Discos do Mês: JAZZ, POP-ROCK & JAZZ
outubro 16, 2020
Opinião: BRAÇOS DE TOCA-DISCOS – HERÓIS OU VILÕES?
outubro 16, 2020


Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Recentemente um leitor me perguntou se eu não aprecio gravações nacionais, já que as cito pouco em minhas playlists. Surpreso com a pergunta, em um primeiro momento, lá fui eu ver se o leitor tinha razão e me deparei com uma quantidade mínima realmente de gravações nacionais. Ao contrário de minha discoteca, em que o acervo de música brasileira é bem significativo.

O problema é que sou muito seletivo e criterioso com qualquer gênero que eu aprecio, não dando nenhuma margem para discos que tenham apenas algumas faixas que goste ou que chame minha atenção.

Gosto de escutar todos os meus discos integralmente, detestando ter que levantar a cada duas ou três faixas para trocar de gravação. Esse ritual me acompanha desde a minha infância, quando nos reuníamos todos para os saraus familiares. Ninguém tocava um disco apenas para mostrar uma faixa. Fomos habituados a ouvir o disco completo, valorizando o músico e sua obra, e o artista. Na juventude este ritual se consolidou, afinal queríamos, ao chegar em casa, degustar o disco inteiro. E aí que cometêssemos o “sacrilégio” de iniciar uma audição pelo lado B!

O que mais gosto ao relembrar daquela época era o interesse e respeito que todos tínhamos assim que a agulha tocava o vinil, um silêncio absoluto se instalava na sala, e se alguém iniciasse uma conversa era convidado a se retirar do recinto. As audições possuíam um tom solene de respeito, admiração e expectativas. Exercíamos o direito de ser melômanos na concepção mais literal possível.

Este mesmo comportamento se estendeu ao Teatro Municipal, nas tão inesquecíveis Sessões da Meia Noite, nas estreias de grandes nomes da Música Instrumental Brasileira.

São lembranças tão vívidas que sou capaz de rememorar até mesmo mais sutis detalhes, de tão embriagadoras que foram aquelas audições. Algumas foram muito impactantes, como a estreia do Academia de Danças do Egberto Gismonti, com o Teatro Municipal lotado. Minha mais doce lembrança daquele dia foi quando, com o palco totalmente na penumbra, Gismonti começa a cantar “Quatro Cantos”: “Quando alguém falou de abandonar a casa, ela não sabia que era cedo demais: desapareceu sem que ninguém notasse, e escondeu todos os traços do fim da noite no lençol”. Esta introdução ainda ecoa na minha mente, e me transporta novamente para aquele exato momento, como se em um eterno retorno pudéssemos viver tudo aquilo novamente. Então, como não ouvir este LP de tempos e tempos, e apreciar essa obra integralmente?

Este é um dos LPs nacionais que mais escutei em minha vida, tanto que é um dos raros discos que tenho duas cópias (a original da época e uma reedição lançada no fim dos anos 80). Ambas bem conservadas e que, quando eu me for, meus filhos certamente pensarão que o pai comprou este disco repetido! Se você não conhece este disco do Egberto, você está cometendo uma grande injustiça, pois é essencial para se conhecer a trajetória deste gênio da música brasileira de qualidade. A versão em CD não é tão boa como o LP, e o streaming só serve para conhecer a obra. Se a intenção é ouvir como ela foi concebida pelo compositor, ouça-a em vinil e, se possível, em um bom sistema. Os arranjos de cordas são excelentes, tudo soa com o corpo correto, belas texturas e um Egberto Gismonti no ápice de sua brilhante carreira!

Quem foi na nossa sala nos últimos quatro Hi-End Shows, certamente lembrará da apresentação em vinil da música Beatriz com Milton Nascimento, do maravilhoso disco O Grande Circo Místico, de Edu Lobo & Chico Buarque. Este é outro disco que me acompanha desde o seu lançamento. Tenho o original com o belo encarte de oito páginas, e sempre que toco este LP as pessoas citam que não sabiam o quão bem gravado ele era. Sim meu amigo, este disco foi gravado com extremo cuidado e requinte. Talvez você não saiba, mas este foi o disco de estreia do Estúdio da Som Livre, montado no Rio de Janeiro. Dizem que as máquinas de gravação de 24 canais chegaram apenas duas semanas antes dos músicos entrarem no estúdio, e a masterização foi feita no Ocean Way Rec, em Los Angeles.

Das gravações nacionais que conheço com letra, este é sem dúvida uma das grandes referências. Tudo soa com enorme inteligibilidade e conforto auditivo. Reverberações digitais na medida certa, sem ocasionar brilho e aquele incômodo de sibilação nas palavras com início em “S”. Os arranjos do mestre Edu Lobo e a arregimentação de Paschoal Perrota. No time de cantores e cantoras convidados temos: Milton Nascimento, Jane Duboc, Gal Costa, Simone, Gilberto Gil, Tim Maia, Zizi Possi, e Chico Buarque & Edu Lobo.

Essa é uma daquelas obras atemporais, que nos acompanham por toda a nossa existência. A notícia ruim é que achar uma cópia em LP em bom estado é como ganhar na loteria. Então só resta a cópia em CD. A Som Livre alguns anos atrás lançou uma edição especial em que veio com um bônus: uma faixa adicional do Tom Jobim tocando Beatriz em seu próprio piano, gravado em sua sala de trabalho. Jobim, em uma de suas últimas entrevistas para o
Caderno 2 do Estadão, foi perguntado qual obra que não era sua que gostaria de ter escrito? Uma das citadas era justamente Beatriz!

Outro detalhe desta edição em CD especial é que, segundo a Som Livre, a cópia foi feita da própria master original feita em Los Angeles. Tenho este CD, mas nunca comparei com um CD “normal” para saber se realmente soa melhor. E quando comparado com o LP, não dá para escutar o CD. Pois este soa com corpos bem menores, e as texturas são apenas uma sombra do que ouvimos no LP.

Outro disco que tenho desde sua estreia, que ainda tem na contracapa o selo da loja Bruno Blois – com seu famoso telefone 223-7011, que decorei de tanto ligar no meio das semanas para saber com os vendedores se haviam novidades, e já pedir para separar os que chegavam com poucas cópias – é o disco de estreia do César Camargo Mariano & Cia – São Paulo – Brasil. Lançado pela BMG Ariola, que acabara de se instalar no Brasil e estava fazendo um estrago no mercado roubando artistas da RCA, Philips e da Odeon. O grupo era formado pela mesma banda de apoio da Elis Regina, e que estava na estrada com ela apresentando o espetáculo Falso Brilhante: César nos teclados, Natan Marques na guitarra e violão, Crispin Del Cistia na guitarra e violão e teclados de apoio, Wilson Gomes no baixo, e Dudu Portes na bateria e percussão.

É um disco bastante conceitual, em que o César pode com total liberdade mostrar sua veia mais jazzística e eletrônica. É um disco para se escutar na íntegra pois ele funciona como trilha de um filme só com a música. Outro dia em visita, o André Maltese, vasculhando minha coleção de LPs (claro, rs), ao se deparar com este disco, arregalou os olhos e falou: “Você tem este LP, é item de colecionador!”. Não só tenho, como está em perfeito estado. Bem gravado, bem mixado e bem masterizado. Se o amigo achar em boas condições, não perca a chance, mesmo que você não seja um fã de nossa música instrumental.

Outro LP que o Maltese viu neste mesmo dia, e saltou aos olhos, foi o Angelus do Milton Nascimento, duplo. Eu não sabia que este LP também é de colecionador por ter sido prensado em LP apenas aqui no Brasil! O motivo? A quantidade de lares com CD-Player na época do seu lançamento era muito pequena aqui. Então o departamento comercial da Warner achou melhor lançar no velho formato para garantir uma maior receita. Tenho em ambas as mídias: não dá para comparar. Utilizo muito este disco no Curso de Percepção Auditiva quando falamos de digital versus analógico.

Utilizo a faixa Clube da Esquina nº 2. O arranjo é primoroso (e a letra nem se fala). Coloco primeiramente o CD e as pessoas escutam hipnotizadas, podendo ouvir até alguns suspiros ao final. Aí coloco o LP, e a sala quase vem abaixo assim que a potente voz de Milton inicia! Peço para as pessoas segurarem seus comentários para o final. A primeira coisa que os participantes citam é o tamanho da voz do Milton e a presença física dele, materializado à nossa frente. Depois, os mais familiarizados com os quesitos da nossa Metodologia, citam as texturas, os degraus da dinâmica e o conforto auditivo e naturalidade que o LP tem, e que falta no CD.

O incrível é como consegui este LP, e outros como o So, do Peter Gabriel. Estava em um sábado de 1995, andando na Rua Sete de Abril, e ouço alguém me chamar. Paro, procuro ver de onde vinha o chamado, e vejo um rosto conhecido sorrindo e vindo em minha direção. Era o Clóvis, um dos melhores vendedores da Brenno Rossi, que trabalhou tanto tempo que se tornou supervisor. Pois ele, naquele exato dia, estava separando o estoque de uma loja de discos que tinha ido à falência e, por algum motivo que não me lembro, seria comercializado em um saldão. Sabendo do meu interesse por música, me convidou em primeira mão a olhar o estoque e escolher o que eu quisesse. Não tinha muita coisa de meu interesse – lembro de apenas três discos que me chamaram a atenção: o Angelus do Milton, o So do Peter Gabriel, e um disco do Paulinho da Viola. Tinha muito Roberto Carlos, Ray Conniff, Wando, etc. Peguei, paguei, e segui meu caminho, e estes três LPs estão comigo até hoje!

O último dessa Playlist é o encantador Slow Food do grupo Nouvelle Cuisine, segundo disco do grupo, lançado pela Warner e ainda hoje um disco de referência, tanto em termos de repertório como de qualidade técnica de gravação. Ainda hoje, quando escuto esse disco, coço a cabeça me perguntando como o cantor Carlos Fernando pode cantar tão bem sendo que antes de entrar para o Nouvelle jamais havia cantado? Quando apresento este disco para pessoas que não conhecem este grupo, e conto a história deste vocalista, as pessoas ficam surpresas (e muitas provavelmente devem duvidar do que estou afirmando). Mas é real! O Nouvelle estava procurando um cantor, e havia escutado alguns, e nada se encaixava na proposta. Queriam um cantor sem cacoetes e “autêntico”. Até que aparece um arquiteto, que jamais havia cantado, e se apresenta para um ensaio. Todos ficaram impressionados com a sua facilidade em cantar, como se tivesse feito aquilo por toda a sua vida.

A produção do disco é do Oscar Castro Neves. Na contracapa vem a explicação de “Slow Food”: trata-se de um movimento surgido na Itália em defesa do direito ao prazer na alimentação. E que reivindica uma melhora geral na qualidade de vida, e a satisfação dos sentidos.

O genial do Nouvelle Cuisine é que as suas obras são colagens de grandes standards misturados às suas composições, fazendo-nos viajar por estradas e paisagens sonoras de extremo bom gosto estético musical. Wynton Marsalis, em uma das primeiras vezes que veio ao Brasil para um festival de jazz, estava nos bastidores se preparando para entrar depois da apresentação do grupo, e ouviu os primeiros acordes e a voz poderosa do Carlos Fernando na introdução de Angel Eyes. Ficou paralisado na coxia, assistindo ao quinteto e, ao final da apresentação, fez questão de cumprimentar todos e mostrar sua mais profunda admiração pelo que havia acabado de escutar.

Felizmente a mídia CD está muito bem gravada, então se você não conhece essa obra, mas deseja, sua chance de obter a mídia física deste disco é alta.

Espero que algum desses discos entrem nas suas playlists, e possam tornar esses dias tão cinzentos em algo mais nobre, singelo e emocionante.

Se cuidem. E até o próximo mês!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *