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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Quando eu tinha onze anos, ouvi de um cliente do meu pai uma resposta que me fez pensar o quanto nós mesmos somos capazes de criar fronteiras tão limítrofes.

Meu pai perguntou o motivo dele não ter nenhum disco de jazz, e sua resposta, na ponta da língua, foi que se tratava de um estilo feito apenas para músicos e musicistas e que jamais deveria ter sido lançado como um gênero musical para consumo.

Confesso que fiquei horrorizado em saber que existiam pessoas que investiam em bons equipamentos para ouvir música e jamais ouviriam Duke Ellington, Armstrong, Miles, Bill Evans, Coltrane e tantos outros nesses sistemas.

E essas pessoas realmente existem, e me deparei com elas nos nossos Cursos, Eventos, e nas próprias consultorias.

Claro que não ousaria apresentar para quem não curte jazz, logo de cara, um Sun Ra ou um Ornette Coleman, pois isso seria ‘afugentar’ de vez o ouvinte.

Então, minha estratégia quando sei que um leitor que me pediu ajuda para avaliar seu sistema, não gosta de jazz, é selecionar umas duas ou três faixas, que ouço em seu sistema justamente com ‘segundas intenções’, e sempre são obras ‘palatáveis’ que são quase de domínio público, para quebrar a resistência inicial.

E uma de minhas preferidas é Birdland do grupo Weather Report, do disco Heavy Weather, música centenas de vezes já regravada, e transcrita até para duo de violão e para big bands!

E ainda que goste de algumas dessas regravações, como a feita pelo Quincy Jones e a do pianista cubano Chucho Valdés, a original continua imbatível! Por uma única razão: é uma música que se tornou atemporal! Você mostra a um jovem de mente aberta, e ouvirá dele após os primeiros compassos, um sonoro “Uau”!

E também mostra ao sujeito avesso ao jazz, e ele em poucos segundos estará interessado em ouvir o tema até o final.
Diria que é um dos temas de jazz mais ‘chiclete’ que escutei na vida, pois em questão de minutos você estará cantarolando o refrão e o colocando em sua memória de longo prazo. E aquela resistência que muitos tinham a esse gênero, se dissipa como em um estalar de dedos.

Mostre o tema certo em um bom sistema hi-end, e até a Sagração da Primavera de Stravinsky será curtida com gosto, diria meu pai. E ele estava absolutamente certo.

Gosto de muitos saxofonistas de Coltrane, Dexter Gordon, James Carter. E um em especial: Wayne Shorter. Minha admiração vem da minha primeira audição de Speak No Evil, no seu duo com o trompetista Freddie Hubbard, que ouvi em 1972 na casa de um cliente do meu pai (esse um fã ardoroso do Jazz), e fiquei surpreso ao saber que se tratava de um disco lançado em 1966.

Tinha algo na maneira que as notas soavam de seu sax tenor e soprano, que me remetiam a uma espécie de mantra, que fazia uma ponte entre a música do ocidente e do oriente. Isso muito antes de conhecer e ouvir Mahavishnu Orchestra e Ravi Shankar.

Suas notas eram longas, como se quisessem ter vida própria para além do tema executado.

Aí quando ele se juntou com o tecladista Joe Zawinul, para montar a banda de jazz fusion Weather Report na década de 70, para mim foi simplesmente a ‘colher de sopa no mel’!

Suas harmonias podiam ser extremamente complexas, no entanto ele as transformava em melodias líricas e que você podia até assobiar. Sua facilidade em compor temas tão exuberantes veio de seu fascínio pela estrutura dramática das grandes sinfonias de Rimsky-Korsakov, Brahms e Beethoven, o que o fez iniciar seus estudos primeiramente tocando clarinete, e só depois o sax tenor.

Aos 14 anos, já como aluno da Newark Arts High School, ouviu Charlie Parker, Bud Powell e Monk, e descobriu que o sax tenor seria o instrumento mais adequado para dar forma às suas composições. Em 1952, ingressou na Universidade de Nova York e, para pagar as mensalidades, fazia shows noturnos em diversas casas de jazz da cidade.

Em 59 veio sua primeira grande oportunidade como músico profissional, ao ser contratado pela big band do trompetista Maynard Ferguson, e em uma apresentação primorosa no Newport Jazz Festival naquele mesmo ano, o baterista Art Blakey o viu tocando e lhe fez o convite para fazer parte de sua banda. Foram cinco anos de parceria que colocou Shorter finalmente no cenário musical como um saxofonista estiloso e talentoso.

Toda essa notoriedade chamou a atenção de Miles Davis, que estava atrás de novos e talentosos músicos para seu novo quinteto, e que contratou simultaneamente: Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Shorter, e gravaram na sequência : ESP, Miles Smiles e Sorcerer.

Em suas memórias, lançadas em 1989, Miles escreveu que considerava Shorter ‘o catalisador musical intelectual’ daquele quinteto. Foi a catapulta que faltava para Shorter iniciar sua carreira solo, e criar excelentes quintetos e quartetos que, pelo selo Blue Note lançaram: Night Dreamer, Juju, The All Seeing Eye, Speak No Evil e Pomo de Adão.

Interessante é que em toda essa primeira fase de sua carreira seu sax era o tenor. Até que Miles Davis o desafiou a tocar sax soprano no álbum de 1969 – In a Silent Way, e Shorter não só gostou do desafio, que a partir de 1970 passou a usar ambos em todas as suas gravações.

Meu amigo, são mais de 40 discos – sem contar as participações especiais em discos da cantora Joni Mitchell, de Milton Nascimento e do grupo Steely Dan – que seria impossível neste Playlist indicar quatro de seus trabalhos mais importantes.

Então sugiro que você entre no Tidal ou Qobuz, e ouça o maior número possível de discos que desejar, e só depois escute minhas quatro indicações. Pois eu escolhi duas com o grupo Weather Report – Heavy Weather e Domino Theory, e dois discos dele, um de 1995 e o outro ao vivo de 2002.

Os dois com a banda Weather Report seriam interessantes pelo lado de como ele realmente era um ‘agregador’ intelectual, pois segundo os músicos que trabalharam com ele, o que mais se destacava era a liberdade de criação que ele permitia a cada músico. Sempre incentivando-os a sair de sua zona de conforto, e dar sua contribuição pessoal à obra. E isso fica muito claro em ambos os discos escolhidos, pois a banda consegue apresentar todos os temas de forma muito criativa e coesa. E Wayne Shorter se destaca tanto por seus solos como pela colaboração nos arranjos da banda.

OUÇA WEATHER REPORT – HEAVY WEATHER, NO TIDAL.
OUÇA WEATHER REPORT – DOMINO THEORY, NO TIDAL.

Já High Life, de 1995 é um disco em que ele ainda está sob a influência do jazz fusion, mas nitidamente começando a experimentar novos caminhos, sinalizando que o acústico voltará a ser parte do conceito central de futuros trabalhos, mas não utilizado de maneira convencional.

OUÇA WAYNE SHORTER – HIGH LIFE, NO TIDAL.

E o quarteto formado para a turnê que culminou com a gravação de Footprints, ao vivo de 2002, é totalmente acústico com: Danilo Perez no piano, John Patitucci no baixo e Brian Blade na bateria. E, nessa turnê, ele apresenta releituras de seus grandes temas como JuJu, Go e Atlantis.

OUÇA WAYNE SHORTER – FOOTPRINTS LIVE, NO TIDAL.

Deixei por último esse disco pelo fato deste ser menos ‘palatável’ aos ouvidos com certa resistência ao gênero. Mas nada que vá virar seu tímpano do avesso, ou fazer você gaguejar ao falar bem rápido ‘paralelepípedo’, depois de oito doses de tequila em jejum!

Não sei se existe uma idade interessante para sairmos de cena. O que posso dizer é que os seus 89 anos de vida foram brilhantemente vividos. Wayne era um homem múltiplo, que tinha várias paixões, que iam de ser um colecionador de histórias em quadrinhos, estudar temas esotéricos e, claro, seu enorme talento musical.

Ele conseguiu realizar e experienciar todas com enorme ternura e paixão.

O que pode ser melhor que isso, para sintetizar uma vida plena?

Wayne Shorter

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