ESPAÇO ABERTO: Memórias degustativas e auditivas

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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Fundador e atual editor / diretor das revistas Áudio Vídeo Magazine e Musician Magazine. É organizador do Hi-End Show (anteriormente Hi-Fi Show) e idealizador da metodologia de testes da revista. Ministra cursos de Percepção Auditiva, produz gravações audiófilas e presta consultoria para o mercado.

Mirou no rato e acertou o elefante!

Esta frase era dita pela mãe do meu pai, vó Angelina, uma flor de formosura, que sempre estava a cuidar dos netos como se fossem a maior preciosidade de sua vida.

Uma cozinheira de quitutes como poucos, arte que aprendeu nos anos em que meu avô Antônio possuía uma mercearia na rua de uma feira, no bairro da Penha, na capital paulista.

Vó Angelina e minha tia Cidinha, a caçula de 10 filhos (9 mulheres e só meu pai de homem), iam para a cozinha logo ao amanhecer de sexta-feira para preparar esfihas, coxinhas, empadinhas e quibes para abastecer a fome dos feirantes no domingo. O cheiro das esfihas assando no sábado de noite impregnava a casa de tal maneira que era impossível não pedir para vó Angelina separar uma para cada neto. Ela colocava um quitute de cada, embrulhado em um guardanapo, com o nome de cada neto e deixava no forno, para quando a fome batesse.

Meu pai era o encarregado de cuidar da chapa e preparar os sanduíches de mortadela, churrasco com vinagrete e misto-quente. Às vezes eram tantos pedidos ao mesmo tempo que ele se embaralhava todo – mas nunca deixou transparecer suas dificuldades naquela loucura que era o entra e sai de feirantes.

Gostava muito de estar ali com ele, pois me livrava da missa dominical, toda em latim. Sim, meus amigos, sou tão velho que ouvi muita missa em latim, e todo aquele senta e levanta e ajoelha. Não entendia absolutamente nada, e de tão enfadonho que era dei um jeito de ser útil na mercearia para fugir dali. Minha função era colocar guardanapos nos pires dos lanches e limpar as sete mesas que meu vô disponibilizava para os feirantes terem dez minutos de sossego para comer. Quando saiam, eu recolhia os pires e limpava a mesa, e lá vinha uma nova leva de famintos.

Ao meio dia em ponto, lá estavam minha mãe e meus dois irmãos, e minha irmã ainda de colo, voltando da missa esfomeados. Era a xepa da feira, com aquele alvoroço típico de cada feirante chamando a freguesia a plenos pulmões.

Meus pés já estavam tão dormentes, que meu único desejo era ir para casa e tirar os sapatos, tomar um banho e ouvir música. Sim, nossos domingos de tarde eram momentos de música até o anoitecer e, por vezes, até a hora de irmos para cama. Meus dois irmãos mais velhos já compravam com sua mesada seus próprios LPs, e cada um democraticamente podia escolher um disco para tocar. O mais velho apresentou à família os Beatles, Credence e Rolling Stones. Meu outro irmão era apaixonado por trilhas sonoras, minha mãe por óperas e música clássica, meu pai por cantores e cantoras e eu com apenas sete anos, ficava ali ouvindo aquele caleidoscópio de estilos tão diversos, e querendo também participar daquele sarau com meus discos.

Ainda que já recebesse também mesada, pela minha idade, meu pai me dava uma quantia simbólica que, fazendo um cálculo de memória, teria que juntar uns três meses para, talvez, conseguir comprar um compacto simples.

E eu não queria compactos, queria os LPs, com aquelas capas maravilhosas como a do Sgt Peppers dos Beatles, que eu ficava horas admirando e procurando saber quem era cada um daqueles na foto. Eu sempre dizia ao meu pai que compacto simples, além de não ter graça, já que só vinha com uma música de cada lado, não tinha o cheiro do LP. Aquele cheiro característico do celofane que, ao abrir, se espalhava pela sala e mantinha o ar impregnado com aquele cheiro. Meu pai ria e dizia: “irá chegar o seu momento, tenha calma”. Esperei por mais 5 anos até, finalmente, receber a mesada integral e ir comprar meu primeiro disco. Já morávamos no Campo de Marte, na zona norte da Capital Paulista.

Jamais vou me esquecer: na luz de outono do começo de maio, fui a pé do Campo de Marte até à Voluntários da Pátria na galeria onde tinha a mais legal loja de discos do bairro, que cheirava a Patchouli. O dono era um hippie descolado que atendia todos os fregueses com um largo sorriso e colocava para ouvir todas as novidades. Tinha um sofá velho rasgado, com as molas quase pulando para fora onde sentávamos e ele colocava uma faixa de cada lançamento. Ele sabia cativar o cliente, principalmente quando ele conhecia seu gosto musical.

Por algum motivo que ainda aos sessenta anos não entendi (acho que ele olhou para mim e pensou: este garoto não deve ter como comprar um LP), ele colocou três discos de artistas que eu não conhecia e que soavam como cópias mal feitas dos Beatles, com capas horrorosas e que estavam em promoção (deviam estar encalhados e ele achou que eu era o cliente ideal para levar aquele lixo) e depois, ao ver minha cara de desapontamento, olhou para mim e me disse, escuta só isto! Pegou um compacto simples, tirou da capa colocou no toca-discos Dual, baixou o braço e já na primeira frase fiquei paralisado. Reconheci de imediato o cantor e fiquei ali saboreando John Lennon cantando Mother.

Eu que alimentei por anos e imaginei aquele momento tão intensamente, de sair da loja com meu primeiro LP, fui seduzido em segundos e sai da loja com meu primeiro e único compacto simples que comprei na vida! Quando cheguei em casa com aquele compacto, ninguém entendeu nada, todos me chacotearam. E meu irmão mais velho não poupou nas piadas. Mas eu daria o troco, o domingo estava logo ali e eu poderia finalmente tocar minha primeira aquisição, meu disco número 1!

Meu pai, percebendo minha ansiedade, deu-me a honra de ser o primeiro. Levantei, tão confiante que iria dar o troco, que tirei meu compacto simples, coloquei no nosso Garrard, e olhando para todos sentados apenas disse: “Este senhor dispensa apresentações”, baixei o braço e todos ouviram em profundo silêncio.

Minha mãe, emocionada, achou que eu estava fazendo uma homenagem a ela, meu irmão mais velho me deu um grande abraço e meu pai agradeceu minha escolha, e no final brindamos com guaraná Antarctica a entrada de um novo membro nos saraus dominicais da família Andrette.

Talvez alguns de vocês estejam se perguntando e qual foi o primeiro LP? Bem, meu primeiro LP já dá uma outra boa história, pois foi uma verdadeira odisséia, chegar até a rua 7 de Abril, entrar no Museu do Disco e ver uma loja de verdade com centenas de milhares de LPs!

Então fica para um outro momento. Só posso dizer que foi um disco tão impactante que mudou meu gosto musical integralmente e passei a ser o ‘patinho feio’ dos saraus da família Andrette!

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