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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Já citei em diversos textos que minha formação musical foi bastante eclética, já que cada um dos meus irmãos, e meus pais, tinham gosto muito distintos. No entanto, muitos dos meus autores preferidos só vim conhecer na minha vida adolescente ou adulta.

Entre eles estão três dos mais influentes em minha formação musical: Miles Davis, John Coltrane e Charles Mingus.

E quando os ouvi pela primeira vez foi em uma única tarde, na casa de um professor de literatura, que vivia com mais seis amigos, em um enorme casarão na Rua Voluntários da Pátria, no Bairro de Santana, zona norte de São Paulo.

Lembro da ampla sala apenas com almofadas e tapetes multicoloridos espalhados no piso de madeira, com uma enorme estante de parede a parede em um dos lados com uma quantidade impressionante de livros e discos e, debaixo de uma enorme janela, tijolos sustentando uma tábua envernizada com um receiver Polyvox, um toca-discos Dual, um gravador de rolo Akai (talvez o 4000), e um par de caixas também Polyvox.

Quando cheguei à sala, Coltrane já estava rodando e reconheci imediatamente o tema – In A Sentimental Mood e a digitação inconfundível de Duke Ellington. Fiquei paralisado ao ouvir pela primeira vez essa versão ‘minimalista’ de um tema tão familiar.

Mas a maior surpresa do dia foi quando meu professor me perguntou se eu conhecia o contrabaixista Charles Mingus, e me disse que para entender sua genialidade seria necessário ouvir os três Charles Mingus que ele carregava dentro de si.

Aquilo despertou em mim um interesse imediato por saber tudo sobre sua vida e sua obra.

Foi um homem que lutou com todos os demônios que podemos carregar e suportar em uma existência, e buscou por toda a sua vida administrar esses três Mingus que a esquizofrenia lhe impôs! Se quiserem conhecer a fundo sua trajetória pessoal e musical, sugiro a leitura de sua biografia – Saindo da Sarjeta. Poucas vezes li uma autobiografia em que alguém tem a coragem de se expor de forma tão visceral, e de apresentar de maneira tão contundente suas fraquezas e seus medos. E fica claro, depois de conhecer o Homem Mingus, a dimensão que sua música ganha tanto em termos artísticos, como de ser seu único ‘porto seguro’.

Logo no primeiro capítulo, temos a revelação do estado esquizofrênico que apareceu logo no final de sua adolescência, e todas as suas severas complicações que lê causaram física e mentalmente, e como isso foi a base de toda sua criação musical.

Ele, nos primeiros parágrafos, relata que o fato de seu pai afirmar e exigir que sua família não era negra – e isso lhe causou traumas profundos, pois na escola desde muito cedo ele era tratado como negro pelos colegas e professores. Isso o deixaria extremamente confuso e com enorme raiva de todos.

Como ele escreve nesse capítulo: “Os erros da educação familiar serão sempre corrigidos pela educação do mundo”.
Com 19 anos ele começou a sentir que haviam três Mingus dentro dele – fato relatado anos mais tarde ao psiquiatra que cuidou dele, e escreveu a contra capa do seu primeiro disco, e que se tornaram grandes amigos. Ao chegar ao consultório, ele disse estar lá apenas para fazer um pedido: ser internado, já que as múltiplas personalidades haviam se tornado frequentes.

Ele narra essa consulta assim: “Doutor, eu sou três. Um homem fica sempre no meio despreocupado, sem se emocionar, observando, esperando que lhe permitam expressar o que ele vê para os outros dois. O segundo homem é como um animal assustado que ataca por medo de ser atacado. E, então, há uma pessoa gentil e super amorosa que acolhe as pessoas no templo mais sagrado do seu ser, aceita insultos, confia, assina contratos sem ler, cai na conversa dos outros e acaba trabalhando de graça, e quando percebe o que fizeram, tem vontade de matar e destruir tudo ao seu redor, inclusive a si mesmo por ter sido tão estúpida, mas não consegue, e volta para dentro de si mesma”. O médico ficou impressionado com a percepção e a distinção que Mingus demonstrou de si mesmo, e passou a ajudá-lo.

Anos mais tarde o próprio Mingus, depois que conseguiu dar um sentido menos caótico as três personalidades, descreveu ainda no primeiro capítulo cada uma delas: “O primeiro Mingus se caracteriza pelo autocontrole, capacidade de análise e tomar decisões conscientes, planejadas, além de ter força e frieza suficientes para amparar os outros dois em seus momentos de descontroles dor e frustração. O segundo só se manifesta irracionalmente e o terceiro Mingus é o protagonista”. E mostra ao leitor como os três foram propulsores de sua extensa obra musical, e como essas três personalidades, nos momentos de crise, jogaram Mingus literalmente na sarjeta, atrás das grades ou em manicômios.

Foi uma vida de tantos altos e baixos, que se ouvirmos sua obra, ficaremos atônitos do quanto ele produziu e com que nível de qualidade ele o fez!

No total Charles Mingus lançou 51 álbuns e, como convidado, tocou em 34 discos.

Se você é um amante do Jazz, certamente conhece vários de seus trabalhos, no entanto resolvi fazer este Playlist dedicado exclusivamente a Charles Mingus, pelo lançamento esse mês de todos os seus álbuns de estúdio gravados pelo selo Atlantic /Warner nos anos 70, o que nos permite entender como em sua última década de vida (ele morreu em 1979), os “Três Mingus” participaram dessa jornada criativa.

OUÇA CHARLES MINGUS – CHANGES, NO TIDAL.

Divididos em sete discos, temos uma ideia exata de como Charles Mingus conseguiu fazer com que suas três personalidades se manifestassem de maneira criativa e ‘harmoniosa’.

Se você leu atentamente a descrição das três personalidades descritas acima pelo próprio Mingus em sua autobiografia, tenho certeza que conseguirá sem nenhum esforço identificar o Consciente e Organizado, do Irracional e do Protagonista.

Em uma de suas últimas entrevistas, ele reconheceu que sua maior vitória naquele momento havia sido conseguir aceitar suas múltiplas personalidades, e dar ‘voz’ a todas de maneira criativa.

Sei que você não irá ouvir os sete discos de uma única vez, então sugiro, para que você tenha um vislumbre da genialidade ‘múltipla’ de Mingus, ouvir uma composição escrita por cada uma de suas personalidades.

Comece pela faixa 4 do disco 2 – Duke Ellington’s Sound of Love. E me diga que Mingus a escreveu?

Depois ouça a faixa 1 do disco 6, a genial – Three Worlds of Drums. Mas a ouça integralmente, e me diga qual Mingus a criou?

E finalmente, escute a faixa 3 do disco 7 – Farewell Farwell – e me responda se foi o Mingus Consciente, o Irracional ou o Protagonista?

Espero respostas, sim?

Excelentes audições meus amigos!

Changes: The Complete 1970s Atlantic Studio Recordings

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