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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Fundador e atual editor / diretor das revistas Áudio Ví-deo Magazine e Musician Magazine. É organizador do Hi-End Show (anteriormente Hi-Fi Show) e idealizador da metodologia de testes da revista. Ministra cursos de Percepção Auditiva, produz gravações audiófilas e presta consultoria para o mercado.

A primeira vez que ouvi meu pai falar de ciclos audiófilos, não entendi absolutamente nada e nem tampouco a razão de estar usando este termo para expressar sua opinião sobre um sistema que, tanto eu como ele, havíamos detestado.

Ele tinha acabado de instalar uma cápsula Stanton 500 na casa de um sujeito falante, que não devia ter mais que trinta e poucos anos. Seu gosto musical era bastante restrito à Ray Conniff e à música instrumental que ouvíamos de fundo em consultórios médicos no final dos anos setenta, só que este cliente ouvia suas músicas a um volume próximo de nos fazer fugir da sala como de um incêndio! Levando o amplificador quase a entrar em proteção!

Saímos dali quase que nocauteados e eu, muito irritado, a ponto de jurar para mim mesmo que não acompanharia mais meu pai em suas visitas aos seus clientes.

Passados os dias, e ânimos acalmados, perguntei ao meu pai o que ele tinha em mente ao usar o termo ciclos audiófilos para descrever aquela ‘tortura auditiva’. E ele mandou-me procurar no dicionário o significado de ciclos para eu entender seu raciocínio.

E lá fui eu abrir o ‘pai dos burros’ e ler que: Ciclo é uma palavra de origem no termo grego Kýklos, que significa uma série de fenômenos cíclicos, ou sejam se renovam de forma constante. Ainda sem conseguir ver nenhuma relação entre o fato acontecido e o termo, voltei toda a atenção para a explanação de meu pai.

Ele era tão metódico que, quando ia me dizer alguma coisa, e sempre recorria a um apoio para as mãos e os dedos. E, enquanto não achasse este objeto, o silêncio imposto era quase que sepulcral. E quanto mais tempo ele perdia procurando este objeto, para segurar nas mãos, mais profundo e enigmático seria o exposto!

Lembrando hoje, pareceu apenas alguns minutos até ele achar um pincel muito utilizado para tirar pó dos circuitos e placas dos aparelhos. Mas, esforçando-me para voltar àquele momento, pareceu-me uma eternidade.

Meu pai, além de metódico, tinha o hábito de escolher as palavras como um orador. De sua boca jamais saiam palavras que não fizessem sentido, ou não expressassem de forma exata seu raciocínio. Quando finalmente tudo estava adequado e confortável para suas mãos, ele compartilhou sua ideia de ciclos audiófilos. E começou pelo exemplo dos dias anteriores:
“Todo audiófilo, desde que se torna um audiófilo, ou se reconhece como tal, terá assim como nosso DNA certos gostos ou predileções que o acompanharão por toda sua vida. E desde o primeiro ciclo, seu comportamento e mudanças serão ditadas sempre por aquele ciclo inicial. Não importa o que ocorra em termos de evolução tecnológica, tanto seu gosto musical, como sua ideia do sistema perfeito, irá variar minimamente. Então, atender a esses clientes exige de mim muito mais do que apresentar opções de equipamentos dentro do orçamento estipulado. Preciso de antemão entender as reais expectativas e se elas podem ou não ser alcançadas. Caso eu perceba que não serei capaz de atender plenamente este cliente, eu não aceito o serviço”.

Depois desta breve explicação a respeito dos ciclos, meu pai entrou em seu espaço interno em que nunca foi permitido ninguém penetrar, olhou-me, e com um gesto gentil de cabeça, me dispensou. Saí de sua sala, sem entender absolutamente nada!

Passei anos com aquela sensação de uma conversa inacabada à qual, com a sua morte, ficou impossível de retomarmos. E ambas as sensações da conversa com meu pai e da audição na casa do cliente, se perderam em algum canto do meu inconsciente.

Com o acidente que sofri no final do ano, minha mobilidade ficou tão restrita que, para ouvir um LP, necessitei da ajuda de minha filha, que começa a se interessar cada vez mais por música e equipamentos (será que ela, ao contrário do irmão que escolheu a carreira de músico, irá gostar da magia da reprodução eletrônica?). E, com essa restrição, acabei optando por ouvir muito mais CDs do que LPs.

E ao escolher a pilha de discos com os quais passaria as catorze semanas com o braço direito imobilizado, percebi claramente a repetição de todos os meus ciclos musicais dos últimos cinquenta anos e, como cada uma daquelas músicas soaram nas dezenas de sistemas que tive. E ainda que, tecnologicamente, o sistema atual em que escuto música tenha evoluído quanticamente, as nuances na reprodução eletrônica que mais me encantam são as mesmas do menino que, aos seis anos, sentou para ouvir o Concerto para Violino e Orquestra de Tchaikovsky – e saiu daquela audição maravilhado com a capacidade com que aquele sistema do meu pai nos emocionava!

Nessas quatorze semanas de reclusão, pude perceber que, independente do estilo musical, ou da qualidade técnica da gravação, o que minha atenção mais busca é sentir novamente aquela imersão que ocorreu aos seis anos.

Seja consciente (pois finalmente me dei conta do que o meu pai denominou de ciclos audiófilos) ou inconsciente (como foram por tantos anos). O objetivo de cada audiófilo, picado por este hobby é buscar e sentir novamente aquele primeiro impacto de arrebatamento e prazer auditivo pleno. E todo o trajeto e energia gasto por anos a fio, será movido por este impacto inicial. Os ciclos então se movem em volta daquele impacto inicial, mas sem nunca se desligarem ou fugirem de seu campo gravitacional. Pois caso ele seja suficiente para penetrar em cada célula, músculo e no nosso hipocampo, estaremos sempre montando sistemas na esperança de repetir aquela emoção inicial!

Então, são as emoções que nos conduzem de volta ao ciclo inicial, muito mais que nossa audição! A audição nos ajuda a encontrar soluções para os erros de sinergia, mas o que realmente define a razão de gostarmos de determinado setup e não de outro é o que estabelece e ativa nosso ciclo inicial, que certamente meu pai lá no seu íntimo, certamente chamou de ‘marco zero’. E procurava, com seu senso apurado de observação, descobrir qual era o marco zero de cada um de seus clientes!

Uma tarefa hercúlea e possível somente àqueles apaixonados pela sua profissão e fé inabalável no potencial humano!

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