Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br
Eu sempre utilizei o período de férias, em fevereiro, para poder ouvir gravações novas ou ‘revisitar’ obras que ouvi rapidamente no ano, mas que não pude sentar e apreciar com a devida atenção.
Eu brinco com meus filhos, que o Tidal para mim é como uma loja de brinquedos para as crianças, ou uma loja de chocolate para os chocólatras.
E por mais que seja organizado com minha coleção de favoritos, e o Tidal já tenha entendido que meu perfil é um pouco mais ‘elástico’ que da maioria dos usuários, ele ainda tem uma certa dificuldade em me sugerir novidades, o que me faz esmiuçar as playlists sugeridas várias vezes todas as semanas, atrás da lista final para produzir essa seção mensalmente.
E aí quando chega fevereiro eu viro de ponta cabeça o Tidal, buscando ouvir tudo e ver se algo relevante passou pela minha peneira no ano que se encerrou.
Então, amigo leitor, peço desculpas antecipadamente, pois nesta edição não falarei de nenhum lançamento de 2023, e sim do final de 2022 e dos anos anteriores, mas que são interessantes artisticamente e merecem ser compartilhados com todos vocês.
Essa seção, junto com o caderno Audiofone, ganharam uma repercussão muito acima até mesmo da mais otimista expectativa. Afirmo, sem piscar, que talvez sejam por essas duas novas seções que estejamos conquistando tantos leitores jovens e que começam a entender o que seja o universo hi-end e como ele pode ser ‘degustado’ com o uso de um celular e um bom fone.
1- HERE IT IS: A TRIBUTE TO LEONARD COHEN (BLUE NOTE, 2022)
Se fosse um LP, já teria rodado mais de uma dúzia de vezes em meu sistema.
Pois ouvi por dias para poder assimilar tantos detalhes nos arranjos e na interpretação dos cantores escolhidos a dedo, como: Norah Jones, Peter Gabriel, Gregory Porter, Sarah McLachlan, Luciana Souza (sim a cantora brasileira), James Taylor, Iggy Pop, Mavis Staples, David Gray e Nathaniel Rateliff.
Para esse belo trabalho, se partiu da ideia de uma banda fixa para todas as faixas, o que ajudou a tornar o disco coeso e com uma proposta de arranjo e execução muito bem alinhavada. Gosto muito dessa ideia, pois permite que um disco Tributo não oscile na qualidade técnica e artística.
A banda foi formada pelo guitarrista Bill Frisell, o saxofonista Immanuel Wilkins, o pianista Estey Scott Colley, o baixista Nate Smith, o baterista Gregory Leisz e o organista Larry Goldings. O produtor foi o Larry Klein, e o engenheiro chefe Adam Greenspan.
O produtor Larry Klein produziu vários discos de sua ex-esposa, Joni Mitchell, e do pianista Herbie Hancock. E por muitos anos cogitou produzir esse tributo, reunindo músicos que trabalharam com ele em diversos discos, para gravar as 12 faixas e depois enviar para os vocalistas escolhidos para dar a sua interpretação pessoal à obra de Leonard Cohen.
Na escolha dos dez vocalistas, Klein fez apenas um único pedido: que todos preservassem a poesia de Cohen, já que ele jamais se considerou um cantor e, por isso mesmo, ao ouvir seus belos versos, tínhamos a impressão de que ele estava declamando e jamais cantando. Na minha opinião, o que conseguiu fazer essa proposta com maior desenvoltura foi Peter Gabriel.
Ainda que tenha apreciado o esforço e o ‘molho’ pessoal que cada um deu a cada faixa.
O resultado foi primoroso, e pode perfeitamente realizar a ‘introdução’ ao universo de Cohen, de letras repletas de dor, desilusão, esperanças e dúvidas, que só a poesia pode nos proporcionar sem tornar esse sofrimento e angústia humana insuportáveis.
Os arranjos são absolutamente magníficos, com as intervenções do saxofonista alto Immanuel Wilkins, que funciona como um breve hiato entre as palavras e a melodia.
É um disco para apreciar em doses homeopáticas, até descobrir as faixas que lhe são mais reveladoras.
Depois de duas audições completas, minhas preferidas são: Here It Is com o Peter Gabriel, Hey, That’s No Way To Say Goodbye com Luciana Souza, If It Be Your Will com Mavis Staples, Seems So Long Ago, Nancy com David Gray, e Famous Blue Raincoat com Nathaniel Rateliff.
Quais irão ser as suas, amigo leitor?
2- MILES DAVIS – WHAT IT IS: MONTREAL 7/7/83 (REMASTER) (COLUMBIA LEGACY, 2022)
Ok, talvez você deteste a última fase do Miles Davis. Entendo e respeito sua opinião, mas se você, como eu, gosta dessa fase elétrica de Miles, essa foi uma noite inspirada e tanto o repertório quanto a banda estavam há mais de uma ano na estrada, e este show foi o encerramento da turnê, mostrando que a banda estava já tocando por ‘osmose’.
A cozinha (baixo e bateria) foi uma das mais perfeitas dessa fase elétrica de Miles, com Al Foster na bateria e Darryl Jones no baixo. Na guitarra, o jovem John Scofield, que teimava em tocar o tempo todo mascando chiclete, na percussão Mino Cinelu, saxofone e flauta Bill Evans, e no trompete e teclados Miles Davis.
Antes de iniciar a turnê, Miles passou duas semanas na casa de Joe Zawinul pegando dicas de teclados e sintetizadores analógicos, pois queria mais peso na criação das camas harmônicas de sua apresentação ao vivo, e Zawinul era ‘o cara’ que tinha todo o conhecimento e expertise em apresentações ao vivo, para fazer aquela parede sonora de sintetizadores.
É avassaladora a apresentação da faixa Speaker, a que abre o show, mostrando que a banda estava realmente a fim de tocar naquela noite.
Que bom que foi feito o registro dessa apresentação memorável – aumente o som e por favor se divirta, amigo, pois como os músicos dizem: ‘os caras quebraram pra valer’.
3- CHUCHO VALDÉS – EN EL TEATRO COLÓN (MUTIS DISCOS, 2007)
Quando alguém me fala que o Teatro Colón, de Buenos Aires, tem apenas a acústica perfeita para Ópera, eu tenho que me esforçar para não rir, pois basta o cara que afirma isso ouvir gravações feitas lá de outros gêneros musicais, para vir por terra essa opinião.
Adoro a acústica do Teatro Colón, pois ela não é tão longa e nem tão seca que não possa abrigar diversos estilos, e quando bem captados soarão primorosos.
Quer um exemplo?
Ouça a apresentação memorável do pianista cubano Chucho Valdés, realizada em sua turnê pela América do Sul em 2007, e felizmente gravada. Foi a primeira vez que ele se apresentava no Teatro Colón e era visível em sua voz a emoção de estar ali.
Ouvindo a gravação, que eu desconhecia, dá para notar duas coisas: o Teatro não estava com sua lotação máxima, e o engenheiro de gravação foi muito feliz no posicionamento do piano no palco e na distância dos microfones em relação ao instrumento.
Conhecido pela maneira com que Chucho ataca o instrumento, se o engenheiro não tomar as devidas precauções com a distância dos microfones, o som vai rachar na macrodinâmica sempre.
Nada disso ocorreu, o que só contribui para podermos apreciar sem sobressaltos a dinâmica deste estupendo pianista, sua técnica e seu ótimo bom gosto nos seus solos e arranjos para temas complexos como Blue Monk e a doçura na bela Habanera.
Chucho estava inspirado e fez uma apresentação impecável, e nós ganhamos um registro artístico e técnico maravilhoso. Se seu sistema estiver à altura da gravação, você será literalmente transportado para a quinta fila do Teatro Colón e, como eu, quando lhe disserem que sua acústica é boa apenas para ópera, balance a cabeça e sussurre para você mesmo: ele não sabe de nada!
4- CHARLIE HADEN & GONZALO RUBALCABA – THE LAND OF THE SUN (UNIVERSAL MUSIC, 2004)
Ouvi esse disco em 2005 na casa de um leitor que me pediu para ir fazer uma avaliação de seu sistema. Ele tinha umas caixas ProAc book, um toca-discos Linn Sondek LP12, um integrado da Rogers, CD-Player Sony e cabos Kimber.
Era uma sala enorme para aquele sistema , e a única maneira de driblar os problemas do tamanho da sala, era uma audição com as caixas a menos de 2 metros do sofá e com um toe-in muito acentuado.
Ouvi alguns discos com vozes que soaram razoáveis apenas, mas quando ele colocou esse disco do Charlie Haden, a faixa Fuiste Tu com arranjo do Gonzalo (em todas as faixas, aliás), eu simplesmente me desconcentrei do que tinha ido lá fazer, e mergulhei na música literalmente.
Você já teve algum tipo de arrebatamento com uma música? Em que tudo à sua volta se desvanece e seus sentidos se voltam apenas para a música?
Foi isso que ocorreu!
Ao término da música, minha única vontade foi olhar a capa do disco para memorizar e achar que eu não esqueceria da capa – como jamais esqueci daquela audição.
Nunca encontrei esse CD e, acredite, meu amigo, procurei por anos e sempre ouvi que estava fora de catálogo – e o tempo acabou apaziguando o desejo de ter o disco.
Aí agora, nas férias, ouvindo o último trabalho do Haden, fui pesquisar toda sua discografia e eis que ao ver a capa, a cena, a sala, a temperatura que estava aquele dia e a luminosidade que entrava pela janela em um fim de tarde muito limpo, voltaram à memória.
Um disco que apenas conhecia a primeira faixa. O disco é todo lindo, com clássicos da música caribenha com arranjos primorosos do pianista Gonzalo, com um naipe de metais de um bom gosto impressionante.
Uma gravação que vai lhe tocar fundo se você amar a música cubana e da américa latina. E ainda que não seja sua praia, dê uma chance, quem sabe ela seja uma fonte inspiradora para você também.