ENTREVISTA: Euclides Marques, violonista e arranjador

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Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br

Nascido em Penápolis, no interior de São Paulo, e formado em Economia e Música pela Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, Euclides Marques é violonista, arranjador, produtor musical e professor. Sua discografia inclui parcerias com o violonista Luizinho 7 Cordas e com vibrafonista André Juarez do Grupo Gato Preto, e entre suas premiações estão o ProAC da Secretaria de Estado da Cultura, o Edital SESI, o Prêmio Rival Petrobras como melhor arranjador e dois prêmios Botucanto: de melhor disco instrumental por ‘Remexendo’ e melhor produção por ‘João Borba – Eu Comigo e Meus Amigos’. Euclides Marques apresentou-se em várias cidades brasileiras e importantes centros musicais internacionais, como Paris, Boston, Lima e Patagônia. Dividiu o palco e as salas de estúdio com nomes como Ana Caram, Beth Carvalho, Hamilton de Holanda, Martinho da Vila, Roberto Menescal, Guinga, Zé da Velha, Paulo Moura, entre outros.

Como começou seu contato e descobrimento da música? Quando você soube que iria ser músico?

Desde que eu me entendo como gente. Quando tinha quatro anos de idade, ganhei de meu avô (que também se chamava Euclides) uma sanfoninha de oito baixos de presente de Natal. Então, a primeira música que toquei, ainda me lembro, foi ‘Noite Feliz’. Conforme eu crescia, as sanfonas iam ‘aumentando’ também, e a casa começou a encher de sanfonas, violões, violas, cavaquinhos… Em Penápolis, era chamado de o ‘menino da sanfona’, que tocava em casamentos, festas de todo tipo, no colégio, para o Bispo que visitava a cidade, para políticos etc. Também cantava com meu pai, que adora música caipira tradicional; eu fazia a primeira voz e ele a segunda, mais tarde invertíamos. Sempre soube que ia ser músico ou, melhor dizendo, sempre me vi como tal, naturalmente. Agora, ter a música como profissão, como o ‘ganha pão’, isso foi lá pelos 15 ou 16 anos. Mesmo assim, concluí primeiro a faculdade de Economia para depois ter coragem de abraçar de verdade aquela que sempre esteve ao meu lado, aliás, dentro de mim. Portanto, mais quatro anos de UNICAMP! Acho que nasci descobrindo a música e vou morrer assim. Nunca descobri tanta música como nos últimos tempos, tenho me interessado bastante pelo universo da música de concerto.

Fale-nos sobre seus estudos formais e informais de música, de sua formação como artista.

Nasci e cresci em um ambiente musical. Meu outro avô, o paterno, dizem que era bom violonista. Mas todos eram amadores, brincavam com aquilo. Até onde sei, sou o primeiro da família a dedicar-me profissionalmente. Mas minha formação foi muito intuitiva, autodidata, com todas as vantagens e problemas de quem nunca teve aulas de música mais rigorosamente, mais seriamente. Lembro-me de quando participei do primeiro seminário de violão, aos 14 anos mais ou menos, em Araçatuba, organizado pelo Henrique Pinto. Todos me admiravam, espantavam-se com minha técnica toda ‘torta’, com meu repertório todo de ouvido, tocando peças difíceis, toda a harmonia de bossa nova sem saber nem ler cifra. Era um sucesso, mas também um caos! Só fui me tocar que precisava aprender partitura quando formaram uma orquestra de violões, e os outros meninos, que não tocavam nem metade de mim, já saíam lendo, e eu empacava na primeira semínima… Aquilo me deixou muito mal, mas me fez ir atrás da leitura, da teoria e da harmonia, ainda que tardiamente. Então, informalmente eu sempre estudei música. Mas os estudos formais só começaram quando fui para Campinas, com 17 anos, embora em Penápolis tenha tido três professores de violão que foram muito importantes para mim: a Maria Costa, o Zé Pretinho e o Edmir Jr.

As escolas e universidades de música no Brasil deixam o músico bem preparado? Quais são os percalços para se formar músico aqui? O que é mais importante, o aprendizado da escola ou a experiência de vida?

O caminho que tive que percorrer (que ainda estou fazendo!) e que é mais ou menos o mesmo para quase todo músico no Brasil, foi muito sinuoso, acidentado, cheio de idas e vindas… Mas, no frigir dos ovos, posso dizer que a situação no nosso País tem sido a seguinte: temos uma das melhores músicas populares do planeta, junto com o jazz e a salsa; nosso violão só encontra rival no violão espanhol, berço do instrumento; Tom Jobim é o maior cancionista do século, ao lado de Gershwin e Porter. Então, o mundo real da música brasileira é mais rico do que se pode imaginar. Por outro lado, sofremos ainda de uma carência enorme de sistematização pedagógica e divulgação acadêmica de nossa música lá fora. Os norte-americanos lançam milhares de álbuns, songbooks, métodos e uma parafernália de material pedagógico sobre o jazz desde a década de 1920. O primeiro a fazer isso no Brasil foi o Almir Chediak, na década de 1980! Até hoje temos pouquíssimo material sobre choro, bossa, samba, ritmos nordestinos, fronteiriços etc. Ainda não aprendemos a ganhar dinheiro ensinando o mundo a tocar nossa música, como fazem os gringos há um século. Em 1998 eu era o único chorão da UNICAMP, melhor curso superior de música popular do País, e tinha que estudar usando exemplos do ‘Real Book’! As coisas tem melhorado um pouco, como a ‘Choro Music’ por exemplo, mas ainda há um abismo a nos separar das escolas de música de Boston, Paris, Londres, Tóquio etc. Em resumo: sobra-nos formação prática – abundam as rodas de samba e choro, os bares, as casas de baile, os festivais de todo tipo – e nos falta formação teórica e material de divulgação didática da nossa música. Precisamos de mais e melhores escolas de música no Brasil.

Vale a pena trabalhar com música de qualidade no Brasil de hoje?

Sempre valeu e sempre valerá. Mesmo porque quem faz isso não ‘escolhe’, simplesmente não consegue fazer outro tipo de música. Tem um pessoal que adora reclamar, criticar a mídia, sentir-se desvalorizado, mas esse discurso, além de velho e chato, já não tem muito a ver com o que acontece hoje. Na minha infância na Penápolis da década de 1980, os únicos materiais que existiam para aprender música eram revistas de banca, partituras xerocadas de amigos, LPs e fitas cassete. Ninguém conhecia CD, muito menos internet. Hoje existe um negócio chamado YouTube, através do qual qualquer pessoa que resolve aprender a tocar violão já fica sabendo quem são os melhores músicos, no mundo inteiro, em qualquer estilo. É uma revolução didática e de comunicação. Hoje não se engana mais ninguém. Todos podem saber ‘quem é quem’ no cenário musical. Lembro que, aos 14 anos, para conhecer Baden Powell eu tinha que encomendar um LP na lojinha do Jaó (a única da cidade) e esperar ansiosamente por um bom tempo para saborear o disco (que degusto até hoje, com o maior carinho). Aquele mundo já era, e as questões hoje são completamente outras. Por exemplo, uma coisa que sinto é que no Brasil o cenário da música popular, seja instrumental ou canção, já está naturalmente saturado, já não cabe muito mais gente neste imenso bonde cheio de estrelas. Nossa música popular tem sido muito rica há várias décadas, e é bem mais difícil fazer algo ‘novo’ ou significativo hoje do que nas décadas de 1960 ou 1970. O que está por acontecer e ser feito no cenário musical brasileiro, percebo que acontecerá muito mais na música erudita do que na popular. A ‘novidade’ musical no Brasil de hoje está aflorando muito mais no campo da música clássica, no qual sempre fomos mais historicamente carentes. Diria que vivemos um boom da música de concerto no Brasil. É aí que as coisas ainda estão por acontecer e já acontecem: OSESP, Filarmônica de Minas Gerais, OSB, Municipal de São Paulo, de Manaus e tantos outros centros que estão se estruturando em um nível internacional. Há uma demanda reprimida enorme para ser atendida pela música clássica em nosso País. Estamos só agora começando a descobrir o maior gênio da música que aqui já nasceu, Villa-Lobos, que tem uma obra descomunal e só agora decentemente revisada pela Fundação OSESP, sendo primorosamente editada pela ‘Criadores do Brasil’, gravada como deve ser e divulgada. Porque 40% do que ele compôs ainda está em manuscrito, mal entendido, mal tocado e mal gravado, como é o caso das doze sinfonias, que atualmente estão recebendo o tratamento merecido pela OSESP, com o maestro Isaac Karabtchevsky. Villa-Lobos tem uma obra para ser a maior em relação a gigantes como Bartok, Copland, Briten etc., sendo de longe o maior compositor das Américas. Tudo isso está por acontecer e, acredite, vai acontecer. Portanto, se um menino no Brasil hoje quiser aprender a tocar violão, bandolim e acordeon, terá de enfrentar um legado enorme de feras em cada geração passada, nestes instrumentos típicos de nossa música popular. Mas se este mesmo menino resolver tocar trompa, fagote, violino, harpa e oboé, pode crer que não faltará lugar para ele no palco. Existe todo um terreno fértil a ser semeado na música brasileira e eu sinto que ele está muito mais nas salas de concertos do que em outros ambientes musicais.

Conte-nos sobre sua experiência e parceria com o Luizinho 7 Cordas, que é a referência brasileira no violão de 7 cordas.

O Luizinho já era meu ídolo quando em 2001, ainda morando em Campinas, cheguei na casa dele a fim de ter aulas de 7 cordas. Ele estava dando uma aula e me pediu que aguardasse na sala ao lado, na qual havia um violão, antigo, ruinzinho, que comecei a tocar enquanto esperava. Depois de um tempo, ele apareceu com um 7 cordas e começou a me acompanhar, enquanto eu solava tudo que era choro que sabia. Passaram-se duas ou três horas, e falei para o Luizinho: ‘Eu vim para ter aula com você, não vamos fazer?’ Ele me disse: ‘Euclides, aula para você eu não vou dar não, mas tenho um show marcado no SESC Santo Amaro no sábado que vem e estou pensando em repetir lá o que nós acabamos de fazer aqui, ok?’. Foi assim que tudo começou. Aquela foi a nossa primeira apresentação, depois vieram Prêmio Visa, show com Beth Carvalho e Martinho da Vila, vários ProACs Circulação… Até hoje foram cerca de duzentos concertos, até onde posso contar… E trabalhar com o Luizinho é um privilégio, é ter muita sorte. Ele é uma pessoa maravilhosa, um mentor, um amigo, irmão mesmo. Musicalmente é um gênio; o único vivo, depois que se foram Dino e Raphael Rabello. A arte que o Luizinho faz no violão de 7 cordas tradicional, de aço e com dedeira de acompanhamento, não tem para ninguém no mundo inteiro! E todos que conhecem sabem disso, não é?

Em seu CD ‘Remexendo’, com o Luizinho 7 Cordas, há obras desde Gnattali e Ernesto Nazareth até Pixinguinha e Garoto. Como é o seu trânsito entre vários gêneros musicais, desde o choro e a MPB até o erudito?

O CD ‘Remexendo’ é um trabalho de arranjo, de reinvenção musical. São arranjos originais que fiz para temas que desde sempre queria gravar. Talvez também seja por isso o sucesso desse disco, pois entre outras coisas, é um retrato fiel da minha formação, os estilos aos quais mais me dediquei, e a vontade de arranjar. Porque arranjo para mim não é apenas tocar diferente, em outro instrumento. É conseguir, mantendo a força e a qualidade original da música, revelar belezas nela ocultas, latentes, é dar um fôlego novo àquela obra-prima que já existe. Colocada assim, a brincadeira fica interessante, o desafio aumenta. Espero que consigamos fazer o próximo!

Sua discografia não é ainda extensa, mas você tem uma grande intimidade com gravações e estúdios. Fale-nos sobre sua relação com a gravação e qual é sua visão sobre essa parte da vida do músico. Por ter uma carreira como arranjador e produtor, como é viver com as duas coisas? O ‘arranjador’ enriquece o ‘músico’, e vice-versa?

A gravação é uma coisa maravilhosa. Tenho mais de três mil LPs com gravações memoráveis, e não descansarei enquanto não saborear cada uma delas. Quando era menino, amava pegar os poucos discos de meu pai e dos amigos e passar para fitas cassete, ouvindo como ficava no carro, em outros aparelhos. Portanto, sou um melômano de nascença e,
inconscientemente, um audiófilo também. Como músico, sempre trabalhei em estúdio; mas só fui me tocar para a problemática da gravação e da reprodução quando, na mesma época, estava mixando o ‘Remexendo’ e conhecendo a Áudio Vídeo Magazine. Como já disse, depois de formado, já tarimbado em estúdio, aprendi muito com vocês. Diria que a audiofilia me deu tudo aquilo que há muito eu já ansiava. Hoje tenho a clara convicção de que a audiofilia deveria ser matéria obrigatória em qualquer curso de música que se preze. E isso ajuda a entender porque disse ainda há pouco que carecemos de boas faculdades de música no Brasil (assim como de muitas outras coisas…). Quanto ao trabalho de produtor / arranjador, acho que foi um caminho natural, pois a função requer uma multiplicidade de saberes musicais. O sujeito tem que fazer arranjo, chamar os músicos certos, acompanhar todas as sessões de gravação, microfonar da melhor forma e tirar o melhor de cada artista, sabendo comunicar-se com todo mundo (músicos, técnicos, patrocinadores, palpiteiros e curiosos), além de editar, mixar, masterizar (ufa!) e até escolher a ordem final das músicas no disco. O duro é conciliar tudo isso com as exigências de continuar tocando bem e pagar a escola das crianças… Mas vou tentando e não desistirei!

Você concorda com o bandolinista Hamilton de Holanda, que diz que ‘o choro é um gênero vitalício’?

Concordo no sentido de que aquele que é picado pelo bicho do choro, não se cura mais. Acontece o mesmo com o flamenco, são gêneros musicais tão fortes, tão culturalmente enraizados e exigentes para com o músico, que este fica indelevelmente marcado. Quem se aventura a tocar violão flamenco embarca em uma viagem sem volta, pois tudo de diferente que ele for tocar depois ficará ‘aflamencado’. Vou provocar o Hamilton: o choro é uma doença que se morre com ela.

Quem são seus ídolos musicais e não musicais?

São muitos! Musicais: Bach, Beethoven, Mozart (ouço e toco Bach para acreditar em Deus, Beethoven para acreditar no homem e Mozart para entender que um pode estar bem perto do outro), Chopin, Tchaikovsky, Villa-Lobos, Pixinguinha, Vinicius de Moraes, Tom Jobim,
Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Elis Regina, Ennio Morricone, Karajan, Garoto, Frank Sinatra, Radamés Gnattali, Piazzolla, Luiz Gonzaga, Segóvia, Baden Powell, Raphael Rabello, Chico Buarque, João Bosco, Gil, Sivuca, Claude Bolling. Não musicais: Pablo Neruda, Juan Rulfo,
Georges Simenon, Charles Chaplin, John Wayne e Daniel Boone.

Como o Euclides Marques vê o seu futuro?

Vejo-me bem velhinho ainda tentando tocar melhor, fazendo mais músicas, comovendo-me com elas e cercado de bons músicos. Entre os quais, tomara, os meus filhos! Pelo menos, com a minha coleção de LPs, que já leva mais de vinte anos, já estou garantindo, até para quando me aposentar, o meu ‘sustento’ espiritual.

Em comemoração aos 22 anos da revista, selecionamos essa matéria da edição 193

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