Fernando Andrette
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Um querido amigo músico outro dia me perguntou, à ‘queima-roupa’, quando eu havia me tornado um divulgador de música conservador?
Achei que ele estava querendo brincar, mas pelo tom de sua voz percebi que era sério seu questionamento. E antes que pudesse esboçar em minha mente uma resposta, ele prosseguiu mostrando que nesses vinte e poucos anos eu havia tido por diversas vezes a ‘coragem’ de indicar gravações fora do óbvio, e que ele mesmo havia se beneficiado dessas dicas por inúmeras vezes. Mas que da pandemia para cá eu tinha me tornado um conservador no mínimo ‘polido demais’.
Ok, pensei eu com meus botões, acho que ele está querendo me testar para ver se faço algo fora da zona de conforto e topei, no ato, o desafio. E ainda brinquei com ele, dizendo que se ninguém gostasse da Playlist desse mês, ele teria que pagar um almoço. E se pelo menos dez leitores gostarem das dicas, eu pago a refeição.
Então pela primeira vez pedirei a todos os nossos leitores que não se manifestem por favor, rs!
Muitos melômanos se queixam que as majors, quando se trata de música clássica, insistem em manter um catálogo pobre em música contemporânea, pois acham que não venderá o suficiente para justificar o investimento.
É um círculo vicioso, onde a música clássica não ganha ouvintes jovens, e os existentes estão cada vez mais velhos e com menor poder aquisitivo (alguma semelhança com o mercado Hi-End?).
Felizmente, existem exceções a essa falta de coragem das majors em buscar diversificar e ampliar seu catálogo. Foi o mote do diretor artístico Gil Rose para, em 1996, fundar o Boston Modern Orchestra Project (BMOP), que buscou criar uma ponte entre os compositores contemporâneos e um público mais jovem buscando conhecer melhor a música clássica produzida atualmente.
Não foi fácil o início de tão ambicioso projeto, ainda que em suas doze primeiras temporadas o BMOP tenha realizado mais de 80 concertos, e encomendado mais de 20 obras para mostrar ao público. Dessa série de concertos, foram produzidos 20 CDs e criou-se o primeiro Festival de Música Contemporânea, com a apresentação de mais de 70 estreias mundiais.
Atualmente, já em sua vigésima primeira temporada, o catálogo do BMOP reúne mais de 50 gravações, e muitas dessas obras merecem uma audição tanto pela qualidade artística, quanto pela qualidade técnica. Já que a sala de concerto do BMOP é a maravilhosa Jordan Hall de Boston.
Em 2008 o BMOP seguiu os passos de inúmeras excelentes orquestras, e criou seu próprio selo, o BMOP Sound, escolhendo sempre lançar gravações de compositores que jamais seriam gravadas pelas majors.
E muitas dessas gravações já ganharam muitos prêmios internacionais, e críticas elevadíssimas, como: New York Times, Boston Globe, National Public Radio, Time Out, DownBeat, Guia American Record, Diapason e Classic CD.
E duas indicações ao Grammy pela sinfonia Wilde de Charles Fussell, e pela gravação de Derek Bermel como melhor performance solista.
O New York Times, em uma retrospectiva musical em 2020, proclamou que o BMOP Sound é um exemplo para as gravadoras de “tudo bem feito”.
Assino embaixo.
Pois o esmero em todas as etapas, eleva ainda mais o padrão de qualidade, tanto da orquestra, como da escolha de repertório contemporâneo e da qualidade técnica.
Com mais de 50 discos lançados desde 1996, é difícil escolher apenas dois trabalhos, então sugiro a todos que apreciarem as indicações, que percam um bom tempo ampliando a audição para mais discos, pois esse é um trabalho que valerá a pena e faz bom uso da vantagem de se ter uma assinatura em uma plataforma como o Tidal, que tem quase todos os discos da BMOP Sound.
Em um outro artigo publicado em 2000, pelo New York Times, o crítico escreveu: “O Sr Rose e sua equipe encheram a música com cores ricas e decisivas e solos magníficos. Uma orquestra formada com excelentes instrumentistas, nos proporcionando audições ao vivo e gravadas, arrebatadoras”. E o compositor John Harbison acrescentou, nesse mesmo artigo: “Nenhuma outra cidade tem algo parecido com o BMOP – com esse nível de atividade com essa produtividade sustentada”.
Imagino que muitos de vocês irão se contentar em ouvir apenas o streaming, mas se quiserem uma dica, entrem no site http://bmopsound.bandcamp.com, e comprem o CD + Digital por 20 dólares.
São gravações, como escrevi, primorosas!
Você vai se impressionar com a quantidade de obras lançadas em 2023: são até o momento 8 gravações.
Vou me restringir a duas que achei excepcionais:
1- SAMUEL JONES: THREE CONCERTOS (FLAUTA, VIOLINO E TROMBONE)
Jones nasceu no Mississipi em 1935, mostrou ter enorme talento para a música desde muito cedo, recebeu seu diploma de graduação com a mais alta honra no Millsaps College, e teve sua formação musical no Eastman School of Music e, depois, mestrado e doutorado em composição com Howard Hanson, Bernard Rogers e Wayne Barlow. Seus mentores na regência foram: Richard Lert e William Steinberg.
Depois de passar por pequenas orquestras como regente, tornou-se diretor musical da Filarmônica de Rochester e, alguns anos depois, foi convidado a fundar uma nova escola de música em Houston, no Texas.
Suas principais composições incluem: oratórios, três sinfonias, e obras orquestrais para coro e orquestra, música de câmara, e uma ópera.
Nunca antes seus três concertos haviam sido reunidos em um só disco.
E o concerto para violino e orquestra, em sua estreia, foi apresentado pela violonista Anne Akiko Meyer, com a All Star Orchestra e a regência de Gerard Schwarz, em 2015.
Concertos para flauta e trombone não são muito comuns, no entanto quando bem escritos podem ser uma incrível viagem sonora, pois se trata de dois instrumentos de sopro com bela sonoridade que é muito bem ‘explorada’ no jazz, e muito pouco na música clássica contemporânea. Por isso minha escolha.
Espero que muitos de vocês apreciem, mas por favor não se manifestem, ok? Pois do contrário terei que pagar um almoço, e esse meu amigo que é bastante exigente nas suas escolhas gastronômicas – pois além de excelente músico é bom de garfo também!
2- JOAN TOWER: PIANO CONCERTO – HOMAGE TO BEETHOVEN
Compositora, pianista e concertista, Tower é considerada pela crítica americana como uma das mais talentosas e completas musicistas do século 20.
Suas composições, segundo a Diapason, são ousadas, enérgicas e muito originais.
Sua primeira composição orquestral, Sequoia, de 1981, foi escrita como um poema musical que retrata uma árvore gigante e todas as suas nuances na forma, textura e cores das folhas e sombra.
Ela é fundadora do Da Capo Chamber Players, e vencedora do Prêmio Naumburg que já encomendou diversas obras suas e, agora, também é compositora frequente para o BMOP e lança obras como esse genial concerto em homenagem a Beethoven.
Intrigante e intenso, ela produziu uma obra que explora, nos quatro movimentos, frases musicais que certamente rondaram a mente de Beethoven em diversas de suas obras, tanto sinfonias como obras menores para solo de piano, ou quartetos de cordas.
Trata-se de inúmeras imagens sonoras sobrepostas, como em seus poemas musicais, sem o apoio da palavra, levando o ouvinte a ter que se esforçar para seguir seu raciocínio, hora vago, e outras repleto de emoção e impacto melódico e dinâmico.
Se você ainda se aventura em se permitir mergulhos mais profundos em espaços sonoros nunca antes explorados, eu não conheço obra melhor para esse desafio poético, musical e sensorial.
Divirta-se, meu amigo, pois essa viagem pode ser rejuvenescedora!
3- SAMARA JOY: A JOYFUL HOLIDAY (2023)
Voltando à minha ‘zona de conforto’, como insinuou meu amigo, faço uso do maior dos clichês de final de ano: indico um disco com canções natalinas, prática tão comum das majors nessa época do ano.
Felizmente Samara Joy não se encaixa nesse ‘lugar comum’, e coloca todo seu talento e virtuosidade para recriar cinco temas natalinos já cantados por inúmeras vozes talentosas, mas tão bem recriadas por Samara, que parecem todas serem obras inéditas.
Um disco delicioso e tão curto que parece ter sido proposital, pois nos deixa com apenas duas possibilidades: ouvir inúmeras vezes até o seu vizinho jogar um panetone na sua janela, ou esperar que Samara tenha para dezembro o ‘lado B’ com mais seis faixas.
Meu amigo, você goste ou não, vou repetir: Samara Joy é a grande cantora americana deste século.
Vida longa a ela e a todos que conseguem se deleitar com um timbre tão lindo e afinado!
Um Feliz Natal a todos vocês, com um mês de antecedência!