AUDIOFONE – Editorial: A ARTE DE ESCOLHER UM FONE
outubro 16, 2020
PLAYLIST DE OUTUBRO
outubro 16, 2020


Christian Pruks
christian@clubedoaudio.com.br

Nosso benfazejo e galhardo editor, Fernando Andrette, costuma dizer que se dedica à ouvir discos inteiros, em vez de uma ou outra faixa. Eu sou um pouco mais fraco, tendo discos de 10 faixas das quais eu gosto de apenas umas duas ou três. E, por ter caído de cabeça no streaming, tenho uma enorme coleção de faixas ‘órfãs’, que me agradaram profundamente, tiradas de discos cujo o resto do conteúdo não me agradou nem um pouco.

Quem sabe, em algum futuro próximo, eu escreva uma coluna chamada ‘Faixas do Mês’, que será publicada mensalmente na revista do ‘Clube do Audiófilo Homeopático’, hehehe… Enquanto isso, faz-se necessário um certo trabalho para definir quais serão os Discos do Mês, de cada mês. E, sim, eu já estou chegando no nível de senilidade de ir consultar se eu já não fiz a resenha de algum disco específico aqui na coluna – é ou isso, ou começar a escrever e ter uma sensação fortíssima de deja-vu, rs! Mas, falando sério: não, ainda não está rolando esse problema, ainda estou pleno das faculdades mentais, e não estou saindo na rua de pijama – ainda.

Acho que o gênero musical com menos variedade de discos bem gravados é o rock/pop. É fato! Jazz vem em primeiro lugar quando se fala em qualidade de gravação, com o clássico, penso eu, meio empatado em em segundo lugar com vários gêneros que podem ser definidos como ‘world music’, música étnica, etc. Na sequência, bem antes do rock/pop, virá o folk – acredito que por sua natureza mais acústica. Sim, é fato que música acústica tem a característica de nos prover gravações de maior qualidade, por princípio, afinal são instrumentos reais, ricos em harmônicos e texturas, que os elétricos e eletrônicos só conseguem é imitar.

Porém, não entendam que não seja possível fazer – ou que não existam – gravações fenomenais a partir de instrumentos elétricos e eletrônicos: muitas gravações já expostas aqui neste espaço possuem uma profusão desses instrumentos.

Gravações bem feitas, de instrumentos acústicos, ainda são as melhores, também, para avaliações de sistemas e equipamentos de som. Não que o audiófilo/melômano irá ficar avaliando seu sistema ou algum componente dele o tempo todo, mas estamos sempre fazendo modificações e adições, mesmo de acessórios, cabos ou tweaks – que muitas vezes demandam ajustes finos no sistema – e a extensão desses ajustes, a extensão do impacto de cada tweak ou acessório ou componente, sempre será corretamente avaliada só com gravações acústicas. E depois, musicalmente a maioria dessas gravações acústicas são maravilhosas – ou seja, é um prazer enorme ouví-las mesmo sem compromisso avaliador algum.

No episódio de hoje temos: um grupo de jazz brasileiro tocando standards com bom gosto e qualidade. Temos um pop-rock extremamente bem elaborado, arranjado e tocado. E temos também um trompetista japonês de longa carreira no jazz moderno internacional.

Vamos à eles:

Nouvelle Cuisine (WEA, 1988)

Confesso que, na época que saiu esse primeiro disco do grupo paulistano de jazz Nouvelle Cuisine, eu não ouvia praticamente nada de jazz – a não ser um ocasional disco de piano solo do Chick Corea. Eu era fã de rock/pop mesmo e música clássica – e trabalhava em uma loja de discos. Travei conhecimento com a existência do álbum e do grupo – assim como conhecia de nome pelo menos o percussionista Guga Stroeter, que era membro fundador da Orquestra Heartbreakers. E, claro, admirei sempre a arte da capa desse disco, sua linguagem visual e apresentação – mas isso faz parte de um gosto pessoal eterno meu pelo Art Deco.

Fora isso, meu contato com o Nouvelle Cuisine foi muito posterior: mais de 10 anos depois, quando além de eu já estar em uma fase onde eu ouvia muito mais jazz, renasceu também meu interessante no consumo de vinil. Eu já tinha passado pelo período de ouvir quase só CD, e tinha voltado a me interessar pelo toca-discos de vinil e passado a comprar LPs mensalmente. O cenário nessa época era até bem interessante: os comerciantes que insistiram em continuar no mercado de vinil, estavam fazendo ainda preços bem bons para a maior parte do acervo. A disponibilidade não era tão grande, o estado dos discos era bastante ruim em sua maioria (necessitando no mínimo de uma limpeza especializada) e o garimpo era, portanto, uma das atividades mais interessantes, principalmente para quem tivesse discernimento e experiência. Em um desses dias de garimpo, claro, um dos discos que adquiri foi esse primeiro LP do Nouvelle Cuisine, encantador musicalmente e de excelente gravação – tanto que cheguei a tocar em sistemas de clientes e amigos, ao longo dos anos, e sempre me perguntavam imediatamente: “Nossa! Que disco é esse?!”.

O nome “Nouvelle Cuisine (Française)” é de um movimento da Nova Cozinha Francesa, da Alta Cozinha, iniciado na década de 1970, que trouxe leveza aos pratos e cuidado quase artístico na apresentação dos mesmos, sendo enorme a sua influência na gastronomia mundial. Apropriado, e interessante, que o disco seguinte do grupo se chamasse Slow Food – outro nome de um movimento, sendo que este começou como relacionado à culinária e passou a ser usado como filosofia para a vida em geral. O nome “Slow Food” diz tudo – é o oposto de “Fast Food”, tanto na qualidade de uma comida não massificada, não feita em grande escala e sim preparada com ingredientes de qualidade e com carinho e expertise, quanto é também uma boa metáfora para a vida: coma devagar, saboreando a qualidade e importância daquela comida e daquele momento, assim como a qualidade e importância da vida e de todos os seus momentos especiais – como ouvir música!

Este primeiro disco é praticamente todo de standards de jazz, de Ellington, Mercer, Gershwin e outros – todos em versões às vezes um pouco ‘particulares’ do grupo, sendo que chegaram a ser chamadas de “pós-modernas”. O segundo disco, Slow Food, é mais centrado em grandes obras da MPB. Ambos discos são obrigatórios!

Fruto de sessões de improviso entre amigos músicos, e depois de sucesso nos palcos da noite paulistana, o grupo Nouvelle Cuisine foi fundado 1987 pelo baterista e percussionista paulistano Guga Stroeter – que hoje tem um longo currículo por ter produzido e arranjado música, ou simplesmente tocado com uma infinidade de nomes da música brasileira, como Dorival Caymmi, Ney Matogrosso, Arrigo Barnabé, Paulinho da Viola, Cauby Peixoto, Gilberto Gil, Zizi Possi e João Bosco, entre outros. Stroeter é formado em psicologia pela PUC de São Paulo, mas dedicou sua vida à música e ao estudo dela, como harmonia, improvisação e jazz, atuando também como produtor, arranjador e diretor musical. O grupo é formado por amigos de Stroeter de longa data, como o guitarrista Maurício Tagliari (com mais de 200 discos como produtor musical), o contrabaixista Flávio Mancini, e o clarinetista Luca Raele (que também é pianista, compositor e arranjador, tendo trabalhado com o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, a Orquestra Experimental de Repertório, Mônica Salmaso, Badi Assad, Nelson Ayres, Egberto Gismonti, André Mehmari, entre outros). Luca Raele e Maurício Tagliari são fundadores e diretores do selo de gravação independente YB Music.

Nouvelle Cuisine

A pessoa ‘de fora’, do grupo, fica por conta do exímio vocalista Carlos Fernando. Nascido em 1959 em São Paulo, o artista plástico Carlos Fernando Nogueira formou-se arquiteto – tendo exercido a profissão tanto antes da formação do Nouvelle Cuisine, como depois de ter se aposentado do mundo da música. Todos os membros do grupo são músicos formados, menos o arquiteto Carlos Fernando – que foi colega de escola de Stroeter no célebre Colégio Equipe, de São Paulo. Ele não era um vocalista profissional – e surpreendeu à todos por aparentemente ter nascido com uma belíssima voz, entonação, pronúncia, e uma capacidade interpretativa que ficará registrada para sempre na Música Brasileira, através do trabalho com o Nouvelle Cuisine, de vários shows solo, de duetos com Marisa Monte e parcerias com Toninho Horta. Carlos Fernando Nogueira faleceu em fevereiro de 2019, em São Paulo.

Gravado nos Estúdios Vice-Versa, em São Paulo, em 1988, esse disco não foi um trabalho simples, e trouxe uma grande equipe sob a direção musical do produtor e arranjador Armando Ferrante, e a engenharia de gravação de Ricardo Carvalheira. E, além do próprio grupo, vários outros músicos participaram (como o próprio Ferrante no Hammond B3), incluindo percussionistas, naipe de saxofones (com Proveta da Banda Mantiqueira), trombones e trompetes, e uma orquestra de cordas de 16 membros!

Esse primeiro disco do Nouvelle Cuisine (e, justiça seja feita, o segundo disco também) são aqueles que a gente compra mais um, em um sebo, para presentear amigos gringos audiófilos que são melômanos fãs de jazz. Um disco brasileiro que mostramos com orgulho!

Atenção especial deve ser dada às faixas My Funny Valentine, e Lullaby of Birdland, entre muitas e muitas outras, em um disco para ouvir inteiro, da primeira à última faixa.

Pode ser encontrado em: CD / Vinil / Serviços de Streaming selecionados. O CD e a versão Streaming são apenas audíveis, principalmente se comparados com o vinil. O CD teve uma edição no ano seguinte do lançamento do vinil, e depois uma reedição que juntava, em um só CD, praticamente todas a faixas dos dois discos: este e o segundo, Slow Food. O vinil, em sua edição nacional – a única existente – é o objetivo a ser adquirido, e é muito, mas muito bom, quase obrigatório, e pode ser encontrado em preços “de disco nacional” em sebos e na Internet. Uma curiosidade: como acontece com a maioria dos discos, a primeira tiragem, quando o mesmo é lançado, é superior em qualidade de som. Agora, como descobrir quais são as primeiras prensagens, eu não sei dizer, infelizmente. Porém, uma vez comprei um disco desses para um amigo, em um sebo, e a impressão da capa era inferior, e por curiosidade comparei a qualidade dele com a minha cópia, e as diferenças audíveis eram perceptíveis.

Quando estava escrevendo estas mal traçadas linhas, descobri que o Fernando Andrette estava falando, em sua coluna Playlist desta edição, sobre o segundo disco da banda, o Slow Food. Então, anotem, e comprem ambos discos – serão grandes adições à seus acervos. Os preços de ambos, em ótimo estado, no mercado de usados hoje são ridiculamente baixos pela qualidade que será obtida.

Tears For Fears – The Seeds of Love (Fontana, 1989)

Um italiano costumava me dizer que o Diabo não era respeitado por ser Diabo, e sim por ser velho. Excelente ditado, esse. Lembrei-me dele não porque o Tears For Fears não possa ou deva ser respeitado pelo que é, por mérito próprio – apesar de que são poucos que sabem que eles são, na verdade, bons músicos com boas idéias. Mas sim porque o disco The Seeds of Love traz uma série de participações de músicos de altíssimo calibre, que quase nunca a gente ouve falar que se associem com música pop – e eu acho que a viabilização dessas participações se deve bastante ao fato do disco ter saído no ápice, no momento mais sólido da existência desse duo inglês, no final da década 80.

Antes de sair esse disco, eu já era fã do mais famoso disco do Tears For Fears, intitulado Songs From the Big Chair, que tinha uma série de faixas que instantaneamente lembrarão todos sobre a existência da banda. Esse disco era um bocado pop eletrônico, que sempre foi o padrão deles, e não chega a me desagradar, mas acabou caindo no âmbito da memória afetiva musical, em vez de ser algo que eu ouça com frequência. Já o disco The Seeds of Love também fez um bocado de sucesso, e muitos lembrarão dele, mas já é uma produção feita com bateria acústica, percussão, backing vocals, etc e tal – algo mais complexo e bem mais rico.

Mas só fui ‘descobrir’ que a qualidade gravação desse disco era algo superior uns 15 anos atrás, na era mais recente da audiofilia, quando eu pude pôr minhas mãos em toca-discos e cápsulas de nível mais alto, mais ‘audiófilo’, e em melhores sistemas. É surpreendente, especialmente na versão vinil. É um pop-rock muito bem produzido, pensado, arranjado, e bem gravado, com uma dose bem honesta de compressão e com bastante ambiência. Um disco de qualidade musical inegável!

O guitarrista Roland Orzabal e o baixista Curt Smith se conheceram na adolescência na cidade de Bath, no interior da Inglaterra, na década de 1970 – encontro que levou Smith a aprender o baixo de maneira autodidata, devido ao grande interesse de ambos pela música. Orzabal, que é descendente de espanhol-basco (família Orzabal de la Quintana) teve uma adolescência em contato com as artes. A primeira participação de ambos foi na banda de new wave Neon, da qual faziam parte Pete Byrne e Rob Fisher – que depois se tornaram a banda de new wave inglesa Naked Eyes (que fizeram muito sucesso mundialmente com o hit Always Something There to Remind Me, um cover de Burt Bacharach).

O primeiro grupo profissional da dupla foi a banda Graduate, em 1978, que teve vida curta, que também seguia o padrão da new wave, mas com influências de ska. Com a dissolução da Graduate, nasceu o Tears For Fears, em 1981 (que começou com o nome de History of Headaches) já com influências mais séries como Brian Eno e Talking Heads. O nome “Tears For Fears” (Lágrimas para Medos) foi inspirado no trabalho Terapia Primal, do psicoterapeuta americano Arthur Janov, que se tornou muito conhecido no mundo inteiro principalmente por ter como paciente o beatle John Lennon (aposto que você não sabia que John Lennon foi um beatle! rs rs rs). Uma curiosidade: quando a dupla já era famosa, eles conheceram Janov pessoalmente, que já tinha adquirido um estilo de promoção quase ‘hollywoodiano’, e queria que eles escrevessem um musical para ele (!).

O Tears For Fears lançou seu primeiro disco, The Hurting, em 1982, em um ambiente onde a new wave – que era muito associada ao uso de sintetizadores – estava se tornando um pleno sucesso mundial. Curt e Orzabal mantiveram seu baixo e sua guitarra, complementados com um baterista e um tecladista. The Hurting – assim como o segundo e intensamente bem sucedido álbum Songs From The Big Chair – eram carregados de sintetizadores. Quem gosta da música desse gênero específico, dessa época, sabe que poucas vezes os teclados e sintetizadores foram usados de maneira tão criativa e complexa em arranjos musicais como nessa época.

Sendo uma banda que trabalhava e elaborava seus discos, o Tears For Fears somente foi lançar The Seeds of Love, seu terceiro disco, em 1989 (o segundo disco saiu em 1985). Com muito sucesso e muita credibilidade nas costas, Orzabal e Smith partiram para extravagância de mais de “Um Milhão de Libras”, que foi este disco, com um grande time de músicos, e trazendo novas influências de jazz, blues, e até dos Beatles – e muito menos teclados – pois Curt e Orzabal estavam achando que o trabalho da banda tinha ficado muito estéril.
Por isso The Seeds of Love é, na minha opinião, o melhor disco de música pop de todos os tempos, e um dos mais bem gravados do gênero (junto com o, já publicado aqui, On Every Street, do Dire Straits). The Seeds of Love foi primeiro lugar nas paradas de sucesso no Reino Unido, e foi ‘Top Ten’ em inúmeros países, incluindo os EUA, ganhando Disco de Platina em vários deles. Depois dele, a dupla demorou mais de uma década para gravar juntos – mas isso já é outra história.

Tears for Fears

Após passar meses gravando em vários estúdios, com vários produtores e equipes, o resultado não estava agradando à dupla, estava deixando à desejar – além de vários desentendimentos criativos e quanto ao processo de produção. Isso levou-os a começar tudo de novo e tomar as rédeas eles mesmos. Esse processo todo quase levou os empresários da banda à falência, e certamente levou-os a contrair uma enormidade de dívidas.

Já na primeira faixa do disco, Woman in Chains, parte da bateria é tocada por Phil Collins (do Genesis e de brilhante carreira solo), e parte é tocada pelo baterista francês Manu Katché (que foi baterista da banda do Peter Gabriel, gravou discos solo para o selo de jazz alemão ECM, tocou no melhor disco do guitarrista virtuoso Joe Satriani, etc). A bela cantora negra americana Oleta Adams também encanta o mundo com sua parte dos vocais de Woman in Chains (e outras participações no disco). Complementando o trabalho de Collins e Katché, vem o percussionista português Luís Jardim (que já tocou com Eric Clapton, David Gilmour, entre outros). Nada mal para um disco de música pop, apenas o terceiro de uma banda de new wave, não?

No resto de um disco extremamente bem elaborado – e incrivelmente prazeroso de ser ouvido – temos vários músicos de primeiro time, como o baterista de jazz e rock Simon Phillips (que tocou com Toto, Jeff Beck, Gary Moore, Jon Lord, Mike Oldfield, Mike Rutherford, The Who), o baixista Pino Palladino (que tocou com Jeff Beck, The Who, Elton John, David Gilmour, Phil Collins, Eric Clapton, Carly Simon, BB King, J.J. Cale, Paul Simon, Adele), e o trompetista de jazz John Hassell (que tocou com Peter Gabriel, David Sylvian, Holly Cole, Ry Cooder). Uau! Que lista!

Não precisa dizer de novo que é um disco obrigatório.

Destaque para as faixas Woman in Chains, e Standing on the Corner of the Third World, ambas obras-primas do rock-pop mundial. Este é, também, um disco para ouvir inteiro.
Pode ser encontrado em: CD / Vinil / Serviços de Streaming selecionados. O CD e o streaming não são tão ruins, afinal é uma banda top mundial, então as masterizações e transcrições são decentemente feitas. Claro que o objetivo aqui é ir para o vinil, que existe nacional (excelente, barato e fácil de achar), uma prensagem americana ou européia (que seria uma opção interessante e não deve ser tão difícil de achar), uma prensagem japonesa (que seria um sonho), ou uma prensagem recente de 180 gramas (que seria um sonho caro).

Tiger Okoshi – Color of Soil (XRCD, 1998)

Nos idos da década passada, quando mercado audiófilo brasileiro estava em brasa, a idéia da perseguição de discos de altíssima qualidade sonora – as tais gravações “audiófilas” – começou a tomar forma. Isso foi bom porque popularizaram-se vários selos audiófilos no mercado, e ruim porque, como já comentamos antes, existe muita coisa de qualidade musical pobre registrada em discos de muitas dessas gravadoras. Lembro-me também de dizer que eu jamais indicaria neste espaço discos que de dedicassem à proliferação de música banal, que fosse “mais do mesmo”.

Enfim, Tiger Okoshi gravou quase sempre para um selo altamente audiófilo, o XRCD – criação técnica e propriedade da célebre empresa de áudio japonesa JVC. E o próprio Okoshi, sua música e seus discos, não têm absolutamente nada de banal! E eu estou falando não só do tempero ligeiramente exótico de música, mas também da excelência musical de seus discos.

Como dizia, nos idos da década de 2000 foi quando travei contato com discos do selo japonês XRCD. No caso foi uma coletânea, naquela tradicional capa/caixa que eles usam, igual a um livrinho de capa dura, com generoso encarte (formato que acabou sendo usado por outros selos audiófilos, nos anos subsequentes). Sinceramente eu não lembro de cabeça da cara que tinha a capa da coletânea, ou mesmo quais eram as outras faixas, mas me lembro que tinha duas faixas do Tiger Okoshi, incluindo a minha preferida: Kagome Kagome. Na primeira chance de adquirir CDs em importadoras, um dos pedidos foi, claro, o CD completo dele, Color of Soil. Uma das grandes compras certas de todos os tempos!

Tiger Okoshi

Tiger Okoshi, de quem eu nunca tinha ouvido falar até então, é um dos melhores trompetistas que eu já ouvi em um estilo altamente elaborado de bebop e hard bop, com toques de fusion em alguns trabalhos – principalmente em faixas que homenageiam música
folclórica japonesa, por exemplo. Vim a descobrir que ele já havia tocado com uma quantidade de grandes intérpretes de jazz.

“Tiger” nasceu Toru Okoshi, em Ashiya, no Japão, no ano do tigre: 1950. Com aptidões artísticas precoces, passou a infância como pintor de quadros, só mudando para a música após ver um concerto de Louis Armstrong, aos 13 anos de idade. Após ter estudado na Universidade de Kwansei Gakuin, Okoshi foi aos EUA em sua lua de mel, e apaixonou-se pelo país. Logo estabeleceu-se em Boston, onde ingressou na conceituadíssima Berklee College of Music, em 1972. E passou a sentar-se perto do rio Charles, que margeia a cidade, e passar horas à fio praticando o trompete, com esperança de ser ouvido e ser chamado a integrar alguma banda. A propaganda boca-a-boca de suas habilidades com o trompete o levou a tocar em 1974 no Carnegie Hall, em Nova York, acompanhando a Mike Gibbs Orchestra, e no ano seguinte acompanhou a Buddy Rich Orchestra em turnê pelo país. Nos anos seguintes foi chamado para dar aulas na escola onde se formou, com honras: Berklee College of Music.
Além de liderar sua própria banda, Tiger’s Baku, e acompanhar turnês de numerosos luminares do jazz americano, Okoshi já participou de inúmeros festivais de jazz no mundo inteiro, inclusive o Newport Jazz Festival At Sea, que foi no transatlântico Queen Elizabeth II, em 1998. Já tocou ao vivo, acompanhando Tony Bennett, Gary Burton, Dave Grusin, Pat Metheny, entre outros.

O disco Color of Soil é o oitavo dentre nove discos com ele como bandleader – sendo a maioria pelo selo japonês JVC. A banda de apoio do disco traz Jay Anderson no contrabaixo (que já tocou com Gil Evans, Paul Bley, Woody Herman, e muitos outros), Hank Roberts no cello (que já tocou e gravou com Bill Frisell), Kenny Barron no piano (Chet Baker, Dizzie Gillespie, Ron Carter e muitos outros), e o francês Mino Cinelu na percussão (Pat Metheny, Miles Davis e Weather Report). Ou seja, um time de primeira – e eu te garanto que Okoshi está no mesmo nível deles, pelo menos! Entre outras gravações com participação de Tiger Okoshi, estão os discos: Times Square de Gary Burton, NY-LA Dream Orchestra de Dave Grusin, e Meditation Suite de David Liebman.

O disco é gravado com excelência técnica para o selo japonês JVC. Mas, o grande diferencial de seu som vem do uso do sistema XRCD, desenvolvido pela empresa, que processa a gravação no âmbito digital usando algorítmos de dither especialmente desenvolvidos por eles, depois enviando para a prensa de CDs da JVC em Yokohama, onde passa por um processo proprietário de diminuição de jitter. Outros processos exclusivos da JVC são usados para a criação da master física em vidro, em um processo de alta precisão com eliminação de jitter, com o apoio de um clock de rubídio. Todo esse processo garante um dos melhores, se não o melhor CD prensado do mundo, em matéria de qualidade física e sonora.
O destaque especial do disco vai para as faixas Kagome Kagome, e para Grandma’s Eyes, de um grande disco de um grande trompetista.

Pode ser encontrado em: CD. Infelizmente, a disseminação fora do Japão dos grandes discos produzidos pelo ramo gravadora da célebre JVC, ainda são erráticos, e não tem nem em serviços de streaming – principalmente os que saíram em seu selo audiófilo XRCD. Ou seja, a única opção é o XRCD japonês, cuja qualidade sonora é divina. Mais um disco para a lista dos que deveriam sair em uma boa prensagem em vinil – quem sabe um dia…

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