Mariana Sayad
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Fluminense de nascimento e de coração, torcedor inveterado do time, Egberto Gismonti transita entre o popular e erudito sem o menor problema. Ele invade o limite dos dois gêneros naturalmente, mostrando-nos que o que realmente importa é a música. Esta foi uma lição aprendida com seu tio Edgar (irmão de sua mãe), que enfatizava muito ao sobrinho, que existe apenas uma música, apenas isso, sem qualquer outra adjetivação. Um bom exemplo é a música ‘Bodas de Prata’, composta para o disco ‘Academia de Danças’, que posteriormente foi tocada por Wayne Shorter, Sarah Vaughan (1924-1990), Mauro Senise, Nivaldo Ornelas, Jane Duboc, Yo-Yo Ma e Martha Argerich. Ou seja, uma única composição tocada por artistas das mais diversas vertentes musicais do mundo.
A vida e a obra de Gismonti podem ser contadas através de seus discos e trilhas sonoras, por dois importantes motivos: o primeiro, porque lançou mais de 60 discos, e o segundo, é que se ouvir a sua obra cronologicamente é possível observar os ciclos composicionais, marcados pelo seu aprendizado, mestres, influências e descobertas. Egberto Gismonti nasceu em 5 de dezembro de 1947, em Carmo, no interior do Estado do Rio de Janeiro, onde é conhecido como Betinho, já em uma família de músicos. Seu avô materno era compositor e pianista, mas foi seu tio Edgard o principal inspirador musical. Clarinetista, mestre de banda e compositor oficial da cidade do Carmo, ele é considerado seu maior exemplo, como músico e pessoa. Era um grande músico, mas decidiu que não queria sair de sua cidade para poder viver com sua família, criar e educar seus filhos e netos.
Como um bom membro da família Gismonti, Egberto, desde muito cedo, entre cinco e seis anos, já demonstrava interesse pela música, ao ‘tirar de ouvido’ as músicas que sua irmã mais velha aprendia nas aulas de piano. Este talento chamou a atenção dos pais, que o colocaram para estudar piano com a mesma professora de sua irmã. Depois, foi estudar no Conservatório Brasileiro de Música, em Nova Friburgo (RJ), onde ficou por nove anos. Fez todas as matérias obrigatórias, diversos métodos, mas o mais importante de tudo para Gismonti foi sempre gostar da música. Com uma sólida formação em piano, passou a estudar sozinho o violão. Para isso, aplicou tudo que havia aprendido no Conservatório – solfejo harmonia, contraponto, composição – para o violão em instrumento com seis, oito, dez, doze e quatorze cordas.
Gismonti sempre foi um estudante dedicado, tendo como lema estudar aquilo que não se domina. Para ele, de nada adianta estudar o que já se sabe bem. Certa vez, em uma palestra no Conservatório de Tatuí, durante o Festival Brasil Instrumental, ele enfatizou muito esta prática, alegando que estudar o que já se conhece é cômodo, o importante é dedicar-se ao que não se sabe direito ainda. Quando perguntado quem foram seus mestres, Gismonti indica diversos amigos e companheiros de palco, como Naná Vasconcelos, Zeca Assumpção, Zé Eduardo Nazário, Wilson das Neves, Robertinho Silva e assim por diante. Já Baden Powell (1937-2000), além de mestre, é uma de suas maiores influências, tanto que gravou a música ‘Salvador’ logo em seu primeiro disco solo (1969).
Além de mestres, Gismonti sempre fala em dívidas com seus grandes amigos. Entre as já acertadas, está a com o poeta Manoel de Barros, que escreveu sobre o disco ‘Música de Sobrevivência’ (1993). Em 2010, Manoel de Barros lançou o livro ‘Encontros’, e pediu que Gismonti escrevesse a apresentação como ‘pagamento’ da dívida e, assim sendo, o compositor não teve outra escolha. Outro mestre e inspiração, no mesmo patamar do que tio Edgard é Ennio Morricone, maestro e compositor italiano, conhecido por compor trilhas para cinema, especialmente para os filmes de Frederico Fellini (1920-1993).
Uma das composições mais conhecidas de Gismonti, ‘O Palhaço’, do disco ‘Circense’ (1980), é inspirada na obra de Morricone. Além disso, o estilo de vida do compositor italiano também serve de motivação. Morricone, depois da fama e consagração, mudou-se para sua cidade natal na Itália e, atualmente, vive no anonimato, mesmo mantendo uma agenda de shows com bastante atividade. Esta é a meta de Gismonti, que considera sua obra já realizada importante. O ano de 1968 marca o início de sua carreira, ao participar da terceira edição do Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, com a música ‘O Sonho’, interpretada pelo grupo Os Três Moraes. A música não ganhou nenhum prêmio, porém Gismonti fez o arranjo para uma orquestra composta por cem integrantes, e foi isso que chamou atenção de muitas pessoas. Mas uma em especial, mudaria o rumo de sua vida.
A atriz e cantora francesa Marie Laforet ouviu a música e chamou Gismonti para escrever os arranjos de seu novo trabalho, com a certeza de que estava lidando com um músico muito experiente, visto pela qualidade do que ouvira. Mas mal sabia que aquela tinha sido a primeira grande apresentação de Gismonti. No início, ele escrevia os arranjos e enviava pelo correio. Até que um dia, Marie Laforet ligou para o compositor e o convidou para fazer um trabalho juntos em Paris. Assim, em 1968, deixou o Rio de Janeiro, cidade que morou pouco tempo, rumo a Paris. Chegando lá, Gismonti e Laforet formaram uma parceria internacional e, como ela era muito conhecida e respeitada, ele ganhava um salário jamais imaginado.
Quando Gismonti percebeu que ficaria mais tempo do que o planejado na Europa, resolveu procurar professores de música.
Estudou análise e orquestração com Nádia Boulanger (1887-1979), que foi professora de Quincy Jones, Astor Piazzolla (1921-1992), Almeida Prado (1943-2010), entre outros. Além dela, também teve aulas de música dodecafônica com o compositor Jean Baralaque, um discípulo de Arnold Schoenberg (1874-1951) e Anton Webern (1883-1945). Em 1969, lançou seu primeiro disco ‘Egberto Gismonti’ que, segundo ele, foi incentivado por Carlos Monteiro de Souza (1916-1975), Durval Ferreira (1935-2007) e João Mello (1921-2010). Depois disso, vieram mais três discos: ‘Sonho 70’ no Brasil, ‘Janela de Ouro’ e ‘Computador’ na França. Em 1971, lançou ‘Orfeu Novo’ e Água & Vinho’ em 1972, este aclamado e considerado a continuidade de seu processo musical. Alguns críticos da época afirmavam que este representava mais um passo no caminho da construção da obra de Gismonti.
A partir da década de 1970, diversas companhias de dança passaram a coreografar as músicas de Gismonti. Entre elas está o Ballet Stagium (São Paulo), que utilizou como trilha as músicas ‘Maracatu’, ‘Conforme a altura do sol, conforme a altura da lua’, ‘Dança das Cabeças’, ‘Pantanal’ e ‘Variações sobre Villa-Lobos’. Já o Corpo de Baile do Teatro Castro Alves (Salvador) dançou as músicas: ‘Sonhos de Castro Alves’, ‘Jogo de Búzios’, ‘Berimbau’ e ‘Orixás’. Esta prática o inspirou a compor o disco em homenagem aos grupos que escolhiam suas músicas para compor seus espetáculos. A história deste disco é da época que era contratado da EMI-Odeon, em um momento que a gravadora estava dispensando diversos artistas. Então, com a certeza de que seria mais um deles, resolveu aproveitar seu último disco previsto em contrato para gravar ‘Academia de Danças’ (1974). Ele passou por uma série de problemas para ser lançado. O primeiro foi a escolha do nome, pois os executivos e produtores da gravadora não gostaram. Depois de engolir o nome, a gravadora teve sérias indigestões com o conteúdo do disco. Naquela época, havia uma audição coletiva antes do lançamento, o lado A todo passou sem nenhuma pausa e nenhuma palavra de ninguém também. Decidiram nem ouvir o lado B, pois acharam o disco muito difícil, mas lançaram mesmo assim porque havia custado muito caro. Para surpresa de todos, inclusive do Gismonti, o disco foi muito bem aceito e vendeu mais do que o esperado.
Gismonti também fez trilhas para o cinema. A primeira delas foi para a comédia ‘A Penúltima Donzela’, com direção de Fernando Amaral. Entre muitas outras, fez uma para o documentário ‘Terra do Guaraná’, o filme francês ‘Raoni’, dirigido por Jean Pierre Dutilleux, ‘Amazônia’, dirigido por Monti Aguirre nos Estados Unidos, ‘El Viaje’, dirigido por Fernando Solanas na Argentina, ‘Estorvo’, dirigido por Ruy Guerra no Brasil etc. Além de danças e trilhas para cinema, a versatilidade de Gismonti permitiu que ele fizesse trilhas para teatro também. Começando em 1969, com a peça ‘Maria Minhoca’, de Maria Clara Machado; depois, ‘Encontro no Bar’, de Bráulio Pedroso. A sua relação com a França sempre foi muito estreita, por isso, em 1978, fez a trilha para o clássico ‘O Pequeno Príncipe’, de Saint-Exupéry; ‘Sonhos de uma Noite de Verão’, de William Shakespeare e direção de Werner Herzog; e ‘Água Viva’, de Clarice Lispector, com direção de Maria Pia.
Entre 1977 e 1978, quando Gismonti tocava com o grupo formado por Robertinho Silva, Luiz Alves e Nivaldo Ornelas, foi convidado para gravar um disco pela alemã ECM. Nesta época, o Governo Militar exigia um depósito compulsório, que consistia na obrigatoriedade de um pagamento por todos que fossem viajar para o exterior. Como o valor era alto, Gismonti teve que ir sozinho para a Noruega gravar. Mas antes fez uma breve parada em Paris, onde logo na primeira noite, enquanto jantava no restaurante La Coupolle, encontrou o amigo e ator Zózimo Bul Bul, que o apresentou a Naná Vasconcelos. Imediatamente, o chamou para gravar na Noruega e ele aceitou. Eles ensaiaram um pouco nos dois dias que ficaram em Paris e logo seguiram para Oslo. Como o próprio Naná disse, eles tentaram colocar a Floresta Amazônica dentro do piano. O disco foi uma grande ousadia musical para a época, primeiro por causa da instrumentação: Gismonti tocando piano, violão de oito cordas e flauta; Naná tocando diversos instrumentos de percussão, sendo um deles seu próprio corpo, e tudo isso sob o selo de uma gravadora alemã. Segundo motivo: as composições chocaram a todos, porque o objetivo do disco era passar a ideia de dois curumins andando pela floresta vendo os pântanos, clareiras, animais, rios e tudo mais representado em duas suítes, uma em cada lado do disco. ‘Dança das Cabeças’ (1977) ganhou diversos prêmios pelo mundo, entre eles o Grammy de melhor disco estrangeiro e nota máxima (cinco estrelas) da revista Downbeat. Depois deste trabalho, Naná foi convidado pela ECM para gravar seu primeiro disco solo, onde realizou um sonho: fazer um concerto com orquestra para o berimbau, com arranjos do Gismonti.
No ano seguinte ao ‘Dança das Cabeças’, Gismonti homenageou sua cidade natal, Carmo, com um disco homônimo. Teve início a fase mais brasileira do compositor, que é consolidada com disco ‘Nó Caipira’. Neste último, aparecem diversos ritmos brasileiros, como frevo, samba e maracatu. Gismonti aproveitou para fazer uma homenagem à voz e violão de João Gilberto e, ainda, voltou ao folclore musical brasileiro com a música ‘Saudações’. Em apenas dez anos de carreira, Gismonti já havia lançado mais de dez discos, ganho diversos prêmios internacionais, entre eles o Grande Prêmio Alemão do Disco, e tinha um enorme reconhecimento na Europa e nos Estados Unidos. Mas no Brasil, a crítica sobre sua obra não era unânime, pois o País estava vivendo a Era da Jovem Guarda e do Tropicalismo. Como sua música não tinha nenhuma destas rotulações, sua consagração foi mais difícil.
Continuando seu processo de criação a partir das influências mais brasileiras, surgiu o aclamado disco ‘Circense’, lançado pela EMI-Odeon e produzido por Mariozinho Rocha. Às pessoas que desejam conhecer a obra de Gismonti, este é o disco mais recomendado para ser ouvido primeiramente. A música ‘O Palhaço’ é uma das mais conhecidas e tocadas do compositor. Outro destaque é a desafiante ‘Equilibrista’, que é quase um piano se equilibrando em uma escola de samba. O disco ‘Em Família’ (1981) marca uma importante fase musical e pessoal ao mesmo tempo. Foi um ano especial por causa do nascimento de seu primeiro filho, Alexandre, e o momento que decidiu dar uma pausa em seus trabalhos para ficar com sua família, mostrando assim a força da influência de seu tio Edgard, que colocou a família em primeiro lugar em suas escolhas. Este foi um momento também dedicado à reclusão necessária para reflexão sobre seus novos caminhos, já que seu receio era produzir discos repetitivos.
Como resultado desta parada e dando continuidade à exploração de suas influências brasileiras, Egberto Gismonti lançou o ‘Trem Caipira’, em homenagem a Heitor Villa-Lobos. A primeira faixa, ‘Trenzinho do Caipira’, é uma parte da obra ‘As Bachianas Brasileiras nº 2’, que originalmente foi composta para orquestra com o intuito de imitar o som do movimento de uma locomotiva. Em sua livre adaptação, Gismonti quis ‘contar um causo’ sobre o ‘Trenzinho do Caipira’, que começa com o trem devagar, como se saindo da estação, depois vai acelerando, acelerando. Quando chega ao seu ritmo máximo, ele para de repente porque há vários bois nos trilhos, e é preciso que o maquinista os tire para que o trem continue sua viagem. Tudo escrito acima é ‘contado’ na música inteiramente instrumental, através de muitos efeitos sonoros e sintetizadores.
Depois de 33 discos lançados em 18 anos de carreira, Gismonti resolveu revisitar sua obra com o disco ‘Alma’ (1986), sem músicas inéditas, e sim, com suas composições recriadas e acompanhadas das respectivas partituras. É um disco mais tranquilo e sereno, representando a fase vivida na época pelo próprio compositor. Ele explica que este disco foi o resultado de tantas coisas ruins que viu durante suas viagens pelo mundo, como guerras e bombardeios, que o fizeram pensar na ausência da alma da humanidade. Para contrapor seus últimos discos, onde explorou a tecnologia, através de sintetizadores e computadores, Gismonti utilizou ao máximo o som do piano. A ideia dele era também ir contra uma tendência ao artificialismo, por isso, fez um disco totalmente natural, com o mínimo de efeitos sonoros.
Durante as décadas de 1970 e 1980, além de lançar seus discos e compor trilhas, Gismonti fez muitos arranjos para outros artistas, entre eles Marlui Miranda, cantora, compositora e pesquisadora de música indígena. Entre outros trabalhos, ela foi integrante do grupo Pau Brasil (com Teco Cardoso, Lelo Nazário e Rodolfo Stroeter). Além dela, Gismonti fez arranjos também para Wanderléa, Maysa (1936-1977), Agostinho dos Santos (1932-1973), Johnny Alf (1929-2010), Flora Purim, entre outros. Na década de 1990, Gismonti decidiu diminuir o ritmo das gravações. Mas são deste período os discos ‘Infância’ e ‘Música de Sobrevivência’, gravados na Alemanha, ‘Casa das Andorinhas’ (Brasil), A Revolta (Brasil) e Meeting Point (Alemanha). A partir dos anos 2000, Gismonti começou a manifestar interesse em comprar os direitos autorais de suas músicas, que pertenciam a EMI. Foi preciso ter aulas com advogados renomados na área, por cerca de dois anos, para poder se inteirar do assunto e negociar com as gravadoras e distribuidoras. Inicialmente, a ideia em adquirir os direitos era para disponibilizá-la pela internet, mas naquela época, isso era quase impossível, porque ia de encontro aos interesses de toda indústria fonográfica mundial. Depois de três anos, conseguiu comprar os direitos de toda a sua obra, que pertence ao selo Carmo e é distribuída na Europa pela ECM. Como não podia disponibilizar gratuitamente, passou a lançar CDs a um custo baixo, com o objetivo de levar sua música ao maior número de pessoas, pois isso condiz com o que Gismonti sempre acreditou, que o que importa é a música.
Em quarenta anos de carreira, Egberto Gismonti lançou mais de 60 discos. Apesar de não ser possível rotulá-lo, suas composições seguiram por um caminho de aprendizado musical e pessoal. Isso fica claro quando analisamos o desenvolvimento de suas composições e seus arranjos. A primeira fase, até 1976, foi marcada pela sua formação erudita e influências europeias. Talvez, depois do contato com Naná Vasconcelos e de homenagear sua cidade natal, ele passou a querer mostrar seu lado mais brasileiro, mas não calcado em um único gênero, e sim, em vários: frevo, maracatu, música indígena, samba, folclore e bossa nova. Esta etapa é claramente percebida em seus discos ‘Sol do Meio Dia’ – este composto em homenagem a um índio que conheceu no Xingu – ‘Nó Caipira’, ‘Circense’ e ‘Trem Caipira’. Depois, veio a fase de reflexão de sua obra e vida, com o álbum ‘Em Família’, que mostra bem seu amadurecimento musical, grande domínio dos instrumentos e técnicas e, mais do que isso, a sua consagração, tanto no Brasil, quanto no exterior. A outra fase pode ser considerada de regravações, tanto de suas músicas, quanto de outros autores. Esta é marcada pelo disco ‘Alma’, que não é apenas uma coletânea, mas sim uma visita a si mesmo e às suas influências. A partir de meados da década de 1990 e início dos anos 2000, Gismonti começou a dar preferência para as gravações ao vivo, mas opta em gravar apenas o áudio, sem vídeo, não por timidez, mas por opção. Depois de adquirir os direitos de sua obra, passou a querer disseminá-la, não por ego, e sim por reconhecimento de sua importância. Segundo Gismonti, sua obra para violão é tocada por metade dos violonistas do mundo*, isso justifica sua preocupação em obter os direitos autorais, pois é seu legado.
*Dados do jornal O Estado de São Paulo, de 3 de dezembro de 2010 (Caderno 2).