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Fernando Andrette
fernando@clubedoaudio.com.br

Tenho recebido algum feedback das minhas escolhas para essa seção, que deixam nitidamente claro o que os leitores mais antigos esperam, e o que os novos leitores esperam.

E as expectativas são muito distintas, pois enquanto os antigos leitores desejam gravações que acima de tudo primam pela qualidade técnica, a nova geração pede para que a seleção seja de estilos que ampliem seu universo musical.

Com esses novos dados em mão, tentarei fazer o mais difícil: atender a ambos os nichos, mesclando os dois pedidos, mas já deixando claro aos leitores mais antigos, que gravações sublimes tecnicamente, mas com pobre qualidade artística, estão completamente descartadas!

A qualidade artística é o que norteará sempre minhas escolhas, que isso fique bem definido.

Para esse mês eu já selecionei quatro discos, buscando atender da melhor maneira possível as duas correntes.

Espero que tenha acertado na receita!

1- Beatrice Berrut – Jugendstil (La Dolce Volta, 2022)

Das pianistas com menos de 40 anos, Beatrice Berrut ocupa um lugar de destaque em minhas gravações de piano solo.

Nascida nos Alpes Suíços, na região de Valais, atualmente com 36 anos, Beatrice antes de descobrir seu dom para a música, com apenas dois anos de idade aprendeu a esquiar e dessa paixão nasceu seu encanto pelas paisagens inebriantes dos Alpes Suíços.

A música só a conquistou aos 8 anos de idade – graças a sua mãe que amava a música de Brahms e Liszt – e a menina decidiu começar a ter aulas de piano. Foi uma surpresa para todos ao ver a facilidade com que ela dominou o instrumento e se dedicou diariamente aos estudos. Neste período inicial, sua obra preferida era o Concerto No.2 para Piano e Orquestra de Brahms, e que ao ouvir repetidamente descobriu que iria ser uma pianista.

Sua segunda paixão, foi Liszt, ao qual sua admiração é tão intensa que, certa vez, ela escreveu em seu diário de adolescente: “Sempre que toco Liszt, tenho a sensação de que estou imersa em um mundo que me é estranho e familiar, e que em um piscar de olhos me junto a ele em sua busca pela liberdade. Eu adoraria ter conhecido Liszt pessoalmente”.

Sua evolução é tão impressionante que, aos 16 anos, ela se torna aluna de Esther Yellin em Zurique e depois segue seus estudos em Berlim com Galina Iwanzowa, por mais de cinco anos – ambas são ex-alunas do mestre Neuhaus.

Para o amigo leitor leigo, nas diversas escolas existentes para piano, Neuhaus defende a linha que ele denominou de ‘piano orquestral’, e ensina técnicas de como obter o domínio e controle sobre as cordas vibrantes e a ressonância brilhante de um piano. Que para ele, quando o estudante interioriza esse conceito, o instrumento transcende o mundo dos martelos e da mecânica de uma caixa ressonante. Vou traduzir para o ouvinte da seguinte maneira: no conceito de Heinrich Neuhaus, o piano literalmente soa como uma orquestra integral, pois a digitação é tão expressiva e limpa, que transcende o próprio instrumento.

Parece algo difícil de entender a quem não tem enorme vivência com as diferentes escolas pianísticas, mas o disco que escolhi para apresentar aos que não conhecem Beatrice Berrut, vai ajudar muito a entender o conceito. Pois todas as faixas deste disco são obras escritas para orquestra, e transcritas para piano solo.

O leitor só precisará pegar o 2o. Movimento da Quinta Sinfonia de Mahler, o Adágio, ouví-lo e depois ouvir a transcrição para piano. E facilmente você entenderá o conceito Neuhaus e, de tabela, descobrirá a virtuosidade de tirar nosso ar e cessar os pensamentos de Beatrice Berrut!

Sua técnica é simplesmente exuberante em todos os sentidos, e quando ela vier ao Brasil, amigo leitor, faça um favor a si mesmo, vá assisti-la ao vivo.

Garanto que será uma noite inesquecível ao corpo e espírito!

Enquanto esse dia não chega, escute esse disco em seu sistema, e descubra se ele está suficientemente adequado para reproduzir essa gravação como ela foi captada. E aos audiófilos ávidos pela descoberta de novos selos de qualidade, coloquem em seu radar: La Dolce Volta, pois esses engenheiros entendem do riscado como poucos.

OUÇA Beatrice Berrut – Jugendstil, NO TIDAL.
2- Jun Miyake – Whispered Garden (Yellowbird Records, 2021)

Definir esse talentoso músico e compositor japonês não é uma tarefa fácil, pois sua dinâmica e visão do mundo o coloca como um peregrino sem pátria definida.

Jun iniciou sua carreira como trompetista de jazz, graduando-se na Berklee College of Music, e ao voltar para o Japão, ganhou notoriedade ao lançar em uma década 16 álbuns solo, trilhas para filmes, documentários e peças de teatro. Levando-o a ganhar vários prêmios internacionais, como o de melhor trilha, no Festival de Cannes, e tocar com músicos do mundo todo, como Ron Carter, Michael Brecker e Voix Bulgares. E diretores como Oliver Stone, Wim Wenders, Pina Bausch, Jean Paul Goude e Joseph Cedar.

A partir de 2005, se mudou para Paris onde compôs os álbuns Stolen From Strangers, e Lost Memory Theatre Act 1 e Act 2 – este aclamado pela crítica e que ganhou o prêmio de melhor álbum do ano e o Grand Prix para a German Records Awards, e compositor do ano pela Galerie Lafayette Homme em 2009.

Os discos de Jun possuem uma diversidade musical tão ampla que fica difícil ao ouvinte descobrir sua nacionalidade e mesmo estilo, pois possui estrutura de trilhas que funcionam perfeitamente sem imagens.

Como ele mesmo explicou, quando ele não está compondo para o cinema, sua música conta pequenas histórias que buscam dar ao ouvinte a oportunidade de colocar suas próprias emoções e imagens mentais. Whispered Garden funciona como um caleidoscópio de suas ideias, viajando pelos continentes com leveza e criatividade.

Até o Brasil está presente neste disco, em uma parceria com Vinícius Cantuária.

Espero que você aprecie.

OUÇA Jun Miyake – Whispered Garden, NO TIDAL.
3- Nina Simone – The Montreux Years Live (BMG Records, 2021)

Eu sempre lamentei termos tão poucas boas gravações de Nina Simone, pois sua importância para a música é grandiosa.

Não gosto de a chamarem de Sacerdotisa do Jazz, mas esqueço essas bobagens de títulos no momento que aperto o play, ou desço o elevador do braço do toca-discos, e a voz poderosa de Nina invade minha sala de audição.

Nunca antes o jazz teve uma cantora que combateu com suas letras as injustiças raciais de forma tão explícita e veemente.

Nina nasceu Eunice Kathleen Waymon, na Carolina do Norte, em 21 de fevereiro de 1933. Com apenas 3 anos de idade, começou a tocar piano na igreja que seus pais frequentavam e, com seu talento tão precoce, fez sua primeira apresentação aos 12 anos de idade – já causando uma polêmica antes da apresentação ao ver seus pais serem arrancados da primeira fila do teatro para dar lugar aos brancos. Ficou tão indignada, que se recusou a entrar até que seus pais voltassem para a primeira fila.

Foi estudar piano na Juilliard School, e depois sentiu na pele toda a discriminação racial para conseguir um emprego, tanto que precisou – para sobreviver – tocar em bares, o que foi prontamente reprovado por seus pais. Mas a sobrevivência falou mais alto, e ela continuou se apresentando diariamente.

Foi nesse período, por insistência do dono do bar, que ela arrumou seu nome artístico e começou também a cantar.

Uma noite um caçador de talentos a ouviu, e a convidou para fazer uma audição na gravadora Bethlehem – que lançou seu primeiro disco, Little Girl Blue, em 1957.

Seu primeiro embate com o racismo aconteceu no famoso Carnegie Hall, no lançamento do seu disco Nina Simone in Concert, em 1964. Para uma plateia predominantemente branca, ela apresentou de forma visceral Mississippi Goddam, que ela compôs para o ativista Medgar Evers, morto em um atentado a bomba no Alabama, em 1963. É audível na gravação toda a sua raiva e indignação, para um público que não tem como reclamar, já que ela o faz com enorme profissionalismo.

Nina Simone descobriu ali como se tornar uma ativista, usando a música como arma capaz de levar as pessoas mais ‘sensíveis’ a rever seus preconceitos e racismo herdado.

Eu tive a honra de estar em sua apresentação no Parque do Ibirapuera em 1997. Eu e mais 35 mil pessoas. E ainda que o áudio não tenha sido dos melhores, só de poder observar aquela multidão em silêncio absoluto, ainda povoa minha mente em flashes, quando ouço qualquer disco de Nina Simone.

Agora, temos a oportunidade de ouvir finalmente Nina ao vivo em uma compilação das três vezes que ela se apresentou no Festival de Montreux, com uma qualidade técnica surpreendente. Se você, como eu, sempre clamou por essa oportunidade de ter a cantora e pianista no mesmo padrão de qualidade, finalmente nosso desejo foi realizado.

OUÇA Nina Simone – The Montreux Years Live, NO TIDAL.
4- Dominic Miller – Absinthe (ECM, 2019)

Tenho o primeiro disco deste guitarrista argentino: First Touch, lançado em 1995. Lembro de ter ficado encantado com sua técnica, e a sensação de que se tratava de um talento com enorme potencial.

Hoje Dominic é mais conhecido como parceiro do músico Sting, já que trabalham em conjunto desde que Sting iniciou sua carreira solo. A admiração do cantor inglês é tão grande, que recentemente ele disse que Dominic é seu braço direito e esquerdo.

Mas se Sting lhe deu notoriedade, seus trabalhos solos continuam confirmando o que pressenti lá atrás: continua sendo um excelente solista e compositor.

Este trabalho, lançado no começo de 2019, pelo selo ECM, tem uma sonoridade e composições que nos remete a lugares que nunca estivemos, mas que gostaríamos de conhecer.

O próprio Dominic fala desse trabalho como inspirado pelas pinturas de franceses do início do século 19 em que, ainda que entorpecidos pela bebida Absinto, conseguiram criar trabalhos paletados de cores e, ao mesmo tempo, ultrajantes para o conservadorismo da época. E ele confirma que o disco foi inspirado nessas pinturas com o tipo de pincelada e cores tão vibrantes.

Ele quis passar esse mesmo clima aos arranjos, com o uso de timbres diferentes, instrumentos como sintetizadores, bandoneon, guitarra, baixo e as ‘pinceladas’ do baterista Manu Katché, ao qual Dominic rasga muito elogios pela maneira com que ele toca e cria harmonias e climas nos pratos.

É um disco delicioso de se escutar em qualquer hora do dia, em estados de espírito distintos, nos levando àquela sensação de embriaguez em que os sentidos e a rigidez dos músculos se afrouxam, e podemos nos esquecer do mundo lá fora.

Uma gravação que certamente, em sistemas com excelente equilíbrio tonal e texturas fidedignas, será emocionante de escutar!

Excelentes audições a todos, e mantenham a cabeça fria, pois infelizmente a insanidade humana mais uma vez parece ter se sobreposto à empatia (falo da invasão da Ucrânia no último dia 24).

OUÇA Dominic Miller – Absinthe, NO TIDAL.

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