seu regresso. Os Dois Concertos para Violino são trabalhos dramaticamente contrastados, compostos com um intervalo de 18 anos, e com um raro significado autobiográfico. O Concerto no 1 (1917), angular e enérgico, apresenta extraordinário potencial melódico, incorporando, entretanto, uma certa dose de ironia, humor e um toque de grotesco. Essa partitura marcou uma época de singular lirismo na obra de Prokofiev, que, um ano antes, já tinha assombrado o mundo com sua Suíte Cita, cópia de A Sagração da Primavera, com conglomerados de massas sonoras, ritmo alucinante e delírios mitológicos. O Concerto no 2 (1934) constitui um reflexo da vida nômade que ele levava, pois foi composto em uma variedade de lugares devido às digressões de concertos que realizava pelo mundo. O seu expressivo segundo andamento parece um prenúncio daquilo que virá a ser a magnífica música de amor de Romeu e Julieta, e o movimento final, com ritmo de uma rústica dança campestre é, provavelmente, o mais russo de todos os seus andamentos. Pianista de altíssimo nível, Prokofiev dedicou ao instrumento algumas das suas páginas mais memoráveis, entre as quais sobressaem os Cinco Concertos para Piano e Orquestra. Um traço notório distingue o Concerto no 3 – seus acentuados aspectos sardônicos e paródicos; as excepcionais inovações melódicas e rítmicas transformaram-no, sem dúvida, no mais popular de todos os concertos de Prokofiev.
O ciclo sinfônico de Prokofiev representa uma visão bastante completa da sua evolução pessoal. As sinfonias refletem, claramente, as preocupações técnicas e estéticas que teve a cada momento. Entre a Primeira, obra de um autor polêmico, e a Sétima, escrita às portas da morte, há todo um mundo de vaivéns ideológicos e um atribulado desenvolvimento vital. As mais famosas são a Primeira e a Quinta, e figuram entre as suas melhores obras. Concebida segundo os modelos formais de Haydn, a célebre Primeira Sinfonia (1917), denominada ‘Clássica’, foi considerada, durante certo tempo, um dos melhores exemplos do Neoclassicismo. Na realidade, Prokofiev escreveu essa sinfonia para desafiar aqueles que o acusavam de maquinismo futurista, iconoclastia, radicalismo revolucionário e de se refugiar no novo, a todo o custo, porque era incapaz de obter resultados originais com os meios habituais. Por isso, concentrou nessa composição toda a sua capacidade de fino humorismo, vertiginosa alegria e despreocupada utilização de motivos de dança galante, mesclados de nostalgia e sorriso irônico. A Quinta Sinfonia (1944) é uma das partituras mais famosas da música soviética; Prokofiev escreveu que ‘nela quisera cantar o homem livre e feliz’. Embora não haja referências explícitas à guerra, a crítica não deixou, desde a primeira execução, de apontar o clima dramático e épico da obra, o sopro lírico, a vastidão das linhas construtivas e o alegre otimismo do final (‘um hino à humanidade e à civilização’), e de relacioná-los com a confiança da vitória do Exército Vermelho sobre os nazistas.
O Amor das Três Laranjas (1921), difícil de encenar, é a ópera mais célebre de Prokofiev, certamente por causa da suíte sinfônica que dela extraiu. Escrita nos EUA, recebeu uma acolhida entusiástica em Chicago, mas foi duramente criticada nos jornais de Nova York, que comentaram ser uma obra de ‘quinze minutos de jazz com variações bolchevistas’. Nessa ópera insólita, mistura de narrativa, comédia e sátira, a música parece rebentar de rir a cada nota, viva, colorida e expressiva, evocando a arte do desenho. No entanto, Prokofiev não se encontrava feliz e confessou a um amigo da pátria distante: ‘O ar de terras estrangeiras não dá alento à minha inspiração, pois sou russo. Tenho que voltar para a minha pátria’. Quando isso ocorreu, no início dos anos 30, extravasa seu júbilo compondo obras repletas de inventividade e beleza. No balé Romeu e Julieta (1935), a ironia, ingrediente fundamental da ‘receita’ de Prokofiev, tão útil para manter a inspiração livre dos excessos retóricos, é acompanhada pelo idílio sentimental, contido, mas autêntico, ternamente efusivo. A beleza das ideias melódicas é complementada pela elegância dos ritmos e das colorações instrumentais. Assim, obteve uma síntese entre a brilhante aridez das primeiras obras e o envolvente caráter poético. Foi durante a espera pela estreia do balé, que Prokofiev realizou as duas primeiras suítes para orquestra e, posteriormente, uma terceira. Suas cenas não são delimitadas rigidamente, e cada regente pode, com efeito, constituir ainda outra nova, escolhendo a seu gosto os extratos do balé. Cheia de vida, alegre e emocionante é a sua peça infantil Pedro e o Lobo (1936), um ‘conto sinfônico para orquestra’, com o objetivo de fazer as crianças conhecerem os instrumentos musicais. O narrador conta uma historia fantástica, cujos personagens são interpretados musicalmente por motivos que atravessam toda a composição. Imponente e perpassada pela grandeza, a cantata Alexander Nevsky apresenta uma arte com objetivos sociais e nacionais precisos. Durante sua última viagem pelos EUA, em 1938, interessou-se, em Hollywood, pelas técnicas da música de cinema. Nesse mesmo ano teve a oportunidade de aplicá-las, quando o cineasta soviético Sergei Eisenstein lhe pediu que compusesse a trilha sonora para o filme Alexander Nevsky; a colaboração entre os dois foi exemplar. O mérito fundamental dessa partitura reside na originalidade dos temas e ideias musicais: por um lado, o povo russo, presente na riqueza e profundidade dos seus cantos, sem retórica e sem ênfase; por outro, os Cavaleiros da Ordem Teutônica, cujo fanatismo místico e sede de poder são expressos por um canto coral isorrítmico, raramente medido, obsessivo, mesmo quando se desenvolve nas mais leves sonoridades, melodicamente estático, desprovido de impulsos líricos. Também, harmônica e instrumentalmente fica bem evidente a diferença entre russos e invasores: ao tonalismo popular dos primeiros, contrapõem-se a politonalidade cruamente dissonante e os duros acordes dos metais, que caracterizam os segundos.
Uma das partes mais relevantes e originais na totalidade das obras de Prokofiev corresponde à sua produção pianística. O piano inconfundível desse compositor reúne os momentos mais típicos e significativos nas obras em que o caráter imediato instintivo se traduz em reluzente mecânica – o tratamento do piano como um instrumento de percussão e a impetuosa força do ritmo a que o timbre seco confere o impulso eletrizante de alta tensão. Não foi por acaso que a denominação de ‘música cubista’ foi aplicada às suas nove sonatas para piano. Três delas foram inspiradas pela Segunda Guerra Mundial (‘Sonatas de Guerra’: a 6ª, 7ª e 8ª), das quais a mais famosa é a Sétima, que foi considerada como uma das mais originais composições russas escritas em 1943. É a mais curta, porém, em alguns aspectos, a mais dura, não somente por retratar os horrores da invasão alemã, como também a insegurança da vida na Rússia de Stalin. O estilo dessa sonata apresenta a característica mista de aspereza e lirismo, mas com uma nova intensidade derivada do agitado espírito da época.
Ecléticos, também, são os russos contemporâneos de Prokofiev como o armênio Khatchaturian e Shostakovich. A carreira de Aram Khatchaturian (1903-1978) representou o modelo soviético da ligação do folclorismo regional com a tradição da Rússia Central –
a herança armênia está bem nítida em suas melodias de grande vitalidade, mas com a forma disciplinada. Apesar de sua linguagem bastante tradicional, suas maiores forças residem no colorido e virtuosidade da orquestra e na ênfase pictórica. Causou sensação com suas três sinfonias e concertos teluricamente selvagens (para piano, de 1936, e para violino, de 1940) e, sobretudo, com os balés Gayaneh (1942), que proporcionou a criação de três suítes para orquestra, e Spartacus (1955-1957). De Gayaneh, são bastante apreciadas e conhecidas a Dança dos Sabres (com seu ritmo enérgico, tema compacto e cromático, e sua pontuação feita de curtos glissandos) e Invenção (música de caráter nostálgico, utilizada na trilha sonora do filme ‘2001, Uma Odisseia no Espaço’, de Stanley Kubrick); o famoso Adagio de Spartacus, uma dança amorosa plena de sensualidade; e alguns trechos da Suíte Masquerade (Valsa e Galope), que frequentemente são apresentados em concertos.
Talvez as palavras que melhor resumem a vida de Dimitri Shostakovich (1906-1975), escritas em uma carta um pouco antes de sua morte, foram: ‘Não posso viver sem compor’. Contraditório, ambivalente, carregado de honras e reconhecimento, mas também cheio de amarguras, dissabores, desprezos e saltos estilísticos forçados, Shostakovich foi o músico fundamental da Rússia soviética – porta-voz da vida artística oficial de seu País, ‘Artista do Povo’, várias vezes Prêmio Stalin, secretário da União dos Compositores e detentor de outros vários títulos. Era uma posição difícil de conservar, pois os dirigentes soviéticos tinham muita desconfiança dos artistas em geral, e consideravam o experimentalismo e o modernismo como ‘hostis aos interesses da classe trabalhadora’. No campo da música, em particular, gostavam que ela fosse ‘patriótica’, isto é, dominada por temas populares, com harmonias que todos pudessem compreender, e contivesse, sempre que possível, a glorificação do espírito e das realizações revolucionárias. Shostakovich, no entanto, admirava o modernismo agudo, e a sátira de compositores como Milhaud e Prokofiev. Na década de 20, dedicou-se a estabelecer uma ligação entre o estilo parisiense, jazzístico, e os motivos soviéticos, permitindo-lhe chegar à realização de uma obra tolerada pelas autoridades e, também, gratificante para ele. Nesse período, ele procurou, sem restrições, a sua linguagem musical. Nada o afastava e de tudo se serviu: do maquinismo, onomatopeias, atonalismo livre, serialismo, dissonâncias explosivas, ritmos sincopados das danças da moda, farrapos de jazz e marchas paródicas. Mas os tempos estavam a mudar na União Soviética: falecido Lenin, aumentava, progressivamente, a influência de Stalin. A ‘Nova Política Econômica’ foi dada por terminada e voltou-se, com implacável dogmatismo, para os postulados econômicos estritamente comunistas. As portas da Rússia, abertas à Europa durante vários anos, fecharam-se novamente. Em 1936, o sonho transformou-se em pesadelo para Shostakovich, ocorrendo-lhe o desastre que tanto temia e evitava – Stalin irritou-se com sua ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, achando-a dissonante e com montagem decadente, e, assim, o compositor caiu oficialmente na desgraça. Depois de algum tempo, e à custa de laboriosos esforços, ele reconquistou seu prestígio com a Sinfonia no 5, com o subtítulo ‘Reação construtiva de um artista soviético às merecidas críticas que recebeu’, e consolidou sua nova reputação com cantatas patrióticas e música de fundo para filmes heroicos (páginas ocas, otimistas, com vulgaridade embaraçosa e falso brilho). Apesar disso, sua aceitação jamais chegou a ultrapassar os limites da precariedade, vivendo no ostracismo até a sua morte.
A música de Shostakovich oscila entre o inspirado e o trivial, atingindo uma estatura notável e vasta amplitude de expressão nas suas quinze sinfonias e nos quinze quartetos de cordas, mostrando todos os aspectos de sua ciência musical; os seus seis concertos (dois para piano, dois para violino e dois para violoncelo) também contêm música de qualidade, refletindo a evolução de seus vários estilos. Nas sinfonias, apresenta influências de Tchaikovsky, Borodin, Glazunov e, particularmente, de Mahler, que foram assumidas e colocadas à disposição de uma personalidade multiforme, alternadamente épica, lacerante ou sarcástica. Como muitos compositores soviéticos de sua geração, tentou reconciliar as revoluções musicais de sua época com a necessidade de dar voz ao socialismo revolucionário, de forma mais evidente nas Sinfonias no 2 (Ao Outubro) e no 3 (O Primeiro
de Maio), ambas com finales corais. A Sinfonia no 4 já possui a dimensão, intensidade e complexidade mahlerianas, e embora já tivesse sido concluída em 1936 (só foi executada em 1961), foi colocada de lado para não despertar novas críticas ferozes (no mesmo ano já tinha sido rejeitada sua ópera Lady Macbeth). Em vez disso, no ano seguinte compôs a Sinfonia no 5, muito mais convencional em sua forma e veia melódica. Trata-se de uma obra autobiográfica que apresenta o drama vivido e superado pelo compositor, e que se conclui pelo grito final de vitória ou de desafio. Em pleno período de expurgos stalinistas, em que a angústia coletiva estava no seu apogeu, a tensão emocional da sinfonia foi percebida pelo auditório com uma acuidade excepcional. Embora tenha voltado às boas graças das autoridades e continuasse a ser popular, nessa obra pode-se detectar uma mensagem subjacente repleta de ironia no seu heroísmo oco. Das quatro sinfonias seguintes, a no 7 (Leningrado, 1941) corresponde a uma obra épica, com um programa enaltecedor de vitória bélica (foi iniciada quando Leningrado, atual São Pertersburgo, estava sob cerco alemão), enquanto as outras exibem mais abertamente uma dicotomia entre otimismo e dúvida introspectiva, expressa com gradações variadas de ironia. A morte de Stalin, em 1953, abriu caminho para uma estética menos rígida com a Sinfonia no 10, a mais bela criação de Shostakovich – constitui um magnífico exemplo de sua música ‘particular’, em que as passagens mais sentidas e comovedoras chegam a utilizar um motivo baseado em letras de seu próprio nome (DSCH, que correspondem, na notação musical alemã, a ré, mi bemol, dó e si natural). Diz-se que o seu demoníaco segundo movimento representa o compositor a dançar ao ritmo de Stalin. As Sinfonias nos 11 e 12 são programáticas sobre os anos cruciais da história revolucionária (1905 e 1917), mas, em seguida, a no 13, de 1962, se revelaria sua obra mais francamente crítica, expressando em tons dilacerantes o genocídio de Babi Yar, durante a Segunda Guerra Mundial. A Sinfonia no 14 (1969) marca o ponto mais elevado da criatividade sinfônica de Shostakovich, através de um ciclo de canções sobre a mortalidade. Aquilo que na obra anterior era evocação do passado por um indivíduo em atitude de vida, nessa é meditação de uma experiência por um protagonista em atitude de morte. Nunca a voz ‘privada’ do compositor foi tão explícita em uma obra sinfônica. Ele recorre a uma série de doze sons, não com caráter estrutural, mas expressivo. Na Sinfonia no 15 (1971), com suas flagrantes citações de Rossini e Wagner, Shostakovich evoca, sem amargor e rancor, o seu passado e sua obra.
A música de câmara de Shostakovich, durante muito tempo menosprezada em relação às suas sinfonias, revela-se como o essencial de sua herança espiritual. Ela exige um realismo sonoro assim como um poderio espiritual por parte do ouvinte, o que ainda limita a sua penetração no Ocidente. Contudo, a sua autenticidade, tanto humana quanto étnica, permite-lhe fazer figurar entre grandes ensembles internacionais. À parte dos quartetos, talvez a sua melhor obra, seja o quase clássico Quinteto para Piano e Cordas (1940), leve, atraente e admirável – ele começa com toda a solenidade, mas logo surge um dos seus esfuziantes scherzi de dança russa e um finale que evoca uma parada circense; aqui, os dois aspectos da personalidade de Shostakovich estão brilhantemente justapostos. O Quarteto no 7, de 1960, é uma de suas partituras mais íntimas, e foi dedicado à memória de sua primeira esposa, com tom pacífico e tranquilo. Ainda mais íntimo é o Quarteto no 8, também de 1960, que apresenta algo de autobiográfico, citando outras obras do autor e explorando musicalmente as letras de seu nome, como na Sinfonia no 10 ; dedicou essa famosa e comovente composição ‘à memória das vítimas da guerra do fascismo’, satirizando os dramas bélicos no feroz segundo movimento e na sardônica valsa que se lhe segue. Os cinco últimos quartetos do ciclo são dominados, como quase todas as obras da última fase de Shostakovich, pela ideia de morte, expressa em suas texturas rarefeitas, com lentidão e gravidade.
Sendo ele próprio excelente pianista, Shostakovich conheceu o instrumento tão intimamente como só é possível a um virtuose. Sua música para piano solo é robusta, direta e enfática. Sem jamais carecer de expressão nova, escreveu páginas de efeitos extraordinários como os Vinte e Quatro Prelúdios para Vinte e Quatro Tonalidades, Op. 34 (1933) e os Vinte e Quatro Prelúdios e Fugas, Op. 87 (1951). Desde há muito tempo, o artista não pode escapar de seu papel na história e na sua sociedade. É triste que um homem como Shostakovich, de tal gênio e com tanto a dizer, não conseguisse atingir o verdadeiro apogeu de sua capacidade por uma questão de desaprovação política. Foi um belo compositor que poderia ter atingido alturas ainda maiores, em algum outro lugar ou época. Nenhum músico, exceto Mahler, conseguiu tornar-nos tão participantes e ‘cúmplices’ de seu tempo, mundo, vida e experiências como ele. Na sua música está quase toda a história do século XX – revolução, liberalismo, guerra, alterações sociais, emancipação da mulher, totalitarismo, desencanto, marxismo, antissemitismo, tomada de consciência, realização pessoal, absurdo da morte e psicanálise. Shostakovich provou que a música é infinitamente flexível e pode adaptar-se a qualquer propósito, mas os seres humanos não. Nele havia um grande espírito que sobrevivia no mais puro brilho. Se um criador se distingue pela sua voz, isto é, pelo assumir de um estilo e pelo desenvolvimento do mesmo por meio de uma linguagem, Shostakovich, com a sua ‘voz’ inconfundível, das primeiras às últimas obras, será sempre considerado como um dos criadores mais pessoais e proeminentes do século XX.
Na América, a influência conjunta de Stravinsky e de Debussy originou uma quarta onda de nacionalismo (a primeira foi impulsionada por Weber, despertando a Rússia de Glinka, a Polônia de Moniuszko, a Hungria de Erkel, a Dinamarca de Gade; a segunda onda, influenciada por Schumann e Liszt, chegou à Rússia dos ‘Cinco’, à Boêmia e Morávia de Smetana e Dvorák, à Escandinávia de Grieg; e a terceira, sob a égide de Debussy e do impressionismo, provocou a renascença musical na Inglaterra e na Espanha). À música ‘bárbara’ de Stravinsky (até então desprezada, porque era incompatível com o sistema tonal em vigor) foi acrescentado o elemento de requinte civilizado de Debussy, despertando o neonacionalismo nos novos Países americanos, que tiveram a coragem de empregar os ‘modos’ e melodismos daqueles compositores europeus. Os Estados Unidos, na música, não produziram nada de comparável com a sua grande literatura, apesar de apresentarem as melhores orquestras do mundo e casas de óperas famosas, ou de acolherem compositores e maestros famosos (Dvorák e Mahler) e refugiados (Toscanini, Stravinsky, Bartók, Schoenberg e Hindemith). Os autores do fim do século XIX tinham os olhos postos no romantismo europeu e que, por vezes, se viam a professar um nacionalismo que só viria a dar frutos no século seguinte. Um compositor representativo dessa tendência ingênua seria John Philip Souza (1854-1932), autor de marchas populares como Stars and Stripes, Washington Post ou The Liberty Bell, que captou em sons a América poderosamente ambiciosa: aí soam as caravanas dos pioneiros do Oeste, o canto dos colonos diante da ilimitada terra fértil, o galope dos cowboys conduzindo boiadas e lutando contra os índios. Pecaram nessa ingenuidade muitos outros compositores, com o agravante da ausência de uma espontaneidade semelhante. É o caso de Ferde Grofé (1892-1972), com a sua Suíte Grand Canyon, obra do estilo ‘jazz sinfônico’, sem muitas pretensões. Apesar de limitado, nela ele demonstrou perícia no que tentou fazer – aliou mestria técnica ao frescor do idioma e ao vigor, tornando-a uma obra de interesse para o grande público.
Depois do estímulo da presença de Dvorák na virada do século, a verdadeira música norte-americana vai ser criada por compositores nascidos no fim do século XIX: Roy Harris, Virgil Thomson, Walter Piston, George Gershwin e Aaron Copland, quase todos discípulos de Nadia Boulanger, em Paris, que traria a força e a sabedoria das formas clássicas. Decano do classicismo e um dos críticos musicais norte-americanos mais aguçados (escreveu para o Herald Tribune, de New York, durante 14 anos), Virgil Thomson (1899-1984), que sofreu enorme influência de Satie, é o mais ‘francês’ desse grupo, nunca se afastando da mais estrita concepção formal. Ocupou lugar de destaque na ópera norte-americana (Four Saints in Three Acts, The Mother of us All), mas também abordou outros gêneros musicais: mostrou-se nacionalista em obras orquestrais significativas, na Symphony on a Hymn Tune (1928), cujo tema procede da música religiosa da seita batista sulista, e produziu música para filmes documentários como The Plow that Broke the Plains (1936), The River (1937) ou Louisian Story (1948), peças da maturidade, escritas no mais deliberado diatonismo e com base no folclore norte-americano. O nacionalismo de Roy Harris (1898-1979) apresenta raízes no pós-romantismo. Em sua obra destacam-se importantes sinfonias, sendo a Terceira (1937) a mais famosa, uma autêntica arte musical norte-americana. Mesmo apresentando apenas um movimento (de 15 a 17 minutos de duração), essa obra expressa grande energia, rigor e poder dramático. Um nacionalismo e folclore mais evidentes são ilustrados no belo scherzo, Kentucky Spring (1949). Destacou-se, também, na música de câmara e vocal, as quais lhe asseguraram um lugar honroso na história da música norte-americana.
Walter Piston (1894-1976) foi um dos mais ilustres e típicos discípulos de Nadia Boulanger, sendo, desse modo, um decidido adepto do neoclassicismo, também presente no seu conhecido manual de orquestração (‘Harmony’), ainda amplamente utilizado. Sua música não procura novas cores, ritmos ou harmonias, e ele não é nem um experimentador ou desbravador. Ao contrário, decodifica em vez de inventar. Sua imaginação expõe excelentes ideias, e com esse material constrói sua música sem palavras, títulos descritivos ou literários. Corresponde a um compositor norte-americano que fala o idioma internacional da música pura. Entre as suas obras é bastante conhecido o pequeno balé The Incredible Flutist (1938), que sugere a chegada do circo a uma aldeia. Podem-se encontrar os elementos característicos de sua criatividade em sua Segunda Sinfonia (1943), herança da forma clássica com ecletismo entre o cromatismo e o diatonismo pós-romântico – deliberados contrastes de tempos (desde adagios cheios de lirismo até vivaces coloristas), grande domínio da escrita contrapontística e temas com aspectos folclóricos e nacionalistas. Howard Hanson (1896-1981) é considerado, juntamente com Chadwick e Charles Ives, o ‘pai’ da sinfonia norte-americana, apresentando influências de Sibelius, Grieg e Respighi (seu professor em Roma, no início dos anos 20). Suas sete sinfonias, impregnadas de um elegante toque de beleza, apresentam um intenso lirismo e uma linguagem diatônica comovente que não chegam a camuflar a sua estrutura bem elaborada. Hanson foi um compositor de preferências conservadoras pelos estilos e formas aceitas, não se interessando em abrir novos caminhos. O seu credo artístico consistia na crença da necessidade de uma absoluta liberdade de expressão criadora. A sua obra-prima é a Quarta Sinfonia, partitura elegíaca dedicada à memória de seu pai – expressão musical altamente pessoal e emocional, concisa e muito sucinta, levando apenas vinte minutos para ser executada.
Dos compositores norte-americanos, foi George Gershwin (1898-1937) o primeiro a dar um salto para a fama mundial. Ficou famoso através de suas canções de grande sensibilidade, extremamente melódicas, de sua música de concerto e folclórica negra, e da ópera, contribuindo muito para criar a síntese entre o jazz e as tradições clássicas. Durante sua vida, por apresentar cultura musical pobre, Gershwin foi vítima de um preconceito muito comum entre os músicos e o público dos concertos ‘clássicos’: como levar a sério este ‘fabricante’ de operetas e de cançõezinhas populares? Ravel não pensou assim, quando respondeu ao compositor norte-americano, que lhe tinha pedido conselhos de composição: ‘Não tenho nada para lhe ensinar’. A obra de Gershwin é um exemplo cristalino dos sentimentos humanos em uma mescla perpétua, renovando a si mesma. O espírito de sua obra está impregnado em tudo o que fez, e a sua síntese está concentrada em algumas peças. Seu dom excepcional de melodista resultou na produção de cerca de 500 canções, com a colaboração de seu irmão, Ira, autor das letras. De seus musicais da Broadway, surgiram obras-primas como S’Wonderful, de Funny Face, e The Man I Love e Fascinating Rhythm, de Lady, Be Good. A lista é enorme e inclui verdadeiros clássicos de ouro como Embreaceable You, I Got Rhythm, Somebody Loves Me e Someone to Watch Over Me, todos, também, oriundos da Broadway. Em 1924, atingiu a fama com Rapsody in Blue, para piano e orquestra, obra na forma de concerto para a jazz band de Paul Whiteman, cuja instrumentação esteve a cargo de seu amigo Ferd Grofé. Apesar de seus defeitos técnicos, a música transborda de tão inexaurível vitalidade, que até hoje permanece viva e cheia de encanto como no dia de sua estreia. A Rapsódia apresenta grande variedade de estados de espírito e atmosfera. Ora, brilhantemente espirituosa e satírica, ora, com momentos de drama intenso ou de meditação, como nas cadências do piano, nela há, também, passagens de terna beleza, como o glissando da abertura para clarinete e o inesquecível movimento lento. As páginas de alegria e jovial abandono encontram-se idealmente contrabalanceadas por outras de graça e encanto raro. No ano seguinte, Gershwin apresentou seu Concerto em Fá, para piano e orquestra, que despertou de imediato a admiração de Ravel, que afirmaria, mais tarde, que essa obra teve enorme influência em sua música. Obra ‘eslavizante’ sob inúmeros aspectos, como nos temas líricos semelhantes aos de Tchaikovsky ou Rachmaninov, esse concerto conjuga, com clareza, o espírito modernista (a influência do jazz) com o clássico (a divisão em três movimentos – vivo, lento, vivo, quase como uma sonata). Na primavera de 1928, Gershwin foi passar as férias na Europa e lá compôs o poema sinfônico, Um Americano em Paris, que foi aplaudido pelo público dos cinemas e pelas elites. Nessa obra ele teve um duplo propósito: interpretar a agitação e alegria de Paris e, também, sugerir as saudades da pátria que um norte-americano sente enquanto passeia pelos bulevares parisienses. O programa implicou uma importante disciplina de tratamento dos diversos temas sob a forma sinfônica. O seu êxito inicial foi uma das muitas ilusões de uma época que em breve iria despertar e com não pouca brutalidade. A indiscutível obra-prima de Gershwin é a ópera Porgy and Bess (1935). Encontram-se aí todas as condições para o seu triunfo: uma ação humana cativante que ocorre no bairro negro Catfish Row, em Charleston, em que sexo e crime se transformam em amor e humanidade; a conjunção de Spirituals, blues e o canto operístico tradicional, entrelaçados de uma maneira genial, e acompanhados por uma grande orquestra de jazz que cintila em centenas de cores; e melodias encantadoras de fácil assimilação (Summertime; Oh, I Got Plenty o’Nuttin’; Bess, You Is My Woman Now; My Man’s Gone Now; e It Ain’t Necessarily So). Talvez Gershwin soubesse que aquilo que escreveu ficaria, para sempre, enraizado na alma de seu povo e de todos que alguma vez escutassem suas músicas. Suas canções fazem parte da memória coletiva do século XX. E é impossível imaginar New York sem a Rapsody in Blue, da mesma maneira que é impossível imaginar os Estados Unidos sem Porgy and Bess.
Assim como Gershwin, Aaron Copland descende de uma modesta família de emigrados russos (1900-1976). Considerado um típico representante do vitalismo nacionalista ianque, tonal e classicista, foi, entretanto, um dos mais inquietos músicos de seu País. Com os ensinamentos de Nadia Boulanger, em Paris, após a Primeira Guerra Mundial, desenvolveu sua vocação de compositor e conheceu o mundo sonoro de Ravel, Stravinsky e dos músicos do Grupo dos Seis. De volta aos Estados Unidos, Copland adotou um estilo ‘cosmopolita’, com toques de neoclassicismo, apoiando-se em reminiscências do jazz, do folclore norte-americano e sul-americano, bem como da politonalidade, permeados, frequentemente, por um lirismo vigoroso. Ele compôs as suas grandes obras de caráter deliberadamente norte-americano quando os Estados Unidos se convertiam em uma grande nação, orgulhosa de sua exígua história, do seu conceito de liberdade e do indivíduo e do seu pragmatismo filosófico e ético; na mesma época, o cinema empreendia as diversas revisões idealizadas do passado norte-americano, com a cristalização e aperfeiçoamento do western. Copland escreveu música para esses filmes e compôs, para o teatro, obras de louvor à sua paisagem e aos seus habitantes: a ópera The Second Hurricane (1936) e os bailados Billy the Kid (1938), Rodeo (1942) e, sobretudo, Appalachian Spring (1944), os quais são conhecidos, mais frequentemente, em sua forma de suítes de orquestra. Obras como Appalachian Spring e a Terceira Sinfonia representam o culminar desse período populista-nacional do compositor. Inicialmente concebida para balé, Appalachian Spring é mais apresentada, atualmente, em salas de concerto, em sua grande formação orquestral (a partitura original foi criada para um pequeno grupo de 13 instrumentos), e muitos a consideram a melhor dentre todas as escritas de Copland. O enredo relata a vida austera e prosaica dos Shakers (uma variante da seita Quaker) na região montanhosa dos Apalaches, e a música incorpora várias de suas canções e hinos religiosos, como The Gift to be Simple is the Gift to be Free. Com exceção da vigorosa quadrilha rústica, a obra é predominantemente tranquila, meditativa e luminosamente bela. A Terceira Sinfonia foi estreada, em 1946, pela Orquestra Sinfônica de Boston, sob a batuta do famoso maestro Serge Koussevitzky, que a considerava ‘a maior sinfonia norte-americana – sai do coração para o coração’. Em quatro
movimentos, Copland incorporou trechos de outras obras suas: no primeiro movimento há uma ideia tonal tirada de Appalachian Spring e, no último, uma citação de sua Fanfare for the Common Man. Além dessas partituras, merecem destaque as trilhas sonoras para os filmes Ratos e Homens, de Ford, ou A Herdeira, de Wyler, como também o Concerto para Clarineta (1948) destinado a Benny Goodman.
As obras dos compositores desse período populista-nacional ainda permanecem no acervo criador norte-americano como das mais significativas de um período que se justifica por elas mesmas. No entanto, os elementos regionalistas, alguns até provincianos, tornavam-se, cada vez mais, limitantes. Tinha chegado a hora dos profetas da renovação e da vanguarda. A união de estilo suave e uma técnica elegante fizeram de Samuel Barber (1910-1981) uma das principais vozes da música norte-americana. Apresentando um lirismo espontâneo e espírito neorromântico, ele se aproxima mais das tradições europeias do que as de seu próprio País. A partir de 1940, o compositor ousou mais, particularmente com o balé Medea, chegando a empregar uma linguagem dissonante com uma politonalidade à maneira de Milhaud. Também realizou uma rápida incursão no dodecafonismo, mas até o seu término, a obra de Barber evitou grandes audácias. A sua partitura mais conhecida é o Adágio para Cordas (1936), que foi escrita, originalmente, como o movimento lento de um quarteto de cordas, mas o orquestrou por sugestão de Toscanini, transformando-o em uma das mais apreciadas obras para cordas do século XX. Sua melodia solene, passional, passa de um grupo de cordas para outro, alcançando um tocante clímax. O seu Concerto para Violino (1940), também, raramente desaponta: uma obra agradável, harmoniosa, eficientemente concebida e extremamente lírica, com alguns toques jazzísticos. Discípulo de Roy Harris, William Schumann (1910-1992) mostrou uma sólida formação clássica e uma vocação sinfônica com influências do jazz, Stravinsky e Hindemith. Suas dez sinfonias são fundamentais em sua obra: incorporam um impulso vigoroso, ritmos febris e atitudes orquestrais e musicais expansivas, com uma ampla linha melódica em um idioma geralmente tonal. Além disso, quase toda a sua obra possui imaginação, gosto, emoções habilmente controladas e, por vezes, um insinuante humorismo, como em Newsreel (1941). Famosa é a American Festival Overture (1939): as três primeiras notas dessa peça são reconhecidas como ‘o toque de chamada para brincar’ da infância e, na cidade de New York, a Overture é gritada com as sílabas ‘We-Awk-Ee’, a fim de reunir a turma para algum jogo ou acontecimento festivo de qualquer espécie. De origem italiana, Giancarlo Menotti (1911-2007) possui algumas peças orquestrais de valor, no entanto, a sua habilidade despontou no teatro e na ópera (tendo sido um dos mais notáveis e bem sucedidos compositores de ópera depois de Puccini), exprimindo todos os tons e matizes da comédia, sátira, drama e tragédia. Com a representação na Broadway, em 1947, de The Medium, tragédia sobrenatural notável por sua natureza sinistra, e a comédia The Telephone, Menotti ficou definitivamente consagrado como compositor. O êxito dessas óperas foi superado, em 1950, por The Consul, que ganhou o Prêmio Pulitzer e foi traduzida para doze idiomas – melodrama político completo, em um estilo verista pós-Puccini. Inteiramente diferente é a ópera natalina para crianças, Amahl e os Visitantes da Noite (1951), que, com finíssima poesia e genuíno espírito humanitário, conta o milagre da cura de um menino.
O grande inovador da música norte-americana na primeira metade do século XX foi Charles Ives (1874-1954). As suas primeiras e, talvez, mais significativas lições de música foram dadas pelo pai, um regente de banda e de coral de extraordinária curiosidade experimental, de uma pequena cidade da Nova Inglaterra. Como no caso de Mahler, as impressões ‘sonoras’ da infância influenciariam profundamente a arte de Ives. Ele foi autodidata em composição e apresentava pouca formação ‘clássica’. Quando estudante em Yale (1894-98), recebeu lições de harmonia do conservador Horatio Parker. Seu estilo original chocava-se com o academicismo tradicional daquele. Uma bem-sucedida carreira no ramo de seguros salvou-o da necessidade de ganhar a vida com música, o que teria comprometido seus princípios artísticos e filosóficos. Retirou-se dos negócios em 1930; a saúde precária e desapontamentos políticos levaram-no a praticamente abandonar a composição uns dez anos antes. A maior parte de sua música foi escrita sem perspectivas de execução, e só perto do final da vida começou a ser tocada com frequência e apreciada. A música das pequenas cidades foi a sua maior influência, e é a principal responsável por suas radicais inovações. As bandas dessas cidades raramente tocavam afinadas e corretamente e, assim, Ives assimilou esse estranho aglomerado de dissonâncias e dele fez um dos elementos de estilo musical. Sua música prenuncia, frequentemente, o desenvolvimento de técnicas de composição como o serialismo, a politonalidade e a organização espacial de som, as quais só mais tarde surgiriam na Europa com Schoenberg e outros. Ives é um mago que apresenta certos elementos que parecem inconciliáveis, e com eles tece uma unidade de propósitos e impulsos, agregando-os tanto pelo seu senso de coesão quanto pela lógica de seu sistema, que é suficientemente amplo para poder reunir elementos totalmente diferentes. O único aspecto consistente de sua obra é a emancipação das regras convencionais. Há peças inteiramente atonais, enquanto outras são no simples estilo harmônico de um hino ou canção folclórica. Algumas são bastante sistemáticas e abstratas na sua construção, outras carregadas de citações de músicas de sua juventude: hinos, canções populares, danças de ragtime, marchas etc. Há, também, peças explicitamente nostálgicas, como a famosa Three Places in New England (1905-14), uma das evocações mais vivas e assombrosas da juventude de Ives, e, algumas, impulsionadas pela visão de uma democracia idealista (Quarta Sinfonia). De suas quatro sinfonias, a mais famosa é a Terceira (The Camp Meeting), de 1911, uma delicada obra em três movimentos, inspirada e intelectualmente sedutora, baseada em hinos religiosos. Aqui, Ives reuniu, como nenhum outro compositor, a simplicidade doméstica e a dignidade do século XIX. Ives escreveu, também, muitas peças para orquestra, isoladas ou integradas nas mais vastas composições. Entre as mais conhecidas encontra-se Central Park in the Dark (terceira parte de um conjunto intitulado Three Outdoor Scenes), de 1906, que corresponde a uma ‘contemplação’ musical para a qual Ives fez questão de esclarecer que ela levaria o ouvinte a um recuo no tempo de mais ou menos 40 anos, enquanto que, abrigado das poluições da civilização urbana, o passeador poderia usufruir da quietude do Central Park durante as noites de verão. Formando com esta obra anterior um par de ‘contemplações’, The Answer Question, também de 1906, é ainda mais exótica: assim como na Quarta Sinfonia, faz o questionamento da ‘existência’. No plano metafísico, a contemplação, dessa vez, é de ‘uma coisa séria: uma paisagem cósmica’, segundo os próprios termos do compositor. Obra extremamente difícil de executar, a Segunda Sonata para Piano, a ‘Concord’ (1911-15), considerada por muitos como a melhor criação de Ives, corresponde a uma evocação musical de figuras do passado da Nova Inglaterra, como Hawthorne, Thoreau e os Alcotts. Dotada de imaginação e grandeza espiritual, ela apresenta sabedoria, beleza, profundidade e compreensão do terror e do esplendor que dominam a vida e o destino da humanidade – uma compreensão daqueles mistérios que são, ao mesmo tempo, humanos e divinos.
Famoso como compositor, maestro, pianista e acadêmico, Leonard Bernstein (1918-1990) foi uma das maiores e mais completas figuras musicais do século XX. Estudou teoria musical na Universidade de Harvard e direção de orquestra com Fritz Reiner e Sergei Koussevitzky. Em 1943, ganhou fama como regente quando substituiu, de última hora, Bruno Walter, que estava doente. A partir daí, esteve particularmente associado à Orquestra Filarmônica de Israel (a partir de 1947), à Orquestra Sinfônica de Boston e à Orquestra Filarmônica de New York (1958-69), regendo frequentemente em Viena e no La Scala. Simultaneamente, seguiu a carreira de compositor, desenvolvendo um estilo eclético que se inspirava em tudo. Rompeu as barreiras entre as culturas erudita e popular, mesclando Mahler, Stravinsky, Britten, Ives e Broadway, Copland e Bach. Suas raízes penetram na atonalidade dodecafônica, na harmonia do romantismo do século XX, no jazz e no swing. A maior parte de suas obras teatrais é no estilo da Broadway, como o balé Fancy Free (1944) e os musicais On The Town (1944), Wonderful Town (1953), Candide (1956) e West Side Story (1957). Com West Side Story, Bernstein conheceu a glória no mundo inteiro, explorando a virulência dos problemas raciais entre brancos, negros e porto-riquenhos, dos bairros proletários da cidade cosmopolita de New York: um drama naturalista cheio de agudeza e crueldade, que é transfigurado pela doçura e nostalgia de um amor tipo Romeu e Julieta, o qual triunfa sobre ódio e a morte; a repulsiva realidade é elevada tanto pelo prazer estético da dança quanto pela música maravilhosa, permeada com elementos da ópera romântica e do balé jazzístico. As Danças Sinfônicas desse musical são, frequentemente, executadas em concerto. Na melhor tradição das aberturas musicais, a Abertura Candide é arrebatadora, contrastando quatro minutos de verdadeiro delírio orquestral com uma passagem zombeteira. Entre suas composições para a tela, encontra-se a música do filme de Elia Kazan, On The Waterfront (1954), da qual existe uma suíte para orquestra. A música não teatral de Bernstein é, geralmente, de inspiração religiosa e metafísica, testemunhando uma pesquisa espiritual de profunda sinceridade, expressa em um idioma pós-mahleriano intenso e ricamente cromático, com a utilização de grandes efetivos, solistas vocais e coros. Nesse estilo, encontram-se as suas obras mais ambiciosas: a Sinfonia Jeremiah, com mezzo-soprano (1942), a Sinfonia Kaddish, com solistas e coros (1963), em que usou técnicas serialistas, os Chichester Psalms (1965), para vozes infantis, e a peça teatral Mass (1971), grande oratório cênico, encomendado por Jacqueline Kennedy, para a inauguração do John Kennedy Fine Arts Center de Washington.