Omar Castellan
revista@clubedoaudio.com.br
No fim do século XIX e início do XX, vieram à tona inúmeras tendências na música, apaixonadamente defendidas por todas as espécies de teorias artísticas e científicas, algumas das quais visando a se destruírem entre si, mas todas unidas contra o inimigo comum: Wagner. Muitos desses movimentos originaram-se em Paris, para onde o centro de interesse voltou-se na virada do século. Com as óperas de Wagner e as sinfonias de Bruckner e Mahler, a tradição austro-alemã chegou aos limites de tamanho, de carga expressiva e até de inspiração. É a partir daí que começa a dissolução do Romantismo, realizada por meio de transformações com significação formal e estética diversas. Caracteriza-se pelas inovações harmônicas, sobretudo nos cromatismos e novos vocabulários da harmonia, complexos e pessoais, com a música apresentando sonoridades únicas e inusitadas, sobretudo nos tipos de acordes que exploram intervalos incomuns e inovadoras combinações sonoras. Dissolução que pretende apresentar uma nova maneira de conceber a música, em que são respeitados os valores das formas tradicionais, intercalando-os com ideias musicais inovadoras. Os compositores que então surgem começam a afastar-se das fórmulas românticas exauridas, pesquisam outras fontes de inspiração pelas vias do cromatismo e da polirritmia e rompem com a velha estética de hierarquia dos gêneros e de certas convenções do passado. Revelando notável compreensão do futuro da música no século XX, concebem certas particularidades da linguagem musical que terão uma repercussão tão vasta como poucas vezes ocorreu na transformação dos estilos e estéticas da história da música.
O que algumas décadas antes fora descoberto pela escola dos pintores impressionistas (Monet, Manet, Renoir e Serat) e dos poetas simbolistas (Baudelaire, Mallarmé e Verlaine), transfere-se, finalmente, para o domínio da música, através de Claude Debussy (1862-1918). Duas particularidades determinam a essência de sua música, em relação ao que a precedeu: liberdade e prazer. Debussy não teve dificuldade em sacudir a sujeição, escolhendo o caminho mais ‘selvagem’ de todos. A sua maneira de ser o leva para a fantasia, liberdade e aventura; é solitário, irrequieto, silencioso, exceto quando se exalta ou se diverte com amigos que compartilham as suas ideias. Desde a infância sentia aversão pelos exercícios, os métodos acadêmicos, apesar de ter conseguido muitos bons resultados no Conservatório de Paris, mas estuda sem gosto e apenas porque é necessário. Ele já pressente a sua liberdade futura e escandaliza tanto os seus condiscípulos quanto os seus professores, inventando combinações sonoras revolucionárias e proclamando que a música pode muito bem possuir regras derivando de sua própria lógica, a qual não tem forçosamente de ser a lógica admitida até então. Liberta-se, assim, das correntes dominantes: Wagner, a quem superou intimamente; Brahms, a quem procura em Viena movido pela admiração, mas que reconhece como sendo representante de uma geração anterior à sua; Tchaikovsky, cuja obra toda conheceu através da senhora von Meck, mas que, igualmente, considera um criador de estilo pessoal; e de seus conterrâneos, Saint-Saëns, D’Indy e Gounod, que representam um mundo ao qual não se sente mais ligado. Ele nada tem a ver com a monumentalidade embriagadora da alta burguesia, que se acha convencida de ter tomado o controle total e absoluto do desenvolvimento material do mundo, da paz e do progresso; também, não deseja fazer coisas em comum com o naturalismo que se agita por toda a parte, e se coloca tão distante do proletarismo quanto do conservadorismo. É um individualista, sensível demais para trilhar o caminho comum em companhia de grupos maiores.
No entanto, Debussy ficou maravilhado com a música do compositor russo Mussorgsky e com a sonoridade dos instrumentistas indonésios da Orquestra de Gamelão – que se apresentaram por ocasião da Grande Exposição Mundial de 1889, em Paris – às quais se rendeu fascinado pelo exotismo. Os sons imaginários de mundos distantes e estranhos o transportam para um estado de devaneio, de enlevo. Tudo isso surge em sua fantasia sonora, fazendo-o romper totalmente com o mundo romântico; ele é o primeiro músico a afirmar-se dessa maneira, concebendo uma música que já não é uma íntima confissão, mas que, ao contrário, se objetiva inteiramente. Libertando-se da paixão, a música de Debussy evoca a natureza, luz e sombra, distância, silêncio, nostalgia, perfumes e cores. O valor sonoro substitui o expressivo – é a beleza-objeto, o antirromantismo e o fim da hipervalorização do ‘eu’. Essa música apresenta a ausência de toda a ênfase, de excessos retóricos e sentimentais; ela flui na leveza, abandonando as grandes formas em troca de colorido e nuanças que recriam uma atmosfera, um sentimento fugaz. Debussy começa a experimentar em várias direções – utiliza, por exemplo, a escala de tons inteiros, a escala pentatônica, que, por si só, já desautoriza, quando não impede, a harmonia tradicional; deixa dissonâncias sem resolver e usa acordes sem relacionamento visível. Não conhece, assim, nenhum progresso harmônico coerente, nenhum encadeamento de acordes, mas apenas fragmentos deles. A melodia, a clássica contida ou a romântica transbordante não têm espaço em tal ‘imagem’, que só consegue trabalhar com partes de melodia e, também, nenhuma evolução rítmica mais longa, mas no máximo apenas uma pequena fração dela. Isso faz com que os acordes, os fragmentos melódicos, as mudanças ou floreados alcancem um significado próprio. Aqui não há ‘parte pelo todo’: cada uma é um todo em si mesma. O termo ‘impressionista’, frequentemente usado para descrever essa música, só em parte é apropriado: o próprio Debussy sempre se sentiu mais próximo do movimento simbolista. Entretanto, suas obras parecem, muitas vezes, evocar imagens através da sugestão de uma atmosfera e de um estado de espírito que seriam equivalentes musicais do impressionismo nas artes visuais.
O Quarteto para Cordas em Sol Menor (1893) ainda se apega à tradição, a única obra de Debussy que pode ser considerada como música absoluta no sentido beethoveniano e brahmsiano. Sem ter o rigor polifônico e a firmeza estrutural das melhores composições do gênero, esse primeiro e único ensaio é indubitavelmente uma obra muito significativa. Debussy amalgama aqui, com felicidade, elementos tão distintos como os modos gregorianos, a música cigana, o gamelão javanês, os estilos de Massenet e de Franck, sem contar com os dos russos contemporâneos; utiliza, também, profusamente, o princípio cíclico da ‘Escola de Franck’, retomando em cada andamento, com algumas variantes, o tema inicial. Também, seguindo o mesmo padrão tradicional em matéria de estrutura, encontra-se a fantástica Suíte Bergamasque para piano (1895; revisada em 1905), cujo título foi inspirado no poema Clair de Lune, de Verlaine (‘Votre âme est um paysage choisi / Que vont charmants masques e bergamasques…’). Nessa obra de quatro partes se inclui o famoso Clair de Lune, peça que evoca os cravistas franceses do século XVIII e que exige tanto a nota musical quanto a sua ressonância.
O momento decisivo na carreira de Debussy foi a apresentação ao público parisiense, em 1894, da sua obra-prima intitulada Prèlude à L’Après-Midi d’un Faune (‘Prelúdio para a Sesta de um Fauno’), o início de sua grande viagem para fora da estética tradicional e o ‘divisor de águas’ entre duas épocas. Com base em um poema de Mallarmé, que descreve os sonhos e desejos de um fauno adormecido sob o sol da tarde, a música é composta por um mosaico belo e sensual de sonoridades graficamente descritas do conteúdo erótico do poema. O que ele continha de revolucionário não era o tema – descrever um ambiente não era nada de novo na música – mas sim a forma como Debussy dissolvia a harmonia clássica de maneira a formar uma fina bruma e um som vacilante. Assim, de um único traço breve, o gênio de Debussy iniciou, de maneira discreta (os críticos acharam-no ‘interessante’, mas não lhe prestaram maior atenção), a mais radical revolução artística de todos os tempos. Com o Fauno é esboçado o caminho do atonalismo, é reinventado o ritmo como legítimo partícipe da composição musical, tanto quanto a harmonia e a forma; é abandonado o estilo narrativo como única alternativa e, finalmente, é estabelecida a recuperação das cores naturais e da individualidade de cada instrumento. E tudo isso em uma única peça orquestral.
Em 1893, Debussy começou a trabalhar na sua única ópera, Pelléas e Mélisande, terminando-a somente em 1902; para muitos é a sua melhor obra. Refere-se a uma estética simbolista, influenciada por Materlinck (em cuja obra baseou o libreto) e Mallarmé – uma tragédia sem acontecimentos espetaculares, mas de profundidade íntima.
Na realidade, Debussy quis escrever uma obra antiwagneriana, ou melhor, um anti-Tristão e Isolda, para censurar a primazia da orquestra, que sufoca a voz humana, e o excesso de manifestação dos sentimentos. Pelléas e Mélisande corresponde a um drama genuinamente francês, uma arte intimista, plena de nuanças, em que a orquestra apenas apoia a declamação musical em ritmo da língua falada, expressão de sentimentos de amor e angústia, aristocraticamente contidos.
Essa arte de nuanças também caracteriza o novo estilo pianístico de Debussy nos cadernos de Estampes (1903), nas coleções de Images (1905-1907), no delicado humorismo de Children’s Corner (1908) e nos dois cadernos de Préludes (1910, 1913). Nessas obras, a fineza prepondera invariavelmente sobre a violência, e pouco ou nada existe de verdadeiramente heroico. Para Debussy, o piano é um confidente, não um arauto; insinua muito, mas nunca proclama; há ocasiões em que retrata e até caricaturiza, mas não dramatiza no sentido lisztiniano. Assim, no seu piano não existem ênfases ou veemências, ao contrário, ele exige do intérprete uma concepção artística capaz de trabalhar pequenos quadros, estados de espírito e delicados relevos melódicos e harmônicos.
Na música orquestral, Debussy aplica a mesma técnica em seus três Nocturnes (1899). Ele expôs ao seu editor qual era a sua ambição ao escrever essas peças: ‘Espero que venha a ser música a céu aberto e que venha a aumentar o grande bater de asas do vento da liberdade’. A própria disposição do tríptico (dois andamentos lentos enquadrando um vivo), o caráter mágico de Nuages, a polirritmia de Fêtes, a dispersão dos tons em Sirènes, tudo é novo, ousado; no entanto, a sedução sonora de Nocturnes assegurou o seu êxito. Aqui, a arte eclipsa a arte. Em La Mer (1905), há uma busca pela forma mais sinfônica. Seus três movimentos (De l’aube à midi sur la mer, Jeux de vagues, Dialogue du vent et de la mer – Da aurora até o meio-dia sobre o mar, Jogo de ondas, Diálogo do vento e do mar), de magnífica limpidez, transmitem em sons maravilhosos a magia da água, tão cara aos impressionistas. A obra apresenta um finale que trabalha temas do primeiro movimento, apesar da peça central (Jeux de vagues) se desenvolver de maneira muito menos direta e com maior variedade de cor. Aqueles que esperam encontrar em La Mer imagens específicas ficarão frustrados. Debussy não era um compositor de programa como Richard Strauss, cuja música o aborrecia – em nenhuma obra sua encontramos acontecimentos explícitos ou argumentos comparáveis aos de Till Eulenspiegel; ao contrário, Debussy registrava impressões, uma série de emoções incontidas, uma evocação da magia do mar mais do que sua aparência, uma meditação sobre seu caráter. Das três Imagens para orquestra (Gigas, Iberia e Rondas da Primavera; 1912), é Iberia (uma miscelânea de alusões à Espanha) a mais célebre e que se executa com maior frequência, sem danos para o conjunto da obra. Não se trata aqui de um tríptico homogêneo, mas de três evocações ‘visuais’ bem distintas; elas provêm essencialmente de um folclore imaginário fragmentado para estimular a sensibilidade do ouvinte, cada uma à sua maneira. Finalmente, o balé Jeux (‘Jogos’), de 1913, tem sido descrito como ‘um belo pesadelo’, e contém algumas das harmonias e texturas mais estranhas de Debussy, em uma forma que se movimenta livremente em seu próprio campo de conexões de motivos. Corresponde à partitura mais ‘moderna’ do compositor. Originalmente encomendada para o grande bailarino Nijinsky, sua história trata de jogos e diversões (tênis, namoro) de um jovem e duas moças; para o ouvinte, apesar de, a princípio, ser uma obra difícil em sua compreensão, finalmente ela revela uma duradoura força poética. A música de câmara depois do Quarteto (Sonatas para Violino e Piano, para Violoncelo e Piano, e a Sonata para Viola, Flauta e Harpa) são obras de um Debussy ‘tardio’ e de grande originalidade, em que se manifestam a incerteza e a angústia. O período feliz passou; acometido por um câncer no reto, deprimido pela guerra e esgotado pelas lutas que travara com coragem antes de entrar nessa última fase, Debusssy morre aos 56 anos, em março de 1918, numa Paris submetida a bombardeios dos alemães.
Fora da França, Debussy teve um discípulo no que diz respeito aos truques de orquestração, à preferência por alusões literárias sem programa propriamente dito e certas particularidades de linguagem para transfigurar a paisagem e a sensibilidade – o italiano Ottorino Respighi (1879-1936). Espírito aberto – aberto até demais – a todas as influências (além da de Debussy, há, também, Rimsky-Korsakov e Richard Strauss), Respighi tentou, ao mesmo tempo, canalizar os transbordamentos do verismo triunfante e tornar a ligar-se às mais novas tradições musicais da sua terra, principalmente os velhos modos de cantochão; criou uma espécie de música pós-romântica e impressionista, talvez até neoclássica, apresentada em grandes afrescos sinfônicos de orquestração saturada de exuberância e sensualidade. Ele é conhecido, principalmente, graças aos seus poemas sinfônicos, denominados em seu conjunto de ‘trilogia romana’: As Fontes de Roma (1917), Os Pinheiros de Roma (1924) e As Festas de Roma (1928); cada uma dessas peças possui quatro evocações executadas sem interrupção, caracterizadas por uma fineza de coloridos instrumentais, pronunciado gosto pelos contrastes dos timbres e sentido melódico certo. Também é encantadora a sua coleção de três suítes para pequena orquestra, as Árias e Danças Antigas (1920-1924).
Personalidade fascinante, um dos mais significativos gênios da música do século XX, homem de sensibilidade delicada que, em relação a muitos compositores, escreveu pouco, mas só deixou obras-primas, Maurice Ravel (1875-1937) é quase automaticamente lembrado quando se fala em Debussy, e a recíproca é verdadeira. O que há de comum entre Debussy e Ravel é próprio de uma época da cultura musical francesa, que foi marcada pela estética simbolista: o horror ao pleonasmo, à redundância, à exploração dos velhos modos, ao gosto pelo exotismo, à pesquisa de novas sonoridades, harmônicas e instrumentais etc. Ambos são opostos ao wagnerismo, ao franckismo, ao formalismo da Schola. São curiosos de coisas raras (música, poesia, objetos, pratos culinários), são secretos, sensuais, requintados. Ambos admiram os antigos mestres franceses, a arte oriental, os poetas simbolistas e Edgar Allan Poe. Entretanto, as diferenças que há entre os dois músicos, no caráter e no estilo, são mais determinantes. Candé e Carpeaux as relatam impecavelmente: ‘Debussy é mais inteligente que Ravel, mas seu caráter é menos firme; é influenciável, amoral e voluptuoso. Ravel é moralmente austero e inabalável, sem hipocrisia nem complacência. A música de Debussy evoca a opala, a transparência ou o reflexo, as linhas esfumadas; a de Ravel o cristal transparente, a luz viva, a precisão da linha. Debussy esconde a sua erudição; Ravel a sua sensibilidade. Debussy foge das formas pré-concebidas, detesta as estruturas aparentes; Ravel corrige-as ou enriquece-as, se submetendo, por jogo ou mania de desafio, às formas mais exigentes (sonata, fuga, passacaglia). O primeiro é um experimentador sempre insatisfeito; o segundo, um construtor minucioso, que conhece a fundo o material que utiliza. À influência de Mussorgsky em Debussy corresponde em Ravel a de Rimsky-Korsakov; o piano de Debussy descende de Chopin, e o de Ravel de Liszt. A liberdade é a nobreza de Debussy, e o rigor a de Ravel. Ao contrário de Debussy, lírico e sensível, Ravel é exato e frio (Stravinsky, especialista em mecânica de precisão, qualificava-o de ‘relojoeiro suíço’). A música de Debussy é essencialmente estática e seus pontos fortes são os acordes isolados; a de Ravel é dinâmica e está em movimento perpétuo’.
A personalidade de Ravel desenvolveu-se no meio familiar de burgueses abastados, judiciosos e cultos. Nasceu nos Pirineus, mas foi educado em Paris. Começou a ter lições de piano aos sete anos e ingressou no Conservatório de Paris em 1889, onde foi aluno de Fauré. Apesar de ter publicado suas primeiras composições quando tinha 20 anos, Ravel continuou a estudar no Conservatório até os 30, polindo uma técnica já estonteante. A década que se seguiu foi o seu período mais produtivo. Foi um pianista e regente de primeira classe e tomou parte ativa na criação musical francesa anterior à Primeira Guerra, dando concertos, escrevendo críticas e compondo para os Ballets Russes de Diaghilev. Depois da guerra, sua saúde ficou comprometida e ele passou os últimos dez anos de sua vida semirretirado, compondo somente uma meia dúzia de obras. Sem os grandes ímpetos românticos e até desprovida de grandes e ressonantes acontecimentos, a vida de Ravel, extremamente simples, parece ter se desenvolvido como a de um artesão identificado com o seu trabalho, plenamente dedicado à arte e à amizade. No entanto, o estudo da sua vida não basta para conhecer Ravel. Deve-se prestar atenção às mínimas inflexões da sua música, porque ela é que, em última análise, nos revelará a verdadeira figura do compositor. Ao contrário de muitos outros artistas, Ravel só nos aparece inteiro e autêntico na sua música, em que pôs toda a sua generosidade, poesia, alma de criança grande e que ainda hoje continua a manter-se pura e maravilhosamente duradoura.
Escrevendo para o piano, Ravel logrou o domínio pleno das sonoridades, dos coloridos tonais, do sentimento poético, de uma lúcida inteligência instrumental, do virtuosismo técnico, da descrição sonora, de audazes harmonias e belas expressões melódicas, marcadas por uma linguagem musical repassada de grande beleza. Inspirado pelo som da água das fontes, cascatas e riachos, Jeux D’Eau (1901) é, sem dúvida, a sua primeira autêntica obra-prima; o fato de Ravel nunca ter tentado orquestrá-la demonstra a quintessência expressiva do piano. Aqui, tudo contribui para o deslumbramento e a forma: um allegro de sonata esconde-se secretamente por trás de uma escrita nova, original, com seus pedais harmônicos, traços altivos, desenho melódico modal e arabescos à volta de uma melodia desenvolvida tanto no grave quanto no agudo. Em 1905, Ravel escreveu uma coleção de cinco peças de prodigiosa diversidade descritiva e de nítido sabor impressionista, intitulada Miroirs, das quais Alborada Del Gracioso é a mais conhecida. Essa peça alia a expressão delicada e ligeiramente irônica a uma vivaz pintura musical; um ritmo caracteristicamente espanhol é empregado durante toda a obra, e dele se obtém grande variedade e virtuosismo. O próprio Ravel transcreveu Alborada Del Gracioso para orquestra, versão bastante conhecida. A Sonatine (1905) segue a forma da sonata tradicional, com três movimentos construídos em miniatura e com a qualidade do equilíbrio na expressão do conjunto. Do impressionismo de Jeux D’Eau e Miroirs, ele parte para o realismo áspero e fantástico de Gaspard de La Nuit (1908), que já soa moderno. Inspirado em poemas de Aloysus Bertrand, essa obra contém três segmentos: Ondine, a descrição de uma ninfa aquática tentando atrair um mortal ao seu palácio submerso no lago; Le Gibet, que retrata o balancear de um cadáver pendurado numa forca, enquanto, à distância, se ouve o dobrar de sinos; e Scarbo, a representação de um gnomo perverso em um virtuoso estudo do mundo do grotesco. Essas peças resumem todas as qualidades da música de Ravel e de seu gênio, e daí compreende-se a admiração do grande pianista francês Alfred Cortot, ao afirmar que nelas ocorre ‘um dos exemplos mais surpreendentes de habilidade instrumental de que jamais deu provas o engenho dos compositores’. Ma Mère L’Oye (‘A Minha Mãe Gansa’), de 1908, para piano a quatro mãos, revela o jardim mágico de Ravel. Os contos de Perrault e de Madame D’Aulnoy encontram sua magia, virtuosismo poético, mundo de fantasia e delicado lirismo. Ravel orquestrou-a, e é essa a versão que hoje se tornou mais conhecida. Entrelaçadas com Schubert, as Valses Nobles e Sentimentales (1911) correspondem a uma série de sete valsas cuidadosamente equilibradas do ponto de vista rítmico, de colorido sensual, revelando afinidades com o tradicional estilo vienense. As duras harmonias dessa obra, que tanto foram criticadas em sua estreia, encobrem, na realidade, um lirismo voluptuoso. Mas as Valsas, também, representam algo mais: um mundo de languidez, sonho, ironia e rigor, que em seu epílogo deixa transparecer uma nostalgia, que arrasta o ouvinte para um deleitoso abandono. Em Le Tombeau de Couperin (1917), uma suíte de seis movimentos na formas de danças barrocas, Ravel une o realismo moderno de Gaspard de La Nuit ao Neoclassicismo, em que nada existe de patético e lastimoso, apenas calma e serenidade clássica. Nessa obra, dedicada à memória de seus amigos mortos na Primeira Guerra Mundial, ele procurou reconstituir a atmosfera da época de Couperin, numa linguagem intensamente moderna, apesar de toda a sua delicadeza e graça; dessa peça fez, também, um arranjo de quatro movimentos para pequena orquestra, omitindo a fuga e a tocata.
Admirador do Classicismo vienense, Ravel escreveu, em 1903, o Quarteto para Cordas em Fá Maior, um dos poucos grandes quartetos depois de Beethoven. Engenhosa e sutil, essa obra representa o ardente e esplêndido esforço da juventude confiante em sua energia – não tem o encanto do quarteto de Debussy, que admirava profundamente essa peça de Ravel. ‘Em nome dos deuses da música’, escreveu ele ao compositor, ‘não altere nada deste quarteto’. Tudo, nessa página, denota uma espantosa mestria ao serviço da mais absoluta espontaneidade, através do frescor de ideias, riqueza de sonoridades transparentes e equilíbrio da arquitetura global. No entanto, a obra-prima da música de câmera de Ravel é o Trio para Piano e Cordas em Lá Menor (1914). Nele, o que chama a atenção, sobretudo, é a sua liberdade paradoxal, a exuberância plástica sonora e a fluidez rítmica – não há nenhum tema comum em seus quatro movimentos, independentes e, cada um, de uma grande perfeição formal. É uma obra colossal, genial, em que todo o milagre de Ravel está aí contido, confirmado e patente.
Só em duas ocasiões Ravel escreveu para o teatro, mas deixou duas obras-primas diametralmente opostas. L’Heure Espagnole (A Hora Espanhola, 1911) possui simultaneamente algo de farsa, de ópera-cômica, de pastiche e, sobretudo, de opereta, mas elevada à perfeição do gênero. A ação dessa farsa (a oficina de um fabricante de relógios), em um ato, permitiu a Ravel se expressar em todos os tipos de sons orquestrais matraqueantes, tilintantes, tiquetaqueantes e bimbalhantes (o hobby de Ravel era colecionar relógios e brinquedos musicais). Contra o fundo fantasioso, de contos de fadas, que esses sons fornecem, ele conta a história farsesca de um relojoeiro tolo, de sua esposa namoradeira e seu amante sensual, mas desmiolado. Os joguetes de L’Heure Espagnole fazem-nos pressentir, de forma apenas velada, o que há de trágico em L’Enfant et les Sortilèges (O Menino e os Sortilégios), ópera-fantasia sobre um menino malvado cujos bichinhos de estimação, brinquedos, livros de matemática e até seus pratos e xícaras tomam vida e se voltam contra ele. Separam as duas obras quase vinte anos, em que ocorreram acontecimentos perturbadores: a Primeira Guerra Mundial e a morte da mãe de Ravel, que fez com que o músico se desmoronasse. Se houvesse que procurar uma explicação para
‘o mistério de Ravel’, bastaria, sem dúvida, reler atentamente a partitura de L’Enfant et les Sortilèges. Todo ele se encontra aí, com o seu fino pudor, a insaciável sede de pureza e de beleza, a generosidade de coração. Com tudo o que Ravel soube conservar de ‘criança’ e de ‘sortilégios’, conjugando a inocência da primeira com o poder evocador e com os sonhos do segundo, pode-se ilustrar ‘este verde paraíso dos amores infantis’, de que falou outro poeta igualmente apaixonado pela pureza: Baudelaire.
Na linhagem dos compositores russos, bem como na de Chabrier, Ravel fez cantar os instrumentos da orquestra com a mesma variedade que as suas obras para piano, pondo em relevo uma noção fundamental que a música contemporânea viria a explorar com grande vantagem – a do timbre instrumental. Com uma orquestra geralmente mais modesta do que a dos pós-românticos e graças a uma linguagem harmônica que, apesar de muito pessoal, ainda é bastante moldada no Classicismo. Orquestrar para Ravel é revelar a ideia musical sob seu mais luminoso anglo, sem excessos, sem sobrecargas; é diversificar as cores e fazer ressaltar a individualidade de cada uma, tais como a extrema atenção dada aos diversos grupos de percussão, às nuanças das madeiras, aos glissandos, aos trêmulos e às cordas divididas (pode-se contar nada menos de 20 partes em L’Heure Espanhole). É nisso que Ravel é verdadeiramente moderno, não somente em suas próprias obras, como nas de outros compositores que orquestrou com mestria, dentre as quais a mais célebre, Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky.
Originalmente escrita para piano, e depois orquestrada por Ravel, a Pavana para uma Infanta Defunta apresenta o gosto por um arcaísmo sonhado e corrigido, por um passado transfigurado. Foi composta em 1899 para a princesa Edmond de Polignac, da casa real espanhola. A Pavana é uma lenta e imponente dança tradicional da Espanha, e Ravel aproveita essa forma para escrever uma delicada, majestosa e impressionante elegia sobre a morte de uma princesa. Para a sua primeira grande obra orquestral, a Rapsódia espanhola (1907), Ravel volta a dois temas que lhe são caros, a dança e a Espanha, pretextos para um transbordamento de cores inaudito e que parece desmentir o próprio músico, que não via nessa composição senão um ‘estudo para orquestra’. Iniciado em 1909 e concluído em 1912, o balé Daphnis et Chloé foi uma obra de encomenda, sugerida por Diaghilev para os seus famosos Ballets Russes. Corresponde a uma das obras-primas de Ravel, pela sua extraordinária beleza, dinâmica e consecução (ritmo, escrita e orquestração). Essa página musical é bastante conhecida, também, através das duas suítes orquestrais tiradas dos melhores episódios do balé. Entre 1919 e 1920, Ravel compõe mais uma obra-prima revolucionária: La Valse. Ele sempre gostou da valsa vienense e apreciava especialmente Johann Strauss; no entanto, nessa época, a vibrante música de Viena soava um tanto desafinada, e sentiu-se impelido a exprimir, ao escrever esse balé, não só a alegria da Viena anterior à guerra, mas também o seu desespero posterior à catástrofe (La Valse começa com um ritmo fresco e doce de valsa vienense e vai penetrando paulatinamente numa atmosfera de tragédia). Essa obra tende para o arquétipo: não se intitula ‘uma’ valsa; não vai unida a nenhum adjetivo (‘triste’, como em Sibelius) nem a um substantivo (‘das flores’, como em Tchaikovsky), mira, antes, o universal.
Foi em 1928 que, para satisfazer uma encomenda de Ida Rubinstein, Ravel tentou a ‘aposta’ da recepção à sociedade de um mesmo tema, sempre semelhante na sua essência e, no entanto, sempre diferente na sua expressão. Resumido a som essencial, o Bolero não é, na realidade, mais do que uma trama orquestral sem música, um longo e progressivo crescendo – uma ousadia, tanto na concepção quanto na realização. ‘É louco! É louco’, gritou uma mulher na estreia de Bolero. Ao ouvi-la, Ravel disse com um sorriso malicioso: ‘Essa, pelo menos, compreendeu’. De fato, era necessário estar louco para ‘ousar’ escrever uma obra semelhante, para dirigir aquele ‘ensaio musical’ com tanta audácia, rigor e fé. Apenas três anos separam o Bolero dos dois concertos para piano. Neles, Ravel abordou, de novo, com a máxima segurança e êxito, um universo no qual nunca antes se envolvera. Mas, também, aqui há um paradoxo, porque as duas obras (compostas ao mesmo tempo) diferem radicalmente. O Concerto em Sol Maior adota a forma mais clássica e também a mais estrita: a de Mozart (seu modelo absoluto no plano formal) e de Saint-Saëns (o efeito brilhante), jogando com a insensibilidade e a indiferença. Nele, o virtuosismo da escrita pianística é igualado pelo da orquestra (especialmente o dos sopros); é visível, também, a influência do jazz, que se apresenta mais marcante na obra para a mão esquerda. Composto para o pianista Paul Wittgenstein, que perdera o braço direito na guerra, o Concerto para a Mão Esquerda (Concert pour la Main Gauche) não continuou o formalismo de Saint-Saëns, mas sim a atmosfera sóbria de La Valse ou o desmoronamento do Bolero. Encontram-se aqui ressonâncias dramáticas (com o seu martelar obcecante e as suas incursões no jazz, nas guinchadas e em uma falsa alegria), a melancolia reprimida e repressiva, sonoridades fugazes, impulsos contraditórios e ritmos profundos, provocadores e delirantes. Na realidade, essas últimas obras soam como uma espécie de testamento estético e íntimo. Estético, porque nelas Ravel resume as suas últimas aquisições e os seus mais altos aperfeiçoamentos de artista; íntimo, porque inclui nelas a sua derradeira visão de um mundo que já naufragou à sua volta com a guerra, e que, também, se desmorona dentro de si próprio.
Com o objetivo de desafiar o Romantismo defunto, surgiu outro grupo parisiense, o movimento Dadaísta, centrado em torno de Erik Satie (1866-1925), e igualmente associado a atividades literárias e artísticas paralelas. Dotado de uma extrema sensibilidade, um agudo sentido de ironia e espírito ferozmente inconformista, Satie foi um excêntrico que viveu quase sempre na pobreza, e cujos métodos absolutamente pessoais influenciaram toda uma geração de músicos franceses; ele corresponde a uma das personalidades mais estranhas, curiosas e enigmáticas do mundo da música. Sua forma de pensar era totalmente diferente das formas de qualquer outra pessoa, e sua vida era sustentada por pequenos rituais de comportamento que pareciam loucos até mesmo para os amigos – vivia sozinho em um quarto cujos portais ninguém jamais teve a permissão de transpor; colecionava guarda-chuvas às centenas; no verão ou inverno, e onde quer que estivesse, usava calças listradas e fraque; deu às suas peças títulos ridículos (como Vestido como um Cavalo ou Três Peças em Forma de Pera), e dizia a seus intérpretes: ‘abram as cabeças’ ou ‘toquem como um rouxinol com dor de dente’. Representou, no seu tempo, a figura de um compositor obscuro, antiacadêmico e iconoclasta, que quase não alcançou reconhecimento dos meios musicais e que se afastou por completo das correntes estéticas da época, tanto as acadêmicas quanto as vanguardistas. Debussy primeiro o admirou e logo o rechaçou; Ravel o apoiou e Cocteau o idolatrou. Teve de passar muito tempo para que, lentamente, fosse reconhecido como um precursor e atingisse uma glória tardia. Suas inovações começaram a ser reconhecidas somente a partir de 1911, mas já era tarde para compensar uma vida de rejeição e alcoolismo; morreu em 1925.
Satie é conhecido, sobretudo, por suas peças para piano; entre elas, as Sarabandes (1887), as Gymnopédies (1888) e as Gnossiennes (1890). As primeiras são peças abstratas baseadas em longínquas melodias de dança, enquanto as segundas, que se encontram entre as composições mais conhecidas e felizes de Satie, constituem um enigma devido ao próprio título, que, segundo se diz, é uma alusão à educação infantil grega, com clima de serenidade nostálgica; são, também, conhecidas em arranjos para orquestra. Por sua vez, as Gnossiennes, influenciadas pelo orientalismo da música romena descoberta por Satie na Exposição Universal de Paris, parecem referir-se à filosofia dos gnósticos, de ânimo igualmente tranquilo. Compostas como valsas amáveis, rítmicas e melodiosas, essas peças subverteram a tradicional sofisticação da música do piano clássico, antecipando o enfoque em que as nuanças de tonalidade, estrutura dos acordes e dinâmica vão se tornando mais relevantes.
Além de sua música para piano, Satie é conhecido por um balé lunático, Parade, e o drama sinfônico Socrate. Lado a lado com Cocteau, Picasso e Diaghilev, ele produziu o balé cubista Parade (1917), que escandalizou Paris pela sua sobriedade extrema e efeito grotesco – obra-prima digna de um Stravinsky francês. O balé descreve a passagem de uma parada de circo, e é cheio de palhaçadas musicais barulhentas e atrevidas. Chocou em sua época porque a orquestra incluía datilógrafos, pistolas, sirenes de fábrica e motores de aeroplano; sobrevive, ainda, porque a música é esplendidamente engraçada como uma comédia pastelão do cinema mudo, transferida para a música. Socrate (1919) é totalmente diferente – apresenta em música os ‘Diálogos de Platão’, nas passagens concernentes aos ensinamentos e à morte do filósofo grego Sócrates. Satie dá às vozes linhas simples e não melódicas para cantar, evitando deliberadamente a subida e a queda de notas, o que poderia criar emoção, e as acompanha com acordes igualmente simples, desconectados. O resultado não é, como pode parecer, monótono, mas refreado e comovente, tal como ficar ouvindo escondido uma tranquila conversação – exatamente o efeito que o próprio Platão buscava. A austeridade e a simplicidade formal dessa obra, de tranquila beleza, influenciaram Stravinsky.